São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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ELIO GASPARI


As vozes e os silêncios do IBGE

Em dezembro do ano passado o IBGE recalculou a esperança de vida do brasileiro com base nos dados do Censo e num trabalho conjunto com a ONU. Ela pulou para 71 anos e provocou brutais alterações no tempo que o trabalhador deve ficar na ativa até se aposentar. A aplicação dos novos números pelo Ministério da Previdência criou absurdos. Um bípede que em novembro podia se aposentar com R$ 1.000 e decidiu trabalhar mais um ano, para ficar com R$ 1.135, micou feio. Trabalhará mais para ganhar menos. Ralará 12 meses e se aposentará com R$ 940.
Não ocorreu ao IBGE alertar a choldra para esse efeito direto da nova tábua de esperança de vida. Seus diretores argumentam que não é tarefa de um instituto de geografia e estatística sair por aí enunciando causas ou conseqüências dos números que divulga. Certo.
Na quarta-feira, ao divulgar a Pnad com os números do primeiro ano de governo Lula (661 mil novos desempregados e uma tunga de R$ 55, ou 7%, na renda média da patuléia), o doutor Eduardo Nunes, presidente do IBGE, assumiu o papel de explicador-federal:
"Foi o preço pago para equilibrar as finanças públicas, reduzir o perigo inflacionário e equacionar o problema da dívida externa".
Se os doutores do IBGE acham que não devem falar quando seus números resultam numa tunga para os trabalhadores (sem que ela tenha sido inventada pelo instituto), o doutor Ernesto não deve explicar a essência do que seria a política macroeconômica de Lula. O presidente dispõe de ministros, banqueiros e consultores ávidos por esse papel.
Ademais, o explicador chamou a ruína de "preço", associando-a a uma sucessão de resultados virtuosos (equilíbrio das contas, redução da inflação e controle da dívida). É o caso de se ver se o raciocínio fica de pé noutra comparação: dois sujeitos estão descalços e cada um entra numa loja. Um escolheu a Paul Stuart, em Nova York, e pagou 575 dólares (R$ 1.725) pelos seus sapatos. Outro vai na Sapataria Central, em São Miguel Paulista, e paga R$ 60 (20 dólares). Ambos calçaram-se e pagaram o preço. A diferença esteve na escolha da loja.
O doutor Nunes tem todo o direito de falar o que bem entende. Espera-se que tenha algo a dizer quando os aposentados estiverem a caminho de uma nova tunga. Talvez não ajude o governo, mas exercitará sua misericórdia.

Uma novidade eletrônica útil e grátis
É raro aparecer uma oportunidade para se anunciar algo novo, útil e grátis. Só vale para quem lida com a internet e com o idioma inglês, mas já é alguma coisa. A Amazon, supermercado eletrônico especializado em livros americanos, lançou um instrumento de busca de palavras dentro do texto de uma parte dos volumes que vende.
É um recurso que pode ser usado para pesquisas triviais. Por exemplo: quantas são as referências de Jorge Amado aos traseiros de suas personagens? Em Dona Flor, três. Em Gabriela, uma.
Se fosse só isso, não seria nada. Imagine-se um pesquisador que se recorda de um caso de uma quilombola guerreira, conhecida como "rainha". Esqueceu-se o nome da mulher, mas lembra-se que o seu caso está no livro "Rebelião Escrava no Brasil", o magistral estudo de João José Reis sobre a revolta dos malês, em 1835. Como o livro foi traduzido para o inglês, o cidadão vai a ele, digita "queen" e aprende: a mulher se chamava Zeferina.
A nova ferramenta da Amazon constrange as editoras e as livrarias eletrônicas brasileiras para que ofereçam o mesmo recurso. Não fica bem obrigar os seus clientes a pesquisar em obras intituladas "Gabriela, Clove and Cinnamon" ou "Slave Rebellion in Brazil".
O macete da Amazon tem outra virtude. Permite sapear livros com uma paz que só as melhores livrarias oferecem. Por exemplo, está nas paradas o trabalho "In Defense of Globalization" ("Em Defesa da Globalização"), de Jagdish Bhagwati, da Universidade Columbia, boa aposta para o Nobel de Economia. Às vezes, Bhagwati é um elegante escritor indiano. Às vezes, parece um economista indecifrável. Qual dos dois prevaleceu no último livro? Pede-se ao instrumento que separe as páginas com a palavra "Brazil" e consegue-se uma amostra. As referências são 12.
Referindo-se a Lula, o professor levanta uma questão que está na cabeça de muita gente. O populista que condenava as reformas, a abertura do mercado e a ênfase na exportação mudou de posição porque o mundo globalizado e os "mercados" não lhe deixavam outro caminho? Ou será que se deu conta de que passara 20 anos dizendo bobagens documentadamente fracassadas? Bhagwati acha que Lula não se rendeu, aprendeu: "A economia é uma amante ciumenta. Se você a ignora, o risco é seu".
Serviços: o endereço da Amazon é amazon.com. O livro de Bhagwati sai por 35 dólares, com o frete.

Não foi Gushiken
O jornalista Ricardo Kotscho, assessor de imprensa do Palácio do Planalto, esclarece que o comissário Luiz Gushiken, secretário de Comunicação do Governo, nada teve a ver com a adulteração da íntegra de um discurso do companheiro Lula no sítio oficial da Presidência.
Kotscho acrescenta que é sua a responsabilidade pelo episódio.
Abusos como a supressão de um trecho na versão oficial de um discurso do presidente da República (aquele em que Lula pedia voto para uma candidatura petista) reforçam a tese de que o companheiro deve baixar uma medida provisória criando o Conselho de Jornalistas do Palácio.

Vioxx no Merck
Deverá custar caro ao laboratório Merck a insistência com que manteve o antiinflamatório Vioxx nas farmácias de todo o mundo. O remédio, considerado um bálsamo milagroso, foi aprovado pela vigilância sanitária americana em 1999. Em meados de 2001, duas grandes revistas científicas, o "Journal of the American Medical Association" e a "Lancet", levantaram a suspeitas de que seu uso continuado (mais de um ano ou doses muito altas, ainda que por pouco tempo) provocava distúrbios circulatórios.
Em setembro de 2001 o governo advertiu a Merck. Ela subestimava uma pesquisa que apontara os riscos de enfarto para os usuários do Vioxx. Ele era quatro vezes superior ao de pessoas medicadas com outras drogas.
Já existe, nos Estados Unidos, há algum tempo, a ocupação de "Advogado Vioxx". São escritórios especializados em analisar as reclamações das vítimas.
Com o Vioxx evaporaram-se 28 bilhões de dólares dos acionistas da Merck. O laboratório deve ter faturado uns 10 bilhões de dólares com o sucesso. O efeito colateral poderá ser o fim da empresa, sem BNDES que dê jeito.

Lula veritas
Lula voltou a defender a reforma da legislação trabalhista. Não enunciou uma proposta. Em fevereiro passado, quando falou pela primeira vez no assunto, mostrou que pretendia discutir a substituição da multa de 40% sobre o saldo do FGTS e o fim do adicional de um terço pago em cima das férias.
A conversa aconteceu durante um jantar com jornalistas. O presidente da CUT, Luiz Marinho, ao saber do episódio, reagiu dizendo que o presidente "já havia tomado vinho demais".

Eremildo, o Idiota, quer uma PPP com o BNDES, a Previ e a Funcef
Eremildo é um idiota. Mora num fundo de pensão e é assediado por empreiteiros que querem sugerir PPPs (Polpudas Parcelas Periódicas) aos companheiros da Previ e da Funcef. Por mais que explique que mora no fundo da pensão da Tia Nicinha, os maganos insistem em convidá-lo para uma grande PPP em Angra dos Reis.
Eremildo quer fundar duas empresas: a Funcef do B e a Previ do B. Elas advogarão os interesses da privataria quebrada junto ao BNDES. O idiota convenceu-se de que isso é um bom negócio ao ver o que está acontecendo com a Ferronorte, braço da Brasil Ferrovias. Ela liga os campos de soja do Centro-Oeste ao portos de Santos.
Entre 1996 e 1998, quando o negócio começou a azedar, o tucanato valeu-se da relação incestuosa que mantinha com os fundos de pensão para derramar dinheiro da Previ e da Funcef na ferrovia. A turma da Previ acreditava num retorno de 18% ao ano, a partir de 2006. Quando a Funcef entrou, o valor das ações da empresa já estava deteriorado. Hoje, seu patrimônio vale 10% do que valia em 2000.
A encrenca tem um espeto de R$ 1,5 bilhão no velho e bom BNDES. O Hospital do Doutor Lessa está fazendo exames de laboratório e é possível que se faça uma intervenção reestruturadora. Reestruturar, essa será a especialização de Eremildo.
Na vida real, quando as empresas não têm como pagar o que devem, quebram. No Complexo da Viúva, formado pelos aglomerados da Funcef, da Previ e do BNDES, a conta vai para o andar de baixo.
O BNDES é convidado a ajudar os acionistas da ferrovia porque, se isso não acontecer, a Previ e a Funcef, fundos de pensão dos funcionários do Banco do Brasil e da Caixa, perdem seus investimentos.
Eremildo acha que pode fazer umas PPPs (Petrus, Pommery e Pingus) com empresários que não têm como pagar o que devem. O idiota entendeu que os gestores da Previ e da Funcef puseram (a mando do Planalto) o dinheiro dos acionistas em negócios de quinta categoria porque, se desse errado (como deu), o BNDES ficaria com a reestruturação do desastre.
A Previ tem 66,74% das ações preferenciais da Brasil Ferrovias; a Funcef tem 33,26%. Seu atuais donatários poderiam contar à choldra por que e como se deu essa parceria público-privada ao fim da qual tão poucos puseram tanto dinheiro dos outros num negócio tão ruim.

Zeca Bush
Zeca Dirceu, filho do comissário da Casa Civil, é candidato a prefeito do município paranaense de Cruzeiro d'Oeste (20 mil habitantes). O companheiro informou à Justiça Eleitoral que poderia torrar R$ 600 mil em sua campanha.
Dirceu reservou R$ 30 (US$ 10) por habitante. O companheiro George Bush, candidato a presidente dos Estados Unidos (294 milhões de habitantes e 242 milhões de dólares em doações), gastará US$ 0,82 por habitante. O poder de compra per capita dos americanos é seis vezes maior que o dos brasileiros. O gasto per capita de Dirceu é dez vezes maior que o de Bush.
Como disse Lula na ONU: "Poderosa e onipresente, uma engrenagem invisível comanda à distância o novo sistema. (...) Manteve-se a lógica que drena o mundo da escassez para irrigar o do privilégio".

A Brahma bebeu
O triângulo Brahma-Nizan Guanaes-Zeca Pagodinho padece daquele excesso de esperteza que acaba comendo o dono. O sambista saiu de uma quarentena de costumes com um anúncio no qual a produção escondeu a sugestão de "aprecie com moderação", determinada pelo Ministério da Saúde.
O áudio do "aprecie" é recitado às pressas, abafado. O texto ficou encolhido num canto da tela, esmagado por um enorme NãNãNãNã. Parece coisa de bebum constrangido.
Se esse recurso viesse de uma pequena cervejaria, de um marqueteiro estreante ou de um falso malandro, vá lá. Mas a Ambev e Nizan são exemplos de sucesso. Pagodinho não é falso malandro, mas essa é a segunda vez em que se mete em lance de otário.

Caso de coragem
O professor Candido Mendes fez mais uma das suas. Como secretário-geral da Academia da Latinidade, montou uma conferência intitulada "Hegemonia e Multiculturalismo" juntando intelectuais que muita gente supunha incapazes de partilhar um mesmo teto, quanto mais uma mesma mesa. Entre 6 e 8 de outubro encontram-se em Nova York defensores da pureza cultural americana, como Samuel Huntington, e das liberdades públicas no Islam, como o iraniano Hamid Dabache, que falará sobre Che Guevara, Malcolm X e Franz Fanon. Huntington é valente. Pulou na cova dos leões e enfrentará três palestras durante as quais tentarão passar pela máquina de moer carne suas idéias de choque de civilizações.

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