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MENSALÃO EM DEBATE
Os limites da imagem presidencial
Lula poderia ter marcado seu mandato com um governo inspirado na inédita
festividade popular da posse, mas ficará com a estampa patética do mensalão
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
HÁ FATOS do mandato
e do passamento dos
presidentes que marcam uma época. O suicídio de
Getúlio Vargas no Catete
(1954) e a morte de João Goulart no exílio uruguaio (1976)
representaram a dimensão trágica do trabalhismo. Entre as
duas datas, com um rádio de pilha na mão, Emílio Médici aparecia na foto torcendo pela seleção (1970) e por uma simpatia que encobrisse sua sinistra
ditadura. Mas a "banana" que
João Baptista Figueiredo deu
para o povo brasileiro diante
das câmeras da TV Manchete,
no último dia de seu mandato
(1985), ilustrou o fiasco final do
regime dos generais. Na mesma
altura, o velório de Tancredo
Neves, em São João d'El Rey,
reconciliou o Brasil em torno
da temperança mineira. Com
fungadas e visagens, no começo
de uma entrevista para uma TV
argentina (1992), Fernando
Collor de Mello encenava, sem
se dar conta, o desregramento
de seu mandato e o prenúncio
de seu impeachment. Posando
ao lado de uma moça pouco discreta no Carnaval do Rio de Janeiro (1994), Itamar Franco
beirou os limites da desonra
política, enquanto as fotos de
Fernando Henrique Cardoso
de beca, recebendo doutorados
"honoris causa" de grandes e
médias universidades, alcançaram os píncaros da honra presidencial.
Luiz Inácio Lula da Silva poderia ter marcado seu mandato
com um bom governo inspirado pelas imagens da inédita festividade popular no dia de sua
posse. Ficará, no entanto, a estampa patética do mensalão.
Não se pode ainda vislumbrar
todas as conseqüências desse
escândalo. Mas já dá para saber
quando se armou a cilada que
pesa sobre o país.
Na realidade, tudo se definiu
em dois dias de agosto do ano
passado. Numa quinta-feira,
Duda Mendonça confirmou na
CPI dos Correios o uso do caixa
dois na campanha de Lula. Ricardo Berzoini se disse "estupefato", enquanto outros deputados petistas dissidentes (depois integrantes do PSOL) redigiam um documento afirmando que as revelações de Duda
Mendonça traíam a esperança
suscitada pela eleição de Lula.
Ato contínuo, o líder do PSDB,
senador Arthur Virgílio, declarou: "O governo Lula acabou
oficialmente hoje. Este governo não tem mais governabilidade e autonomia para ir longe ou
para fazer coisa alguma".
No dia seguinte saíam as sondagens em que José Serra surgia pela primeira vez como vencedor na corrida presidencial.
Diante desse novo patamar da
crise, no começo da tarde, numa reunião ministerial na
Granja do Torto, Lula se dirigiu
à nação. Olhando para cima e
para os lados, cercado por ministros tensos, ele pediu desculpas ao povo brasileiro pelos
"erros" do PT. Naquela quinta e
na sexta-feira, a parada se decidiu. Certo de que chegaria na
frente na eleição presidencial, o
PSDB resolveu deixar Lula
acuado e sangrando até o final
de seu mandato. A "estratégia
do sangramento" requeria um
tiroteio contínuo, de preferência na frente das câmeras de TV
-contra o presidente e todo o
seu entorno político e social.
Porém, à medida que se acumulam as sondagens desfavoráveis à oposição, um enfrentamento mais insidioso toma
conta do país. Aparecem análises e discursos políticos fundamentados na clivagem entre as
intenções de votos dos pretensos "ilustrados", de um lado, e
dos alegados "desinformados",
de outro; entre o Nordeste e o
Centro-Sul; entre os mais ricos
e os mais pobres. Como se a ditadura não houvesse se apoiado
nos mais ricos, como se não fora em São Paulo que Collor tivesse colhido a maioria dos votos de sua vitória em 1989.
Do lado do governo, Lula
também derrapa ao adotar um
paleio arrogante baseado no "já
ganhou!". Seu "desafio" para
que a oposição mostre as cenas
das CPIs no período de propaganda eleitoral encerra três
graves equívocos: desconsidera
o efeito negativo das imagens
sobre o escrutínio presidencial,
desrespeita os militantes e os
seus eleitores, que se sentem
humilhados pelo enxovalhamento do PT e, enfim e sobretudo, deixa entender que tudo
não passou de uma armação do
Congresso e da imprensa.
Diante do acirramento do
embate eleitoral, o senador Jefferson Péres (PDT-AM) tem
insistido na necessidade de organizar uma concertação suprapartidária que assegure a
governabilidade no próximo
mandato presidencial. O artigo
em que o senador expunha suas
idéias, publicado na pág. A3
desta Folha no dia 21 de maio,
apontava a "semi-falência do
Estado brasileiro" diante da
ofensiva lançada pelo PCC
(Primeiro Comando da Capital).
A propósito, penso que o
"Levante do Dia das Mães" é
um fenômeno sem paralelo.
Trata-se de uma insurreição
lançada por uma organização
criminosa, utilizando sua própria logística e as falhas e a corrupção dos órgãos de segurança pública. Fazendo mais de
uma centena de vítimas em
apenas três dias, o levante se
distingue dos conflitos que têm
espoucado mundo afora. Não
houve nenhum recorte étnico
ou religioso, nem guerra civil
ou catástrofe natural que servisse de suporte à insurreição,
como ocorreu noutras épocas e
noutros lugares. Em suma, São
Paulo assistiu, no mês de maio,
ao primeiro conflito típico do
século 21, à primeira grande insurreição criminosa gerada numa megalópole.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO , 60, é professor
titular de história do Brasil na Universidade de
Paris - Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras, 2000), "Rio de Janeiro - Cidade Mestiça" (Companhia das Letras,
2001) e um dos organizadores de "História da
Vida Privada no Brasil" (Companhia das Letras,
1997).
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