São Paulo, quarta-feira, 05 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI

Uma nova demagogia: quem não é carente é rico

Bateu uma praga na parolagem nacional. Primeiro apareceu a noção de "carente". A isso somou-se uma neurastenia politicamente correta, e brotaram programas destinados a cuidar de todos os excluídos. Tem o Peti, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, já houve o Cão Legal, do prefeito Celso Pitta, há ainda o Morar Melhor e o Luz no Campo (como se a houvesse nas cidades). Todos juntos não somam metade do que a Viúva gastou no Proer (R$ 21,6 bilhões) para atender banqueiros carentes.
Começa-se agora a construir uma nova lorota. Nela, quem não é carente é rico. Um estudo da Secretaria da Receita Federal informa que uma elevação do teto de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física significará um "aumento da carga tributária sobre o consumo", provocando a "transferência de ônus tributário de uma parcela pequena e mais rica da sociedade para os consumidores em geral".
É o que o professor Paul Singer chama de "gestão por ultimato". Ameaça-se a choldra com a arrogância dos centuriões romanos nas colônias asiáticas.
Segundo os cálculos do Unafisco, seis anos de congelamento das faixas de rendimentos trouxeram para dentro da malha de contribuintes algo como 2 milhões de pessoas. Esse foi um dos fatores que permitiram um aumento de 47% acima da inflação na arrecadação do Imposto de Renda da Pessoa Física entre 1994 e 2000. Entre 1996 e 2000, o número de declarantes aumentou em 13,2%.
Uma simulação mostra que, em 1995, um cidadão que ganhava R$ 1.300 por mês, com um dependente e R$ 200 mensais de plano de saúde, não pagava Imposto de Renda. Com o salário corrigido de acordo com os índices de aumento do salário mínimo, hoje ele paga R$ 1.128 anuais. Isso equivale a 4,8% de sua renda. Se a tabela tivesse sido corrigida de acordo com os mesmos índices que aumentaram seu salário, pagaria R$ 622, ou 2,64% da renda.
Foram seis anos de tunga sistemática contra quem ganha menos. Pode-se admitir que fosse necessária, mas o governo deve reconhecer que a praticou com a mão leve dos batedores de carteira. FFHH dava-se ao luxo de dizer que jamais permitiria um aumento da carga tributária contra a classe média. Em suas palavras: "Deus me livre de tirar alguma coisa da classe média, até porque eu pertenço a ela e não quero sofrer mais, não".
O grande momento do estudo da Receita está no ponto em que se refere à "parcela pequena e mais rica da sociedade". Segundo o projeto de revisão das faixas, ficariam isentos do Imposto de Renda os cidadãos que ganham até R$ 1.250. (Hoje a isenção vai até R$ 900.)
Uma tributoteca capaz de achar que um trabalhador com R$ 1.251 de salário faz parte da "parcela pequena e mais rica da sociedade", de três, uma:
1) Pensa que os outros são idiotas;
2) Não sabe português;
3) Nunca viu um rico.
Uma pessoa que ganha R$ 1.250 não pode ter o seu nome associado à palavra rico. É um raciocínio tão inteligente quanto dizer que dois mendigos sem um níquel andam pela rua e um deles, depois de achar uma moeda de 50 centavos, fica "mais rico" que o outro. A parolagem da Receita é intelectualmente desonesta, pois seus computadores sabem muito bem que essa "parcela pequena e mais rica da sociedade" está em outro andar. Aceitando-se que uma pessoa com R$ 6.000 de renda mensal seja rica, o número de contribuintes nessa condição é de 221 mil.
Examinando-se esse andar, verifica-se que o número de brasileiros que declararam rendimentos superiores a R$ 276 mil num ano está em apenas 8.000. Ou seja, no mundo da fantasia de Brasília, só há no Brasil 8.000 pessoas com salários superiores a R$ 23 mil. No mundo real, esse deve ser o número de pessoas que ganham esse dinheiro e têm menos de cinco gravatas Ferragamo.
Pode-se entender que a Receita não consiga arrecadar mais no andar de cima. Pode-se também admitir que ela prefira tungar o de baixo, onde pode beber nas fontes salariais. Não é educado, contudo, que, depois de meter a mão no bolso da patuléia, ela pretenda tratá-la como néscia.
Do jeito que vão as coisas, o governo acabará criando o PróBobo. Nele, cada família que ganha em torno de R$ 1.250 mensais, mantém os filhos na escola, não usa a rede oficial de saúde e não confia no sistema de segurança pública ganhará uma carteirinha de plástico. Terá estampados o logotipo do programa Avança Brasil, os cinco dedos de FFHH e a inscrição "Governo Federal". Não servirá para rigorosamente nada.


Texto Anterior: Senado: Presidência do Banpará desconhecia cheques
Próximo Texto: Panorâmica - Personalidade: Crânio que legista suspeita ser de Ulysses será submetido hoje a radiografia
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.