São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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ENTREVISTA

Para José de Souza Martins, eleição de petista tem origem messiânica e reanima getulismo que a era FHC tentou enterrar

Lula reaviva sebastianismo, diz sociólogo

CAIO CARAMICO SOARES
DA REDAÇÃO

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva representa um fortalecimento do ideário getulista, muito presente ainda hoje no berço político do PT -o ABC- e no discurso nacionalista do próximo presidente. Também representa um reavivamento do sebastianismo, a crença messiânica no retorno do rei d. Sebastião, que Lula agora encarnaria, a despeito de não ter consciência das crenças arcaicas e enraizadas no imaginário do país que agora reanima.
A avaliação é de José de Souza Martins, 64, professor do Departamento de Sociologia da USP, que vê "origens messiânicas" em Lula, ligadas à influência da Igreja progressista na definição do movimento operário nos anos 70. Autor de livros como "Os Camponeses e a Política no Brasil" (ed. Vozes), Martins é um dos maiores estudiosos da questão agrária no país. É também membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão.
 

Folha - Lula se referiu aos pobres como "nossos filhos" e se apresentou à população como o primeiro "presidente companheiro" do país. Isso configura uma tendência populista do presidente eleito?
José de Souza Martins -
Lula é um político intensamente interativo, diferente do PT corporativo que o apresentou como candidato, muito refratário às expectativas populistas de uma boa parcela do eleitorado. Por isso, Lula aceitou bem o roteiro de conduta populista que estava diluído nas expectativas do eleitorado, roteiro que ele consegue identificar e interpretar. Mas, muito depressa, terá que conhecer e reconhecer a liturgia própria do cargo e com ela identificar-se. Não há "presidente companheiro" nem pode haver, pois o único companheiro do presidente é o poder.

Folha - É possível identificar tendências messiânicas na expectativa popular em torno do governo Lula? O presidente eleito tem alimentado voluntariamente isso?
Martins -
Somos um país messiânico e milenarista ainda hoje. A candidatura de Lula foi gestada muito antes de ele saber que era o escolhido e sem que se soubesse que seria ele o eleito dos filhos da promessa. Tem, portanto, uma origem messiânica.
Tudo começa com a designação de dom Jorge Marcos de Oliveira, bispo de Santo André. Ele era um homem extraordinário, uma das primeiras figuras verdadeiramente progressistas da Igreja Católica no Brasil. Dom Jorge foi para o ABC para estabelecer ali a presença política da Igreja Católica entre os operários, numa região dominada pelos comunistas. Aproximou-se deles, foi para a porta das fábricas, apoiou e liderou greves e começou a estimular o aparecimento de uma liderança sindical de esquerda, mas não comunista.
Foi nesse quadro de uma esquerda alternativa que se preparou o cenário para o aparecimento de uma liderança operária, de algum modo católica, que fosse além do discurso sindical e se transformasse numa liderança política. A rede política das Comunidades Eclesiais de Base, com a criação do PT, foi fundamental para fazer do nome de Lula um nome nacional, de esquerda, mas abençoado pela Igreja. É inestimável essa ação da Igreja para diversificar as esquerdas e, num certo sentido, democratizá-las. Os trabalhadores católicos tiveram assim a oportunidade de se expressar e se organizar politicamente, como agrupamento de esquerda, sem se sentirem numa relação de traição com sua classe social, que era o que acontecia antes, confinados em aparelhos políticos clericais e reacionários.
Foi a Igreja, e não as esquerdas, que criou a figura poderosamente simbólica que, na pessoa de Lula, cumpre a promessa do advento do ungido. Na verdade, um reavivamento do sebastianismo, a espera messiânica no retorno do rei d. Sebastião para libertar o reino.
As três derrotas eleitorais de Lula para a Presidência não foram compreendidas nem aceitas por esse eleitorado fortemente impregnado de sebastianismo. A perda da eleição para Fernando Henrique, em 1994, foi insuportável e mais insuportável em 1998. Se Fernando Henrique era um homem de esquerda, como podia disputar a eleição com o ungido de Deus e derrotá-lo? Daí um extenso e complicado processo de satanização do presidente, que vem até hoje, baseado em afirmações esdrúxulas a respeito de ter abandonado suas posições de origem, quase um traidor da causa, um usurpador. Um frade, que tem grande responsabilidade na unção de Lula, desde os primeiros dias da eleição de Fernando Henrique encerrava suas mensagens eletrônicas com esta palavra de ordem: "Fora FHC!".
Já nas vésperas destas eleições, comecei a observar novas evidências de uma crença messiânica em torno de Lula: pessoas querendo tocá-lo. Mais recentemente, o episódio da visita ao menino Bruno, imobilizado numa cadeira de rodas por uma bala perdida, também vai nessa direção. Menos por uma explícita crença religiosa e mais pela concepção implícita de que Lula é o presidente dos desvalidos, dos injustiçados, dos fisicamente impossibilitados de ser eles próprios. Tudo isso é núcleo de uma crença messiânica. Esse fenômeno traz à mente os reis taumaturgos, da Idade Média, cuja legitimidade estava na capacidade de operar milagres, bastando tocá-los. Só o ungido podia curar, ou redimir os pobres. O substrato medieval do nosso catolicismo popular subsiste e é muito forte. E a ação das igrejas no sentido de construir essa imagem de Lula é mais do que evidente.
O aparente populismo de Lula está mobilizando valores e concepções de um passado remoto, mas reconhecidamente persistente. Nossos arcaísmos estão procurando se cristalizar em torno dele, do mesmo modo que nossas frágeis e fragmentárias tradições de esquerda. Uma combinação impossível. Aparentemente, Lula não contribui conscientemente para alimentar essa rede de crenças arcaicas, mas isso, evidentemente, não depende dele.

Folha - O PT tradicionalmente se pautou pela recusa do figurino getulista do "pai dos pobres". Essa diferença pode estar se diluindo?
Martins -
A recusa do getulismo pelo PT é mais dos dirigentes e do ideário do partido do que do seu eleitorado. Chega ao PT através dos intelectuais que um dia foram ligados à UDN, que, no fim de sua história, era um partido de direita. A popularidade original de Lula se deu no ABC, de muitos modos uma região fortemente getulista até hoje. Nessa cultura Lula foi gestado e aprendeu a fazer política. Lula representa o renascimento de muitas proposições do getulismo, especialmente no seu antagonismo ao PSDB e ao presidente Fernando Henrique Cardoso, que se propôs a encerrar a era Vargas.
De certo modo, Lula conseguiu se tornar herdeiro dos órfãos de Vargas, que são muitos, por exemplo num certo nacionalismo econômico, bastante parecido com o do antigo presidente.

Folha - O simbolismo em torno de Lula é uma "compensação" sociopsicológica ao estilo de FHC?
Martins -
Fernando Henrique tem procurado presidir a República como um magistrado, em face dos ministros que representam o pacto político que o tem sustentado. Portanto, as funções de visibilidade foram transferidas para os ministros. O presidente da República, com Fernando Henrique, recolheu-se à solidão do poder. Foi uma tentativa de modernizar profundamente a função presidencial, torná-la expressão de um modo moderno de exercício do poder, um sinal de opção e respeito pelos direitos do cidadão. Cidadão que deveria se expressar politicamente em função de seus direitos e não em função de ter sido fascinado e enfeitiçado por quem ocupa a Presidência.
Tudo indica que, com a eleição de Lula, os eleitores pretenderam um "aquecimento" na figura presidencial, como houve em outros tempos, nem sempre com sucesso. Pretenderam libertar o presidente da frieza litúrgica do cargo.

Folha - Que papel forças sociais como o MST e os servidores públicos terão no governo do PT?
Martins -
Os servidores públicos partidarizados, majoritários na CUT, vão se sentir mais à vontade com Lula do que com Fernando Henrique, e não causarão àquele os problemas que causaram a este: tornaram lenta a execução das decisões governamentais ou dificultaram sua execução.
Já o MST tem como problema fundamental o fato de que perde a função política com a eleição de Lula. Em grande parte, a enorme contribuição do MST à ascensão do PT e de Lula consistiu em manter as demandas populares do campo além de seus verdadeiros limites, o que resultou numa imagem negativa do governo. As passeatas, invasões e acampamentos reforçavam continuamente a imagem dessa espécie de déficit falso de política social. Por mais que o governo fizesse, sempre era insuficiente.
Com a eleição de Lula, já não poderá manter a mesma luta ou, ao menos, não poderá mantê-la com as mesmas características e a mesma intensidade. Terá que mudar de curso, mesmo que não aceite funções no governo. O registro tonal das ações do MST está num diapasão bem específico: o de desqualificar todas as iniciativas do Estado. Mesmo que o MST abrande sua conduta política, isso será interpretado como recuo e todas as ações praticadas durante o governo FHC revelarão uma face que nem o MST nem o PT podem assumir: a do oportunismo eleitoral que as teria motivado. Mesmo que isso não seja eventualmente verdade, dificilmente as coisas deixarão de ser interpretadas desse modo pelo público.



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