São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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MENSALÃO EM DEBATE

Os limites da imagem presidencial

Lula poderia ter marcado seu mandato com um governo inspirado na inédita festividade popular da posse, mas ficará com a estampa patética do mensalão

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

HÁ FATOS do mandato e do passamento dos presidentes que marcam uma época. O suicídio de Getúlio Vargas no Catete (1954) e a morte de João Goulart no exílio uruguaio (1976) representaram a dimensão trágica do trabalhismo. Entre as duas datas, com um rádio de pilha na mão, Emílio Médici aparecia na foto torcendo pela seleção (1970) e por uma simpatia que encobrisse sua sinistra ditadura. Mas a "banana" que João Baptista Figueiredo deu para o povo brasileiro diante das câmeras da TV Manchete, no último dia de seu mandato (1985), ilustrou o fiasco final do regime dos generais. Na mesma altura, o velório de Tancredo Neves, em São João d'El Rey, reconciliou o Brasil em torno da temperança mineira. Com fungadas e visagens, no começo de uma entrevista para uma TV argentina (1992), Fernando Collor de Mello encenava, sem se dar conta, o desregramento de seu mandato e o prenúncio de seu impeachment. Posando ao lado de uma moça pouco discreta no Carnaval do Rio de Janeiro (1994), Itamar Franco beirou os limites da desonra política, enquanto as fotos de Fernando Henrique Cardoso de beca, recebendo doutorados "honoris causa" de grandes e médias universidades, alcançaram os píncaros da honra presidencial.
Luiz Inácio Lula da Silva poderia ter marcado seu mandato com um bom governo inspirado pelas imagens da inédita festividade popular no dia de sua posse. Ficará, no entanto, a estampa patética do mensalão. Não se pode ainda vislumbrar todas as conseqüências desse escândalo. Mas já dá para saber quando se armou a cilada que pesa sobre o país.
Na realidade, tudo se definiu em dois dias de agosto do ano passado. Numa quinta-feira, Duda Mendonça confirmou na CPI dos Correios o uso do caixa dois na campanha de Lula. Ricardo Berzoini se disse "estupefato", enquanto outros deputados petistas dissidentes (depois integrantes do PSOL) redigiam um documento afirmando que as revelações de Duda Mendonça traíam a esperança suscitada pela eleição de Lula. Ato contínuo, o líder do PSDB, senador Arthur Virgílio, declarou: "O governo Lula acabou oficialmente hoje. Este governo não tem mais governabilidade e autonomia para ir longe ou para fazer coisa alguma".
No dia seguinte saíam as sondagens em que José Serra surgia pela primeira vez como vencedor na corrida presidencial. Diante desse novo patamar da crise, no começo da tarde, numa reunião ministerial na Granja do Torto, Lula se dirigiu à nação. Olhando para cima e para os lados, cercado por ministros tensos, ele pediu desculpas ao povo brasileiro pelos "erros" do PT. Naquela quinta e na sexta-feira, a parada se decidiu. Certo de que chegaria na frente na eleição presidencial, o PSDB resolveu deixar Lula acuado e sangrando até o final de seu mandato. A "estratégia do sangramento" requeria um tiroteio contínuo, de preferência na frente das câmeras de TV -contra o presidente e todo o seu entorno político e social.
Porém, à medida que se acumulam as sondagens desfavoráveis à oposição, um enfrentamento mais insidioso toma conta do país. Aparecem análises e discursos políticos fundamentados na clivagem entre as intenções de votos dos pretensos "ilustrados", de um lado, e dos alegados "desinformados", de outro; entre o Nordeste e o Centro-Sul; entre os mais ricos e os mais pobres. Como se a ditadura não houvesse se apoiado nos mais ricos, como se não fora em São Paulo que Collor tivesse colhido a maioria dos votos de sua vitória em 1989.
Do lado do governo, Lula também derrapa ao adotar um paleio arrogante baseado no "já ganhou!". Seu "desafio" para que a oposição mostre as cenas das CPIs no período de propaganda eleitoral encerra três graves equívocos: desconsidera o efeito negativo das imagens sobre o escrutínio presidencial, desrespeita os militantes e os seus eleitores, que se sentem humilhados pelo enxovalhamento do PT e, enfim e sobretudo, deixa entender que tudo não passou de uma armação do Congresso e da imprensa.
Diante do acirramento do embate eleitoral, o senador Jefferson Péres (PDT-AM) tem insistido na necessidade de organizar uma concertação suprapartidária que assegure a governabilidade no próximo mandato presidencial. O artigo em que o senador expunha suas idéias, publicado na pág. A3 desta Folha no dia 21 de maio, apontava a "semi-falência do Estado brasileiro" diante da ofensiva lançada pelo PCC (Primeiro Comando da Capital).
A propósito, penso que o "Levante do Dia das Mães" é um fenômeno sem paralelo. Trata-se de uma insurreição lançada por uma organização criminosa, utilizando sua própria logística e as falhas e a corrupção dos órgãos de segurança pública. Fazendo mais de uma centena de vítimas em apenas três dias, o levante se distingue dos conflitos que têm espoucado mundo afora. Não houve nenhum recorte étnico ou religioso, nem guerra civil ou catástrofe natural que servisse de suporte à insurreição, como ocorreu noutras épocas e noutros lugares. Em suma, São Paulo assistiu, no mês de maio, ao primeiro conflito típico do século 21, à primeira grande insurreição criminosa gerada numa megalópole.


LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO , 60, é professor titular de história do Brasil na Universidade de Paris - Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras, 2000), "Rio de Janeiro - Cidade Mestiça" (Companhia das Letras, 2001) e um dos organizadores de "História da Vida Privada no Brasil" (Companhia das Letras, 1997).


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