São Paulo, Terça-feira, 05 de Outubro de 1999
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CELSO PINTO

A heterodoxia brasileira

Em meio à confusão internacional que se seguiu à crise russa, no segundo semestre do ano passado, três países usaram meios heterodoxos para tentar se livrar de ataques especulativos contra suas moedas: Brasil, Hong Kong e Malásia. Dos três, só o Brasil falhou.
Na análise feita pelo "International Capital Markets", recém-publicado pelo FMI, a heterodoxia brasileira foi entrar no mercado internacional comprando títulos da dívida externa, os bradies. O governo de Hong Kong entrou comprando US$ 15 bilhões em ações na sua Bolsa de Valores. A Malásia impôs controles sobre capitais externos.
Tradicionalmente, países sob ataque especulativo se defendem vendendo dólares, ou ativos dolarizados, e elevando os juros. A sofisticação do mercado financeiro e a proliferação de canais, contudo, têm feito com que, cada vez mais, investidores apostem contra a moeda de países comprando diferentes ativos, em diferentes mercados.
No caso do Brasil, uma linha de defesa heterodoxa se fez no mercado de bradies. O estudo do FMI não fala em números, mas estimativas confiáveis indicam que o governo brasileiro comprou cerca de US$ 6 bilhões em bradies tentando evitar uma desvalorização dos papéis e, em consequência, um aumento dos juros e do prêmio de risco do país. O governo nunca comentou o assunto.
O prêmio de risco dos bradies, como nota o estudo, passou a ser visto como um bom indicador do risco do país. São títulos negociados no exterior e sua variação não afeta diretamente as reservas. No entanto, quando seu preço cai muito, bancos brasileiros que tomaram empréstimos para montar posições alavancadas em bradies são chamados pelos credores para cobrir margens adicionais de garantia.
Acabam vendendo ativos no Brasil para fazer caixa, comprar dólares e remetê-los. Indiretamente, a queda nos bradies provoca queda nas reservas e nos preços dos mercados internos. Foi exatamente o que aconteceu em 97.
Para evitar esta pressão, "fontes de mercado identificaram significativas compras em nome do governo em certos momentos em 1998", afirma o estudo. O objetivo era colocar os especuladores contra a parede. Quem havia vendido bradies para entrega futura, sem ter os papéis, apostando na queda dos preços, acabou tendo prejuízo. Graças às compras do governo, o valor dos bradies se sustentou durante algum tempo, apesar da deterioração de outros mercados brasileiros e da perda de reservas.
Foi um bom negócio? Alguns comentários do estudo sugerem que não. Em primeiro lugar, porque os bradies acabaram despencando, mais à frente, com perdas para o governo. Além disso, o BC gastou reservas nesta operação que poderiam ter ajudado a defender diretamente a moeda. No fim, nenhuma defesa adiantou, veio a crise cambial, o Brasil perdeu US$ 45 bilhões de reservas em poucos meses, além de comprometer outro tanto investido em bradies.
Outro risco de operações deste tipo, apontado pelo estudo, é desvirtuar o preço e a noção de risco dos papéis. Quando o mercado percebe que há sustentação artificial dos bradies, por compras do governo, acaba tomando posições mais ousadas e arriscadas.
Quando, no futuro, essas expectativas de sustentação artificial de preços eventualmente não se confirmam, "a rápida reavaliação das características de risco-recompensa dos instrumentos e as posições resultantes podem levar a uma correção de mercado, saídas maiores de recursos para cobrir margens e pressões maiores sobre as autoridades que enfrentam um ataque especulativo do que teria sido o caso".
A avaliação é muito mais positiva no caso de Hong Kong. Ao contrário do Brasil, o governo agiu de forma transparente em reação ao que chamou de "jugo duplo" especulativo, contra a moeda e a Bolsa. Era uma manobra em que especuladores, apostando na baixa da moeda e da Bolsa, espalhavam rumores e faziam fortes compras nos dois mercados. Sabiam que o sistema cambial de "currency board" (idêntico ao argentino) obrigaria o governo a subir juros para defender a moeda e, com isso, a Bolsa cairia, gerando lucro nas duas pontas.
É um jogo arriscado, lembra o estudo, já que, se outros investidores o percebessem, poderiam forçar os especuladores na posição contrária. Só funcionaria no ambiente de pressão da época, quando os fundamentos da economia de Hong Kong haviam se deteriorado.
Ao perceber a manobra, o governo comprou US$ 15 bilhões na Bolsa, entre 14 e 28 de agosto, equivalente de 20% a 35% do movimento do índice. A Bolsa se sustentou e, de setembro de 98 a junho de 99, o índice subiu 85%, gerando um bom lucro para o governo. A transparência ajudou a minimizar os impactos negativos sobre a percepção de risco. O governo planeja vender dois terços das ações que comprou na forma de um fundo que seguirá o índice da Bolsa. Até lá, a administração das ações segue regras estritas e públicas.



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