São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2008

Texto Anterior | Índice

ELIO GASPARI

Vocês são invasores, nós somos tenistas


Foram procurar a expansão da favela do andar de baixo e acharam a invasão do andar de cima


ERA UMA TROPA DE ELITE . No último dia 28, sob o comando de Carlos Minc, secretário do Ambiente do governo do Rio de Janeiro, um combinado de fiscais, peritos e policiais subiu a encosta do morro Dois Irmãos e entrou na favela da Chácara do Céu. Na véspera, Minc sobrevoara o morro num helicóptero.
A tropa de ambientalistas procurava a espantosa expansão da favela sobre as matas do Parque Natural Penhasco Dois Irmãos. Os bárbaros ameaçavam os moradores do Alto Leblon. Temia-se até mesmo que traficantes da Rocinha ("fábrica de marginais", segundo o governador Sérgio Cabral) estivessem mercadejando na comunidade. Constatou-se que não acontecera expansão alguma. (Minc trazia consigo uma fotografia aérea, tirada em 2004.) Há no morro umas 200 casas. Delas, 21 estão acima da cota de 100 metros sobre o nível do mar, linha a partir da qual é proibido edificar. Como são todas antigas, não poderão se expandir, nem deverão ser derrubadas. Seria absurdo pensar que tantas autoridades subam a uma favela para não encontrar nada de errado. Havia a obra de um puxadinho, com uns 20 metros quadrados. Como o dono não estava lá, demoliram-no. Salvaram-se assim a mata atlântica e a paz do Leblon.
A expansão da favela fora produto de uma alucinação demofóbica. Tudo poderia ficar reduzido à Batalha do Puxadinho se não aparecesse um cidadão com uma lembrança: e a quadra de tênis? Que quadra? A de um condomínio do Alto Leblon, logo ali, a 200 metros do alto da favela.
Bingo. Lá estava a quadra de tênis, construída acima da cota cem. (Quem quiser vê-la pode ir ao Google Earth na posição 22º59'16" sul e 43º14'06" oeste. Vêem-se ainda outras quatro quadras e três piscinas, mas não se pode dizer que haja algo de errado com elas.) Segundo a Secretaria do Ambiente, o condomínio "Quinta e Quintais" anexou um pedaço da mata. O síndico da propriedade explicou que a quadra, construída em 1979, é anterior à criação do parque e os moradores pagam R$ 2,3 mil por mês à prefeitura pela ocupação do terreno.
Foram procurar a invasão do andar de baixo e acharam a do andar de cima. O condomínio ocupa uns mil metros quadrados de espaço público e a Viúva recebe R$ 2,30 por metro. Admitindo-se que uma família pobre do Rio de Janeiro vive confortavelmente num lote de 50 metros metros quadrados, governo e prefeitura poderiam oferecer terrenos à patuléia R$ 115 mensais por cada lote.
Suponha-se que a brigada ambiental tivesse encontrado dez construções ilegais. Pior, que alguns desses imóveis se destinassem ao lazer e à valorização das casas vizinhas. Uma pista de skate ou um galpão de pagode. Seria o suficiente para excitar a demonologia demófoba: não pagam IPTU, têm aquela vista, moram perto do trabalho e ainda querem se divertir. Aborto neles. Acharam a quadra de tênis, mas o assunto ficou para depois. Afinal de contas, há toda uma gestação burocrática a cumprir. Enquanto não se descasca o abacaxi da quadra, ela poderia ser franqueada aos demais moradores.
A barbárie não se expandira. Entrou um pouco de poesia no surto demófobo. Na voz do egípcio Constantino Kavafis:
"E agora, que será de nós sem os bárbaros? De certo modo, essa gente era uma solução".

NOTA DE TRÊS
Estão estragadas as relações do ministro Guido Mantega com alguns caciques da articulação política do governo. Parece coisa grave, mas não tem a menor importância, a menos que se pretenda pedir à Casa da Moeda uma emissão particular de notas de três dólares, com a estampa de Mantega.

PURO PALPITE
De um conhecedor do metabolismo que rege as relações de um presidente com seu ministério: "A possível escolha do senador Edison Lobão para a pasta de Minas e Energia indica que Lula se cansou desse ministério. Há um momento a partir do qual o presidente deixa de pensar no ministério que tem e passa a pensar no próximo. Demora, mas ele surge".

COMPANHEIRO ROGER
Nosso Guia tem um novo amigo de infância. É Roger Noriega, ex-secretário de Estado Assistente para Assuntos Interamericanos. Em 2002, quando Lula ganhou a eleição, Noriega temia que surgisse um Eixo do Mal na América Latina, juntando Brasília a Caracas, Buenos Aires e Havana. Noriega acaba de escrever um artigo sustentando que Lula teria sido melhor escolha para o galardão de "Pessoa do Ano", dado pela revista "Time" ao russo Vladimir Putin. Noriega diz coisas que deveriam levar a oposição a pensar na vida: "Embora seja festejado porque manteve a "ortodoxia" macroeconômica, sua maior contribuição está em reconhecer que o crescimento econômico e a justiça social são indispensáveis e complementares. Em vez de recorrer a uma vazia retórica populista, os programas práticos de Lula contra a fome e a pobreza tornaram-se exemplos concretos para o resto do mundo".

JOSÉ DIRCEU LEMBROU QUE NÃO ESQUECE
Na extensa entrevista peripatética (três países em seis dias) à repórter Daniela Pinheiro, da revista "Piauí", o comissário José Dirceu mostrou que as "malas de dinheiro" do PT estão todas guardadas no cofre de sua memória. Ele permitiu que uma fina observadora retratasse sua vida fora do poder e o vulcão que dorme sob a serenidade compulsória que se impôs. A reportagem valerá mais para quem a ler de cabo a rabo.
O comissário foi duro com Fábio Luiz da Silva, o Lulinha, filho de Nosso Guia e sócio da Gamecorp, empresa de vídeo bafejada em 2005 por uma sociedade milionária com a Telemar. A operadora de telefonia, que tem 45% de seu capital nas mãos do BNDES e dos fundos de pensão do comissariado, comprou por R$ 5 milhões uma participação na empresa, "Para o Lulinha não importa a verdade. (...) Ele quer melhorar a história. Ele fabula. Pegava pesado". Quando Dirceu procurou Nosso Guia, para tratar desse embaraço, ouviu o seguinte: "Você vai ficar enchendo o meu saco por causa do Lulinha, Zé Dirceu?" (O comissário desmentiu a reportagem informando que Lulinha seria outra pessoa. Fica faltando explicar a reação do Lulão.)
A severidade de Dirceu com o jovem empresário é recente. Em agosto passado, ele via com outros olhos as qualidades de Lulinha e seu sócio Kalil Bittar: "Eles têm qualidade. (...) Se não valessem no mercado o que eles valem, não tivessem qualidade, aí podia levantar suspeitas. Tem que provar que foi favorecimento".
Recordar é viver: quando o marechal Castello Branco leu no jornal que seu irmão havia recebido um carro de presente dos colegas da Receita Federal, telefonou para ele e mandou que devolvesse o mimo. O irmão procurou argumentar, e o presidente interrompeu:
"Você não entendeu. Afastado do cargo você já está. Estamos decidindo agora se você vai preso ou não".
Castello não achou que estivessem querendo encher o seu saco. O episódio era contado, com justo orgulho, por seu filho Paulo.


Texto Anterior: Mérito deve ser premiado, não os amigos, diz DaMatta
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.