São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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Elio Gaspari

Mau sinal

Pela segunda vez, o nome do ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, entrou na roda dos habilitados para ocupar o Ministério da Justiça. Se vai haver convite, não se sabe. Muito menos se ele o aceita.
O que há de perigoso nessa idéia é o seu precedente. Da última vez, pensou-se em Pertence e convidou-se o jurisconsulto Iris Rezende, aquele que assumiu dizendo que, "às vezes, o crime é inevitável".

Censura contada

É muito bom o livro "Roteiro da Intolerância - A Censura Cinematográfica no Brasil", de Inimá Simões. Baseado numa pesquisa feita sobre a documentação produzida pelo pessoal da tesoura, conta a história da porta dos fundos do cinema nacional. Vai da proibição de "O Grande Ditador", de Charles Chaplin, no Estado Novo, à de "Último Tango em Paris", na ditadura militar.
Um de seus melhores momentos está no resumo que um censor fez do filme "Macunaíma": "Um preto que vira branco e vai para a cidade dar vazão aos seus instintos sexuais, voltando depois para a selva, de onde viera".

Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música. Ela protege o universal concreto do vernáculo. Concedeu uma de sua bolsas de estudo a todos os 48 chefes de Estado e de governo que assinaram a Declaração do Rio de Janeiro.
Gastaram 3.800 palavras para dizer nada.
Nesta pérola, por exemplo, resolveram o seguinte:
"Dar prioridade à superação da pobreza, da marginalização e da exclusão social, no contexto da promoção do desenvolvimento sustentável, bem como modificar padrões de produção e consumo, promover a conservação da diversidade biológica e do ecossistema global e o uso sustentável dos recursos naturais, prevenir e reverter a degradação ambiental, principalmente a decorrente de excessiva concentração industrial e de padrões inadequados de consumo, bem como da destruição das florestas e da erosão do solo, do esgotamento da camada de ozônio e do crescente efeito estufa, que ameaçam o clima mundial".
Madame lastima que tenham se esquecido de mandar uma boa palavra à ala das baianas da Mangueira.

A fantasia de www.FFHH.gov.br

FFHH parecia ter conseguido se tornar insuperável. Já disse (numa favela do Rio) que "vida de rico, em geral, é muito chata", que brasileiro tem mania de se aposentar cedo e que a vitalidade do Plano Real podia ser medida pelo fato de que suas duas empregadas fossem à Grécia e a Portugal.
O insuperável tornou-se interminável. Acaba de informar ao mundo que, "além de querer dominar o português, (os brasileiros) vão querer dominar duas linguagens: uma da Internet -a informática- e a outra a do inglês".
Para deixar claro do que estava falando, acrescentou: "É a demanda das populações mais carentes".
Seria fácil brincar com uma coisa dessas, dizendo que as filas dos candidatos a lixeiro são formadas por pessoas que, no fundo, estão procurando um endereço de correio eletrônico.
Infelizmente, o problema é bem mais grave. FFHH abdicou da curiosidade de conferir o que diz. Consegue fazer isso em cinco línguas, mas só há uma explicação para tamanha falta de conexão com a realidade: ele fez uma opção preferencial pela fantasia. Pior: uma fantasia professoral, na qual se coloca na posição de mestre, deixando à patuléia a tarefa de ouvi-lo com o silêncio e o respeito que os alunos devem aos sábios.
É capaz de dizer também que 75% dos contribuintes usaram a rede de computadores para remeter à Receita as suas declarações de Imposto de Renda. Em primeiro lugar, os carentes, que seu governo tornou isentos de emprego, são também isentos de pagar IR. Em segundo lugar, se 75% das declarações foram transmitidas por meio eletrônico, isso nada tem a ver com a falsa sugestão de que 75% dos contribuintes estão ligados à rede.
Quem entrega a sua declaração de Imposto de Renda a um amigo ou ao seu contador sabe a diferença.
O Brasil tem 160 milhões de habitantes, 17 milhões de telefones e 4 milhões de computadores residenciais. A Internet tem algo mais que 3 milhões de usuários. Estão no topo da pirâmide social. Os 10 milhões de desempregados existentes no país podem querer se conectar à Internet.
Antes disso, gostariam de ter um lugar para trabalhar, casa própria, colégio para o filho, hospital para a família e segurança para andar na rua. Não pedem o impossível. Já houve um candidato a presidente que prometia isso com os cinco dedos da mão.
Se FFHH resolvesse saber o que o seu governo vem fazendo na Internet, teria duas surpresas. Uma péssima, porém irrelevante. O endereço do Palácio do Planalto é uma miséria. Segundo a sua lista dos "Atos do Presidente", ele não trabalha. Em seis meses, listaram apenas 40 providências dignas de nota (duas por semana). Incluíram entre os atos presidenciais o fato de ele ter recebido, no dia 3 de março, o chanceler Luiz Felipe Lampreia. É provável que o seu governo tenha sido o único do mundo a desligar o correio eletrônico por meio do qual os cidadãos podiam se comunicar com o presidente.
A outra notícia é ótima e essencial. Graças ao ministro Sérgio ("não se apequene") Motta, seu governo enxotou a teleburocracia federal da Internet e deixou que a iniciativa privada a fizesse funcionar. Disso resultou um sucesso mundial. No seu primeiro ano de mandato, havia 200 mil brasileiros conectados à rede no exterior e apenas 100 mil usando-a no país. No ano passado, o número de usuários da rede cresceu 130%, tornando-se a maior tribo da América Latina.
Poucos são os êxitos de seu governo que podem ser comparados ao que conseguiu na Internet. FFHH não precisava dizer o que disse para falar bem de si. Bastava que tivesse exercitado a modéstia que pede aos outros, a curiosidade de aprender.

Lafer ouviu o poeta, mas esqueceu o funeral

O ministro do Desenvolvimento, professor Celso Lafer, é homem de verdadeira cultura. É um prazer vê-lo citar Camões. Pena que não vá tão bem quando trabalha com Manuel Bandeira.
Louvando as virtudes do trabalho sério, o professor recorreu à "Estrela da Manhã" e convidou a audiência a não permanecer em "uma agitação feroz e sem finalidade".
A idéia é bonita, mas se lendo o pequeno poema de Bandeira, intitulado "Momento num Café", verifica-se que, em matéria de opções, ganha quem ficar agitado. Ele escreveu o seguinte:
"Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta".
Do jeito que estão as coisas, a matéria que passa em frente ao bar de Lafer é a alma extinta da indústria nacional. Acompanhando-a, traídos pela vida, vão os 10 milhões de desempregados que a ekipekonômica produziu.


Entrevista

Sebastião Salgado


(55 anos, fotógrafo, autor do livro "Outras Américas")

Apesar de ser um fotógrafo de renome internacional, a sua formação é de economista. O senhor fez mestrado na Universidade de São Paulo, com os professores Delfim Netto e Affonso Celso Pastore, e doutorou-se na Universidade de Paris. Como economista, o que o senhor acha da paisagem brasileira?
É um enigma. O Brasil tem um setor de serviços que pode ser comparado aos melhores do mundo. Seu parque industrial tem dificuldades, mas é competitivo. Quando você vai à base da pirâmide e olha o campo, bate num sistema feudal, retrógrado. Depredamos o meio ambiente e preservamos relações socioeconômicas depredadas. É uma coisa histórica, que não foi produzida por descuido do governo Fernando Henrique Cardoso. Nossa produtividade é baixa, sobretudo na pecuária. Subsidiamos atividades pouco competitivas, como a soja, ou improdutivas, como o Proálcool, e deixamos de lado a agricultura familiar. O que é produtivo, em todo o mundo, é essa agricultura baseada em pedaços pequenos de terra. Eles absorvem com facilidade as mudanças tecnológicas. Numa propriedade extensa, isso é mais difícil. Você não consegue erradicar 15 mil hectares de soja. Quebra antes.
O que a sua vida de fotógrafo lhe ensinou a respeito do campo brasileiro?
A vitalidade da pequena agricultura. Se eu não fosse fotógrafo, talvez nunca tivesse batido em Itamaraju, no sul da Bahia. Lá, a Belgo-Mineira tinha desmatado 5.000 hectares de terra que serviriam de pasto. Esse gado renderia entre US$ 300 mil e US$ 500 mil ao ano. Como se tratava de uma empresa de fora da região, a maior parte do lucro iria embora. Os sem-terra queriam assentar 500 famílias nessa terra. Na região, outros assentamentos produziam um excedente de até cinco salários mínimos por família. As cooperativas que eles montam são verdadeiros instrumentos de análise de mercado. Uma das bobagens que circulam por aí é que os sem-terra só plantam para comer. Em 5.000 hectares, 500 famílias geravam um excedente de US$ 2,4 milhões por ano. Cinco vezes o que o gado geraria. Com uma diferença: o dinheiro ficaria em Itamaraju. No Brasil, a luta pela terra é uma coisa muito séria. O incentivo à formação de pequenas propriedades gera progresso. A dispersão dos agricultores gera atraso.
Em que medida a sua formação de economista influencia o seu olhar?
Esteticamente, em nada. O que influencia a estética é a formação da pessoa. Eu fui criado na luminosidade do vale do Rio Doce. Por isso, fotografo contra a luz. Andar pela sombra, buscá-la, faz parte da minha maneira de viver, desde criança. Os conhecimentos econômicos, que não são tão grandes assim, fazem parte do acervo cultural que move a minha curiosidade, influencia o meu caminho. Ajudam a entender onde eu estou, a comparar o que vejo com o que já vi. Outro dia, perguntaram-me o que eu recomendava para um jovem que quisesse ser fotógrafo. Recomendo que procure uma formação em sociologia, em economia ou em algo que lhes permita ver de outra maneira o que há diante da lente.

O perigo de um novo "bom negócio" do BB

O presidente do Banco do Brasil, doutor Andrea Calabi, divulgou na quarta-feira uma nota oficial que merece entrar para as antologias da parolagem nacional.
A certa altura ela diz o seguinte:
"A decisão do Banco do Brasil na ocasião em que assumiu a administração dos títulos da prefeitura paulista foi tomada sob a ótica de ser um bom negócio para o banco -credor de boa-fé que atuou de forma absolutamente legítima- e à luz das informações disponíveis quando a operação foi realizada".
Esse "bom negócio" jogou R$ 6,1 bilhões de papéis podres nos cofres do BB. E assim os papéis lá ficaram, como se realmente valesses R$ 6,1 bilhões. Agora, o prejuízo será repassado aos contribuintes.
Desde a hora em que começou a internar títulos da prefeitura (abril de 1995) e o momento em que aceitou o último papel do doutor Pitta, o Banco do Brasil dispunha das seguintes informações:
1) o prefeito da cidade era Paulo Maluf;
2) seu secretário das Finanças (e sucessor) era Celso Pitta;
3) Em 1996 quando Maluf elegeu Pitta, a prefeitura devia R$ 6 bilhões.
Arrecadava R$ 7,6 bilhões. Os sábios do BB acharam "bom negócio" comprometer o equivalente a 60% de seu patrimônio com créditos de um cliente que devia 79% do que faturava.
Segundo Calabi, "a partir do resultado dos trabalhos da CPI dos Precatórios, o Banco do Brasil passou a discutir o problema com o Poder Executivo, com o Poder Legislativo e com o próprio município de São Paulo". Discutiu, discutiu, e fez o quê? Nada. Os títulos dos precatórios continuaram no seu cofre. Pior: continuaram iludindo a boa-fé do público que lê o seu balanço, pois até ontem esses papéis eram contabilizados (com a tolerância do Banco Central) como créditos bons.
A mutreta dos precatórios foi denunciada em novembro de 1996. O Banco do Brasil não precisava esperar "o resultado da CPI" (de julho de 1977) para perceber que "o bom negócio" era mico. Até as maçanetas do BB sabiam que o Banco Central tentara abortar uma emissão de títulos.
A conta da malfeitoria será paga por todos os brasileiros, inclusive os que vivem em Abaiara, no interior do Ceará, e não sabem quem são Calabi e Pitta, muito menos o que vem a ser um precatório.
O atual presidente do Banco do Brasil nada teve a ver com a maracutaia dos precatórios. Também não foi Calabi quem abriu o cofre para que eles entrassem. (Como se sabe, no governo FFHH papel podre anda sozinho.) A coisa fica preta quando ele informa, com a naturalidade de quem diz a hora, que a decisão de internar os papéis de Pitta foi tomada "sob a ótica de ser um bom negócio".
Ou o Banco do Brasil saiu-se com tamanha parolagem por pura arrogância, para proteger os donos do desastre, ou amanhã de manhã o doutor Calabi pode fazer outro "bom negócio".



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