São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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LANTERNA NA POPA
Os paradoxos da privatização

ROBERTO CAMPOS

"Não é função do governo fazer um pouco melhor, ou um pouco pior, o que os outros podem fazer, e, sim, fazer o que ninguém pode fazer", Lord Keynes

O movimento mundial de reformatação do Estado encapsula vários paradoxos. O primeiro paradoxo é que alguns dos programas pioneiros de privatização foram deflagrados por governos trabalhistas com retórica de esquerda, como a Austrália e a Nova Zelândia. E em termos de rapidez do processo, os campeões foram países ex-comunistas como a Rússia e a República Checa. Na primeira fase do programa, não venderam empresas, e, sim, distribuíram gratuitamente ao público "bônus de participação" (vouchers), que poderiam ser trocados por ações de empresas estatais ou de fundos de investimento. Somente numa segunda fase, quando começaram a ser privatizadas grandes empresas, é que se implantou o mecanismo de leilões. Infelizmente, sobretudo na Rússia, grande parte do patrimônio foi parar nas mãos dos tecnocratas do partido comunista, que já gerenciavam as empresas ou tinham informações privilegiadas para abiscoitá-las.
O segundo paradoxo é que as privatizações são uma forma capitalista de realizar o sonho socialista de "difusão" da propriedade. Esse objetivo pode ser obtido diretamente pela pulverização da venda (frequentemente a preços subvencionados) ou pela participação de fundos de pensão dos trabalhadores. Na fórmula inglesa de Mrs. Thatcher, a privatização se tornou um instrumento deliberado para a criação do "capitalismo do povo". A dificuldade da pulverização é que, quando houver atraso prolongado nos investimentos ou for grande a defasagem tecnológica das estatais, convém ter "investidores estratégicos", isto é, grupos estruturados e fortes que possam assumir compromissos firmes de investimento ou atualização tecnológica.
A quem cabe o pioneirismo da idéia da privatização? O vocábulo foi primeiro usado pelo economista inglês David Howell em 1970. Somente se transformou, entretanto, em movimento ideológico e plataforma política na década dos 80, no governo de Margaret Thatcher. Precursores houve vários. O mais pitoresco foi Pedro, o Grande, czar da Rússia. Passando por Kazan, a caminho do mar Cáspio, visitou duas fábricas de tecidos, uma estatal e outra privada. Esta, limpa e operando a plena carga, e a outra com trabalhadores bêbados e teares quebrados. Autocrata, simplesmente doou a fábrica estatal ao empresário privado, antecipando-se em quase três séculos ao programa de privatização por "vouchers" de Boris Yeltsin.
Neste continente, houve um caso de pioneirismo na privatização por doação. Na década de 70, na província da British Columbia, no Canadá, um governador socialista estatizou empresas de gás natural e produtos florestais, sob uma holding estatal. Quando os conservadores ganharam a eleição em 1975, revogaram as estatizações, doaram cinco ações da holding a cada habitante e puseram à venda até 5.000 ações por indivíduo, a um preço simbólico (que Brizola chamaria de "preço de banana").
A privatização há muito deixou de ser um modismo neoliberal para se tornar parte essencial da modernização do Estado, em função de três transformações estruturais: 1) os governos deficitários têm de concentrar recursos na área social; 2) a rápida evolução tecnológica reclama velocidade decisória inatingível nas estatais e 3) a soberania do consumidor exige diversificação dos produtores e contestabilidade judicial do fornecedor inadequado.
As razões "genéricas" da privatização, que a tornam consensual no resto do mundo (conquanto a questão continue no Brasil estranhamente ideologizada), são econômicas, políticas, filosóficas e éticas. Pode-se citar cinco razões "genéricas" internacionalmente aplicáveis e cinco razões mais pertinentes ao caso brasileiro. As razões "genéricas" são: a) a compactação do governo pelo retorno às suas funções clássicas, com redução das burocracias centralizadas; b) alívio fiscal pela receita da venda, eliminação de déficits e subsídios, transferência de dívidas e desobrigação de investir; c) melhoria de eficiência, pela concorrência inerente ao setor privado ou por ações regulatórias que simulem ambientes competitivos; d) despolitização das decisões gerenciais; e) democratização do capital.
As razões "específicas" aplicáveis ao caso brasileiro são: a) a redução da taxa de corrupção; b) a exploração dos "privilégios do gigolô". Vendendo as empresas, o governo delas continua sócio oculto por meio do Imposto de Renda. Como o Tesouro recebia dividendos pífios ou nulos e não podia executar judicialmente as estatais, a privatização resulta em melhor fluxo de caixa para o Tesouro pela exação mais severa de impostos; c) a privatização atrai capitais estrangeiros e pode induzir o capital volátil a se tornar permanente; d) se aplicada a receita dos leilões na amortização da dívida pública reduzir-se-iam os juros em benefício da expansão do setor privado (que é o setor contribuinte).
É lamentável que em vez de se discutirem os temas filosóficos da privatização, o debate político e econômico pré-eleitoral se concentre num aspecto ridículo: o preço mínimo arbitrado pelo governo para os leilões. Num mecanismo de leilões competitivos, trata-se de questão irrelevante: se o BNDES ou qualquer agência governamental errar para baixo (fixando um "preço de banana"), haverá ágio; se errar para cima, o leilão fracassará.
Registre-se um novo paradoxo da privatização. Na Inglaterra, o país líder do movimento, que tem na tecnologia da privatização um bom artigo de exportação e que lhe deu a dignidade de uma ciência nova -a micropolítica-, as privatizações atravessam uma onda de impopularidade. Onda felizmente insuficiente para levar o "novo trabalhismo" a reversar as privatizações feitas ou sequer a interromper significativamente o processo. Esse clima de opinião não tem fundamentos objetivos, porque o sucesso das privatizações foi inquestionável. Dois elefantes brancos -a British Steel e British Airways- tornaram-se altamente rentáveis, sendo a primeira uma das aciarias de mais baixo custo e a segunda, a aerovia mais lucrativa do mundo. A privatização das telecomunicações reduziu pela metade tanto as tarifas como as ligações frustradas. O preço do gás doméstico privatizado caiu em 31% e o da eletricidade em 20%.
A grande lição é que, nos casos em que a tecnologia destrói os monopólios naturais, caem os preços rapidamente; quando isso não acontece cabe às autoridades regulatórias simular um ambiente de quase competição.
O desapontamento atual provém das privatizações de água e esgoto, que exigiram aumento de tarifas, pois eram necessários substanciais investimentos para elevar os serviços ao padrão da União Européia. A privatização foi também insatisfatória nas ferrovias e há resistências à privatização do metrô. Naquele caso, houve apenas uma semiprivatização, de gerenciamento complexo, pois que as instalações ferroviárias (linhas, estações e sinais) foram apenas arrendadas a empresas privadas, mas a operação dos serviços continuou estatal. Esse híbrido administrativo não funcionou bem. O equivalente no Brasil são as "parcerias" defendidas por algumas estatais. Se estas continuam majoritárias, o que ocorre é uma estatização de poupança, perdendo-se a principal vantagem da privatização, que é a capacidade gerencial privada.
No Brasil, a privatização é infelizmente menos consensual que nos vizinhos -Argentina, Chile e Peru. E o nível do debate é baixo, repisando-se argumentos dos que resistem mentalmente à falência do socialismo e à globalização. Quando ouço as arengas de Brizola e Lula sobre privatização, lembro-me da piada de Osvaldo Aranha sobre os patrocinadores de idéias obsoletas: "Continuam fazendo a festa dos urinóis na época da privada da patente".

Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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