São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004

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GRANDE SERTÃO

Região do Projeto Fulgêncio é a maior produtora de maconha do Estado; lei do silêncio impera entre os moradores

Verba pública custeia tráfico em Pernambuco

MURILO FIUZA DE MELO
ENVIADO ESPECIAL A SALGUEIRO (PE)

Recursos do governo federal que deveriam financiar culturas alternativas no Polígono da Maconha, no Estado de Pernambuco, estão sendo utilizados para o plantio da droga.
A PF (Polícia Federal) e o Ministério Público do Estado investigam uma quadrilha de traficantes que atua no Projeto Fulgêncio, o maior de irrigação mantido pela Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) no Nordeste, no município de Santa Maria da Boa Vista, a 604 km de Recife.
São 1.500 famílias assentadas em 47 agrovilas, construídas a partir de 1988 numa área de 240 km2. A área, perto do rio São Francisco e destinada à fruticultura, é hoje a maior região produtora de maconha de Pernambuco.
Só neste ano, a PF destruiu quase 150 mil pés de maconha nas agrovilas do Fulgêncio. Entre 2000 e 2003, foram 414 mil pés e 222 mil mudas erradicadas, além da apreensão de 210 kg da droga pronta para consumo.
As famílias do projeto não pagam água, luz e, até o fim de 2001, recebiam uma ajuda de custo mensal da Chesf de R$ 250. Apesar do apoio público, os moradores vivem como se estivessem numa favela dominada por traficantes de drogas no Rio ou em São Paulo. O silêncio é a lei, e o medo, condição de sobrevivência.
Segundo a PF, a região é controlada por uma quadrilha de 20 criminosos, liderada por Jerry Adriane Gomes da Silva, o Nego de Lídio. O grupo é acusado de assassinatos, roubos de cargas, assaltos e de comandar o plantio de maconha no projeto.
"Quem o desobedece, morre", disse o chefe de Operações da PF em Salgueiro (cidade vizinha ao Fulgêncio), João Evangelista.
A polícia tem que procurar caminhos alternativos para entrar no assentamento porque a entrada principal, em frente a um posto da PM (Polícia Militar), na BR-428, é monitorada por informantes do tráfico.
"Se entramos por ali, eles [os informantes] ligam para o Nego de Lídio para avisar. Algumas vezes, soltam fogos", disse Evangelista.
A estratégia tem dado certo. Do posto da PM até a agrovila principal do Fulgêncio são 20 km. Hoje, a única imagem de Lídio que a PF tem é uma foto de dez anos trás.

Sequeiro
O cultivo da maconha na região, segundo a PF, ocorre nos sequeiros -áreas de caatinga em torno das plantações de frutas- e, às vezes, nos próprios terrenos irrigados de agricultores expulsos por traficantes. "Já encontramos maconha entre as bananeiras", informou Evangelista.
Para manter os plantios de maconha nos sequeiros, os traficantes desviam parte da água do canal de irrigação que corta o Fulgêncio. Segundo o engenheiro Carlos Aguiar de Brito, responsável pelos projetos de assentamento da Chesf na região, pelo menos mil litros de água dos 6.000 captados diariamente no São Francisco são desviados pelo tráfico.
"Nossa principal estação de bombeamento está trabalhando 20 horas por dia, quatro horas a mais do que o necessário. Mesmo assim há áreas que deixam de ser irrigadas depois das 15h", disse. Normalmente, as agrovilas recebem água até as 18h.
O canal de irrigação do Fulgêncio tem 42 km e sua operação é feita, desde 1998, por uma empresa terceirizada, a Engenharia Granville & Bazan Ltda., de Petrolina (PE), contratada pela Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio São Francisco) em convênio com a Chesf.

Indicações
O contrato com a Granville & Bazan, que termina em julho deste ano, é de R$ 8,2 milhões. A maior parte do dinheiro é usada para pagamento de pessoal. A empresa mantém 193 funcionários, dos quais a maioria é indicada por Jucelino Gomes da Silva, vereador de Santa Maria da Boa Vista e irmão de Nego de Lídio.
"Ele é o braço político da quadrilha e transformou o Fulgêncio em seu curral eleitoral", afirmou Evangelista.
O vereador está preso desde o dia 25 de outubro sob as acusações de associação ao tráfico, formação de quadrilha e homicídio.
Os cargos indicados por Gomes da Silva -vigias, inspetores de irrigação e operadores de bomba- são fundamentais para a sustentação do tráfico. Cabe ao inspetores de irrigação, por exemplo, fiscalizar o desvio de água dos canais. Segundo a PF, muitos inspetores fazem vista grossa para o fato.
Em troca do silêncio dos funcionários está a possibilidade de um bom salário numa região sem emprego como a do sertão pernambucano. A remuneração varia de R$ 400 a R$ 800.
O operador de bomba Elcivando Damacena Silva, 27, ganha R$ 512 por mês. Sua função é administrar a pressão da água nas estações de bombeamento. "Estou trabalhando aqui há seis meses graças ao doutor Jucelino."
O gerente de Contratos da Granville & Bazan, Rivaíldo Pereira de Souza, confirma o caso. "O pessoal é indicado, faz os testes e é contratado. Quem indica é o vereador Jucelino. Já disse isso à Polícia Federal", afirmou Souza.
Ao menos oito funcionários da empresa já foram demitidos por suposto envolvimento com a quadrilha de Lídio. Dois deles estão presos sob a acusação de tráfico e roubo de cargas. Na cadeia pública de Santa Maria da Boa Vista, dividem a cela com o vereador.


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