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ENTREVISTA DA 2ª
CLÁUDIO DE SENNA FREDERICO
Especialista em transportes é contra benefícios às montadoras e a favor da limitação do uso do automóvel
"O transporte público emprega mais do que a indústria de carros"
ALENCAR IZIDORO
DA REPORTAGEM LOCAL
A liberdade do cidadão de comprar um carro ou de se deslocar
diariamente com esse meio de
transporte individual deve ser
questionada. O automóvel, assim
como as drogas, tem componentes nocivos à sociedade, e a sua
publicidade deveria ser proibida.
Essas opiniões são do engenheiro Cláudio de Senna Frederico,
60, que, desde abril passado, integra um grupo de nove especialistas convidados pela UITP (principal associação internacional de
transportes públicos) para elaborar as diretrizes do setor que deveriam ser adotadas até 2020.
"O automóvel é um agente não
só de transporte, mas modificador da cidade, que cria consequências para os outros", afirma
Frederico, crítico ferrenho da intenção do governo de dar vantagens às montadoras para atenuar
a crise automotiva.
Frederico defende a abertura da
"contabilidade" do transporte,
que, segundo ele, mostrará que os
usuários dos carros pagam somente de 10% a 20% dos custos
que os veículos representam. O
restante é diluído na conta de toda
população-com os congestionamentos, a poluição e os acidentes.
Para ele, sem a ampla divulgação dessa "contabilidade", a sociedade vai aprender sobre a necessidade de racionalizar e restringir a utilização do carro apenas quando chegar ao "caos".
Frederico também contesta a
idéia de que, para resolver seus
problemas de transporte, São
Paulo só deveria investir em metrô. Ele é defensor da substituição
de alguns projetos por alternativas mais baratas. Cita como modelo a proposta do Transmilênio
(um tipo de corredor de ônibus
moderno), adotada há três anos
em Bogotá (Colômbia).
Folha - Qual é a intenção do grupo formado pela UITP?
Cláudio de Senna Frederico - O
objetivo foi reunir um grupo que
pense sobre o que está acontecendo com o transporte no mundo e
que motive todos a caminhar numa direção. Há idéias heterogêneas. O que deve ser feito na América Latina até 2020 é completamente diferente do que deve ser
feito em Paris. A Europa construiu seu transporte coletivo na
época em que ninguém contestava o fato de que ele era o modo como as pessoas deveriam se locomover. Na América Latina, acontece o contrário. Fala-se a partir
de uma estaca zero, sem dinheiro,
e há uma série de estímulos para
que todos tenham seu carro.
O modo de transporte determina como a cidade será. Se a China
tivesse uma taxa de uso de automóvel semelhante à da Europa,
não haveria na terra metais e
combustíveis suficientes para alimentar essa frota. Esse modelo
[baseado no carro] requer que
mais de 50% da terra seja dedicada ao transporte.
Folha - O combate ao transporte
individual é uma unanimidade?
Frederico - Não. O que precisa
haver não é uma unanimidade na
conclusão, mas, sim, discutir no
mesmo plano. Não se pode discutir o automóvel sem discutir o que
ele acarreta. Não se pode discutir
o transporte meramente para saber qual é forma mais rápida para
ir daqui ao aeroporto. Eu, como
consumidor, teria direito de ir
aonde eu quiser. Mas a discussão
não é bem essa.
Temos que discutir as consequências do seu direito de escolha
e o custo que você vai pagar por
ele. É um problema de contabilidade. Ou o carro paga o total da
conta que ele representa para a
sociedade ou todos pagam a conta. Daí, ciente de quanto custa tudo, cada um escolhe e paga. O automóvel custaria dez vezes o que
custa hoje. A estimativa mundial é
que o comprador arca, em relação
aos custos do automóvel, com
10% a 20% do total que todos pagam para que exista esse carro.
Folha - Os motoristas reclamam
que já gastam muito com IPVA, gasolina, pedágio...
Frederico - O que as pessoas estão talvez reclamando não é de
pagar mais ou menos imposto. É
de não terem controle ou confiança na destinação. E isso é real. Em
vez de a contabilidade pública explicitar qual é o custo das coisas,
incluindo tudo no pacote da decisão, ela mostra uma conta única.
Folha - A adoção de medidas de
restrição veicular, como pedágios
urbanos, é uma tendência?
Frederico - Eu diria que a restrição aos automóveis não é uma
unanimidade. Mas já está claro
para as sociedades mais evoluídas, inclusive para a norte-americana, que não é uma simples decisão de consumo, como usar camisas azuis ou amarelas.
O automóvel é um agente não
só de transporte, mas modificador da cidade, que cria consequências para os outros que não
são donos de automóvel.
Quando mais um cara decide
comprar um automóvel, alguém
na cidade precisa pensar em mais
rua, em mais estacionamento, em
mais médicos.
Folha - Em São Paulo, quando se
fala em adotar alguma medida
mais drástica de restrição veicular,
os técnicos se dividem: uns acham
que, antes, é preciso oferecer uma
opção de transporte de qualidade;
outros, que essa medida é a única
forma de obter recursos para a melhoria. Qual é a posição do sr.?
Frederico - Os dois têm razão.
Um, com desconfiança do que vai
acontecer. Outro, pela falta de recursos para fazer acontecer. Talvez fosse mais fácil, pelo menos
para determinados projetos, aceitar a vinculação de recursos.
Hoje, a maioria dos recursos está vinculada a boas intenções, à
saúde, à educação. Mas qual saúde? Dentro de 20 anos terei qual
pronto-socorro? Qual atendimento? É preciso explicitar. Se você disser: "para um transporte de
qualidade, precisamos de mais
100 km de metrô. Vai custar tanto.
Pode ser feito, mas os recursos
vão ter que vir daqui e só poderão
ser usados para isso". Eu não vou
dizer que as pessoas vão sair loucas por aí querendo dar dinheiro
para esse projeto, mas talvez já comece a mudar o diálogo.
Folha - O sr. seria favorável à adoção de um pedágio urbano mesmo
contra a vontade popular?
Frederico - Eu sou sempre contra um governo adotar uma coisa
que seja contra a vontade popular. Ele tem que tentar conseguir
que a opinião pública mude. Há
duas formas. A primeira, educacional. Se você muda a contabilidade, talvez as pessoas comecem
a enxergar. A outra [forma] é
aquele processo da guerra. Hoje
os Estados Unidos conseguem
qualquer coisa citando uma palavra mágica: 11 de Setembro. O cara fala: todo mundo vai andar sem
calça, qualquer absurdo, todo
mundo fica quieto e aceita.
É deixar o caos prevalecer, as
pessoas aprenderem por meio do
caos. As coisas vão piorando, piorando, e aí as pessoas começam a
se interessar pelo assunto. Hoje, a
tendência é essa.
Folha - Há quem considere elitista a intenção de cobrar mais pelo
uso do carro. Os ricos teriam como
pagar e continuar com seus carros.
Os pobres, não. Afinal, pobre tem
direito de ter e de usar carro?
Frederico - Na nossa estrutura, o
pobre não tem direito a absolutamente nada que não seja público.
O carro não é um picolé. Se é caro,
você já definiu que não é para o
pobre ter. Com o transporte público acontece o contrário.
Folha - Mas o carro, então, é coisa
para rico?
Frederico - Automóvel é coisa do
mercado de consumo, para quem
puder consumir. O único modo
de o carro ser um direito do pobre
é ele ser dado. Ninguém fez isso
em lugar nenhum do mundo.
Jamais foi difundida a idéia de
que o automóvel participa das
coisas que devem ser fornecidas a
todos, assim como a água, o ar, a
educação, a saúde.
No fundo, as pessoas reconhecem que o carro não é uma necessidade fundamental.
Folha - O transporte público é para quem? É para o rico também?
Frederico - O transporte público
é para todo mundo dentro de determinadas circunstâncias.
O transporte público tem que
ser uma coisa em que a opção é
feita em função da necessidade da
cidade, e não do indivíduo.
O crack, por exemplo, deve ser
livre? Deve ser bom, não? Os caras
experimentam e depois não largam... Mas deve ser um direito o
cara continuar a usar crack?
Folha - O carro é uma droga?
Frederico - Ele tem um componente disso. É inevitável ter um
componente social para determinadas coisas que, embora sejam
agradáveis, vão trazer consequências para a sociedade. Ela vai ter
que dizer: vai ter que ser usado limitadamente.
Folha - A popularização do carro é
negativa?
Frederico - Na medida em que a
pessoa só consegue se realizar socialmente em função do carro, a
popularização é negativa.
Hoje, no Brasil, o carro já começa a ser mais importante do que a
moradia. Existe um componente
que melhora a vida das pessoas.
Mas existe um lado dessa opção
que é pré-conduzido. Esse componente é muito ruim.
Quando se fala em disciplinar o
carro, não se tem a intenção de
eliminar o automóvel. Mas pode
aumentar o nível de racionalidade
urbana do uso do carro e diminuir um pouco essas pressões psicológicas.
Eu não tenho a menor dúvida
de que, da mesma forma que a sociedade acha natural que não se
pode ter publicidade de fumo do
cigarro, não poderia haver publicidade de automóvel.
Ou ele é uma necessidade que
não precisa de publicidade, ou ele
está se promovendo como uma
necessidade, criando uma pressão urbana.
É diferente de uma propaganda
de camisa. Se eu tiver dez camisas,
eu não mudo a cidade, não mudo
a vida dos outros.
Folha - Há especialistas que
apontam a construção de mais metrô como a única solução do transporte na cidade de São Paulo. O sr.
concorda com isso?
Frederico - Não. Sem uma rede
maior de metrô, não vai se resolver o problema de transporte público. Mas uma rede maior pode
também não resolver. Ou seja, é
necessário, mas não é suficiente.
O México é um exemplo. A situação lá é pior do que a daqui. E
eles têm mais metrô do que a gente. Tudo bem que é necessário ter
mais metrô. Mas há outras coisas
que precisam ser feitas.
Os outros meios de transporte
coletivo precisam melhorar. Durante muito tempo, ficou todo
mundo escondido atrás da saia do
metrô.
Folha - Mas a prioridade deve ser
dada ao metrô?
Frederico - O metrô apenas faz
parte da equação de solução. O
Transmilênio é uma novidade a
ser considerada.
A ligação com Guarulhos [que
consta do plano de investimentos
do Estado para 2020] deve ser metrô ou Transmilênio? Acho que
vale pensar.
Folha - O Transmilênio poderia
substituir os projetos de metrô?
Frederico - O Transmilênio, em
uma cidade média, pode enfrentar essa discussão.
Em São Paulo, você precisa
aproveitar a ferrovia, construir linhas novas [de metrô] e pensar
melhor se todas as linhas que se
pretendia fazer devem ser feitas
ou se alguma pode ser corredor
de ônibus. Em cidades do porte de
São Paulo, não há solução sem
adotar todos os meios, inclusive
metrô e Transmilênio.
Folha - Essa visão já é bem aceita?
Frederico - Já há um consenso.
Mesmo no Metrô de São Paulo. A
única dificuldade é que, no Metrô,
muitas vezes só são defendidos
outros [meios de transporte] que
sejam complementares a ele, ou
seja, sempre um processo hierárquico de subordinação, de capilaridade. Existem outros meios de
transporte que competem com
metrô e que, em certas circunstâncias, devem ser adotados em
vez de metrô. O que não significa
que o metrô não deva existir e não
deva se expandir.
Folha - O que o sr. acha do modelo
de transporte da prefeitura?
Frederico - Eu tenho visto com
bons olhos. Provavelmente, há
uma série de falhas -assim como
em todos os processos. Mas acho
que alguma coisa tinha que ser
feita. E ela está sendo feita.
A prefeitura está tentando, tem
um projeto com coerência, com
algumas falhas. A prefeitura fez
uma opção estratégica: prefere fazer 400 km de melhorias de faixas
de ônibus do que 50 km de grandes corredores.
Eu não concordo muito com isso. Acho que esse negócio da faixa
é interessante, mas se viesse como
um complemento de uma estrutura básica mais pesada.
Folha - O transporte coletivo tem
que ser subsidiado?
Frederico - Ele já é e tem que
continuar sendo subsidiado. Temos que equilibrar a balança. É
preciso decidir coisas óbvias. Você discute o fato de reduzir IPI para automóvel porque está gerando desemprego, mas você nunca
conseguiu resolver que o ônibus
não pague IPI. O carro popular,
durante muito tempo, não pagou
IPI, o táxi não paga. Por que o ônibus paga?
Folha - O governo está negociando benefícios às montadoras. O
que o sr. acha dessa discussão?
Frederico - É equivocada. A minha pergunta é a seguinte: essa é a
forma mais barata de gerar emprego? A indústria automobilística gera cada vez menos emprego
por real investido nela. O transporte público emprega muito
mais. O que tem que ser contabilizado no transporte público para o
passageiro pagar é uma parcela
que precisa ser definida. Você
chama isso de subsídio? Mas você
diz que o carro é subsidiado? Ninguém diz. Todo mundo diz: eu
pago meu carro, pago todas as
contas. Paga uma ova! Paga só
20% da conta. As outras contas
não são apresentadas.
Folha - A discussão de subsídio às
montadoras é restrita ao Brasil?
Frederico - Eu acho um absurdo.
Não é somente aqui. Sempre
aconteceu. A visibilidade da indústria automobilística não é só
pelo produto. Uma vez que ele se
tornou um produto muito visível,
muito desejado, popular, ele fez
isso em termos também de se
aliar aos destinos da nação. Se a
indústria automobilística está
mal, o país está mal. A bandeira
brasileira e a da indústria automobilística estão abraçadas.
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