São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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Intelectuais vêem petista como "antimessias"

RAFAEL CARIELLO
DA SUCURSAL DO RIO

O inédito assédio da população ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, deve-se, segundo analistas ouvidos pela Folha, a mudanças culturais e políticas no país e, sendo fato novo, é distinto de qualquer espécie de messianismo. Ao contrário, Lula é definido por eles como um "antimessias", o "oposto do salvacionismo".
Essa é, em resumo, a análise compartilhada pela professora de filosofia da USP, Marilena Chaui, por Otávio Velho, antropólogo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e Irlys Barreira, antropóloga da Universidade Federal do Ceará e do Nuap (Núcleo de Antropologia da Política), entidade que reúne antropólogos de diferentes Estados do país.
Otávio Velho diz que o assédio a Lula "é inédito" e a reação popular, para ele, é comparável à que se seguiu à morte de Tancredo Neves. "Não tenho lembrança de uma eleição de presidente que causasse esse tipo de comoção".
Só uma mudança cultural, que viria acontecendo silenciosamente e sem reflexo político, poderia explicar essa "comoção", diz.
"Até hoje o povo tinha dificuldade de se identificar com uma figura como Lula porque não se considerava com a dignidade e potencial necessários para chegar a uma posição como essa [de presidente"", afirma Velho.
Ele diz que, com a eleição de Lula, não predominou essa "identificação negativa", resumida na frase "ele é igual a mim, e portanto não faz sentido ser presidente da República". "Abriu-se uma brecha para a identificação positiva -"ele é igual a mim e vou votar nele para presidente por isso". Essa é a grande mudança". O antropólogo afirma que, por conta disso, a receptividade popular a Lula não engendra nenhum tipo de messianismo. Ao contrário, diz que a identificação com o petista substitui o salvacionismo.
"Não é a identificação com o outro, com alguém que vai resolver nossos problemas, mas com alguém que "é um de nós". Salvacionismo está identificado à imagem de um outro que vem nos salvar. Parece haver uma consciência muito grande das dificuldades a serem enfrentadas. Isso é o oposto do salvacionismo".
O significado da "interação mais forte" com Lula, ele diz, é a constituição de uma democracia de massas. "Não é mais uma democracia em que se assiste à ação das elites num palco."
O fato de Lula "ter um partido por trás" é um dos argumentos que Irlys Barreira apresenta para sustentar que o presidente eleito representa a antítese das características de um líder messiânico, que ela enumera.
A primeira é o personalismo. Outra característica do messianismo é o aparecimento intempestivo, imprevisto, do líder. "Lula e o PT têm história", diz a antropóloga. Finalmente, Barreira contrapõe o discurso antipolítico, com promessas de felicidade irreais, típico dos messiânicos, ao discurso do presidente eleito.
"Lula representa o antimessianismo", conclui.
Marilena Chaui, uma das principais intelectuais ligadas ao PT, diz não se lembrar "de um presidente tão festejado". E apresenta três razões para o que chama de "festa": a recuperação promovida por Lula do discurso político, que "a sociedade compreende e deseja", em oposição ao "discurso técnico" dos últimos 12 anos; a "recuperação da dignidade do povo brasileiro", encarnada na promessa de mudança; e o reconhecimento do papel de Lula como líder na história da democracia brasileira dos últimos 25 anos.
A experiência sindical do presidente eleito, segundo Chaui, seria a garantia para evitar que a identificação popular "descambe para o populismo". "A experiência sindical é a de alguém que representa uma coletividade, e não daquele que a tutela. O populismo é a perspectiva da tutela de um povo que não sabe de si. Lula tem uma educação política que torna impossível o populismo."
Embora possa haver expectativas irreais e salvacionistas em pessoas que assediam o petista, diz a filósofa, as propostas de Lula vão no sentido contrário.
"Quando Lula propõe um pacto social, a idéia é que as pessoas não esperem a salvação, mas participem da ação política."
O professor de filosofia política Denis Lerrer Rosenfield, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), discorda de Chaui, Barreira e Velho. Para ele, o assédio a Lula não passa de "uma manifestação normal decorrente de vitória, que deve durar mais algumas semanas".
Isso não significa que não possa haver ameaças no tipo de relação cultivada pelo presidente eleito com as pessoas que o assediam. O atual apoio popular, afirma, poderia no futuro ser convertido em populismo. "Existe uma tendência muito forte no PT em apelar para a demagogia, ou seja, um tipo de retórica que está de acordo com algumas palavras e conceitos e que organiza a população ou setores próximos ao partido em função dessas tendências ideológicas. A demagogia pode ter esse caráter populista", afirma.



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