São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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GUERRILHA
Caso envolveu a estudante Elizabeth Mazza Nunes Após 30 anos, morte
Após 30 anos, morte de militante ainda é tabu para a esquerda



"Vivemos uma longa história de sofrimento, esperanças, incertezas e mentiras"
MARIO CESAR CARVALHO
da Reportagem Local

O ex-guerrilheiro Pedro Lobo, 68, tem pesadelos com as torturas que sofreu em 1969, mas o que lhe tira o sono é uma cena que o faz sentir uma "tristeza profunda" 30 anos depois: ele está enterrando uma militante que morreu com um tiro acidental, mas não consegue lembrar o local da cova.
"Como seria bom achar essa cova...", suspira Lobo.
A cova contém o segredo mais bem guardado pela esquerda que pegou em armas no final dos anos 60 no Brasil -a ossada de uma jovem morta acidentalmente, ao que tudo indica, por uma companheira. Foram 30 anos de segredo. O disparo ocorreu entre junho e julho de 1968. O livro "Mulheres que Foram à Luta Armada", do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, revelou o apelido da jovem -Beth.
Agora, a Folha revela a sua identidade: ela se chamava Elizabeth Conceição Mazza Nunes, tinha 21 anos e estudava na Escola de Sociologia e Política, em São Paulo.
Foi por decisão de guerrilheiros que viriam a formar a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) que a morte virou segredo de estado e tabu.
"Escondemos essa morte porque a ditadura ia fazer um bafafá contra a gente se soubesse", justifica Lobo. "Iriam dizer: Olha a alma do terrorista como é que é! Mata o próprio companheiro e esconde o corpo."'
Durante um mês, a Folha entrevistou familiares e amigos de Elizabeth e ex-guerrilheiros que participaram da operação de ocultação. A história que emerge é simbólica da paranóia que se instaura quando o regime militar resolve tratar inimigos políticos como inimigos de guerra e estes respondem a bala.
O resultado dessa paranóia é que só no último mês a família de Elizabeth descobriu as circunstâncias em que ela morreu. Zabeth, como era chamada, levou um tiro de uma mulher ligada à VPR.
"Vivemos uma longa história de sofrimento, esperanças, incertezas e mentiras", diz Mariza Mazza, 57, irmã de Elizabeth. Agora, a família só tem um desejo: recuperar a ossada da irmã morta, uma missão quase impossível, como se verá. Elizabeth foi parar no grupo que viria a formar a VPR porque era mulher de Alípio Antonio Nunes Neto, dirigente da organização.
Nunca foi guerrilheira, segundo Dulce Maia, 59, militante da VPR que participou de assaltos a banco e atentados a bomba.
Ledercy Gigante de Oliveira, 54, amiga de Elizabeth e hoje professora de sociologia em São Carlos (SP), conta que nunca conversou sobre política com ela: "A Zabeth nunca teve militância. Ela ia para minha casa enquanto o marido ia para reuniões. Tomávamos cerveja e depois o Alípio ia buscá-la".
À época da morte, em meados de 1968, o grupo guerrilheiro vivia uma escalada de ações espetaculares. Em maio, havia assaltado um hospital militar em São Paulo. No dia 26 de junho, arremeteu um carro-bomba contra o QG do 2º Exército, que resultou na morte do soldado Mario Kozel Filho.
A morte de Elizabeth ocorreu no período do carro-bomba. "Eram duas moças num apartamento. Uma estava lendo enquanto a outra manuseava um revólver. Repentinamente, o revólver disparou", descreve Dulce Maia, que diz não ter estado no local do tiro.
Ela lembra que providenciou um saco de dormir para embrulhar o corpo: "Ela estava em posição fetal, o que facilitou o transporte".
Pedro Lobo entrou em cena quando o corpo já estava no carro, um Volkswagen, segundo ele. Ele e outros três guerrilheiros pegaram a rodovia Raposo Tavares e depois de Cotia entraram à direita, numa estradinha de terra, ao lado da qual o corpo foi enterrado (leia mais na página ao lado).
Dulce não foi ao enterro -foi encarregada de destruir fotos do casamento e a frasqueira que Elizabeth levava. A organização decidiu que o viúvo Nunes Neto deveria sair do país. Foi Dulce quem levou-o à rodoviária de São Paulo para pegar um ônibus para o Rio, de onde embarcou para Paris.
O viúvo teria sido visto pela última vez em 1986, no enterro da mãe. Ex-guerrilheiros da VPR dizem não saber onde ele está hoje. Após a morte, começou a fase das "mentiras" de que fala Mariza. A primeira versão que chegou à família, por intermédio da mãe do viúvo, dizia que o casal havia partido para Cuba. Nada mais foi dito. Foi um período desesperador para a família, segundo o contador Antonio Primo Mazza Junior, 49, irmão de Elizabeth. "Minha mãe chorava o tempo todo", conta.
No desespero, um conhecido da família levou uma foto de Elizabeth a Chico Xavier. Sua resposta foi: "Vocês devem rezar e esperar notícias pelas vias normais", segundo Mazza Junior. A família interpretou o enigma como um sinal de que ela morrera.
Em 1979, após a anistia, Mazza Junior procurou o advogado José Carlos Dias, da Comissão de Justiça e Paz, uma das principais fontes à época sobre desaparecidos, e ouviu outra versão: Elizabeth fora morta por militares na fronteira com o Paraguai, ao tentar sair do país em 1968, 1969. "Só em 1978 nos conformamos que a Beth estava morta", diz Mazza Junior.
Mariza, a irmã, foi a primeira a descobrir a verdade. Em 1986, durante o lançamento de um livro sobre a visita do filósofo Jean-Paul Sartre em Araraquara, onde Mariza vive, um professor da Unicamp chamou-a num canto e contou a história do disparo acidental.
Mariza diz ter ficado chocada -e não contou nada a ninguém.
Crente de que a irmã fora morta por militares na fronteira com o Paraguai, Mazza Junior cogitou entrar com um pedido de indenização junto ao governo. Mariza demoveu-o da idéia do pedido há um ano -contou-lhe a história do tiro acidental.
Mazza Junior diz que só teve certeza das circunstâncias em que a irmã morreu lendo uma reportagem da Folha de 3 de maio, sobre o livro "Mulheres que Foram à Luta Armada". "Vi o nome Beth e disse: 'É ela, é minha irmã'. Tive a confirmação da morte lendo a Folha". Ele não é espírita, mas acha que eram essas "as vias normais" de que falava Chico Xavier.



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