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QUESTÃO INDÍGENA
Falta de terra, expansão da soja e lentidão do Judiciário contribuem para mortes, diz Gomes
Presidente da Funai diz faltar fôlego e verba para fundação
Alan Marques/Folha Imagem
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Mércio Pereira Gomes, presidente da Funai, em entrevista à Folha |
EDUARDO SCOLESE
RUBENS VALENTE
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Em meio à série de mortes de
crianças indígenas por causa da
desnutrição, o presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Mércio Pereira Gomes, 54,
diz que a autarquia não tem "fôlego" nem orçamento suficiente para atender à atual demanda do setor no país.
Em entrevista à Folha, Gomes
(licenciado do PPS-RJ) atribuiu as
recentes mortes em Dourados
(MS) em parte à falta de terra para
os índios da região. Segundo ele, a
expansão da soja em Mato Grosso
do Sul e os processos "empacados" pelo Judiciário contribuem
para o quadro.
Folha - Como explicar a morte de
crianças indígenas?
Mércio Pereira Gomes - É preciso
ver fatos importantes que têm
acontecido nos últimos 50 anos,
como o crescimento das populações indígenas. Em todo o mundo, muitos achavam que os índios
acabariam. [Mas, no Brasil] houve um crescimento muito importante [de 120 mil, em 1520, para
430 mil, hoje, segundo a Funai], a
mortalidade infantil foi diminuindo, e as grandes doenças,
acabando.
Folha - O governo é incapaz de
controlar esse nível de mortalidade?
Pereira Gomes - Está baixando.
Folha - Mas por que crianças têm
morrido nas aldeias de MS?
Pereira Gomes - Entenda o contexto. Não queira me pegar na
perna, não. Entenda o contexto.
Os índios estão crescendo nessas
regiões. As terras em que eles
crescem são pequenas terras (...)
As terras [em MS] são pequenas,
porque se pensava que os índios
iam acabar. E eles vêm crescendo
e exigindo possibilidades de terra,
para plantar e ter uma vida estabilizada (...) Foi crescendo uma
densidade demográfica muito
grande. Se você pensar em 12 mil
índios em 3.500 hectares, isso
é....Outro dia eu vi uma estatística
dizendo que, se fosse um acampamento do MST, só caberiam mil
pessoas.
Folha - As crianças morrem de fome pela falta de terra? É isso?
Pereira Gomes - As crianças... rapazes [repórteres], vocês são danados, né? As crianças até agora...
Vocês sabem quantas crianças
morreram de fome, de desnutrição?
Folha - Num período curto, pelo
menos seis, sete?
Pereira Gomes - Que vinham
com problema de desnutrição.
Folha - E a causa disso?
Pereira Gomes - Eu tenho impressão que é a falta de terras, de
plantio. Algumas daquelas áreas
deles estão com soja, alguns índios arrendaram terra naquela
área com soja. Temos de retirar a
soja e dar condição ao plantio.
Folha - Se há ciência disso, o que
pode ser feito agora e por que não
foi feito antes?
Pereira Gomes - Rapaz, vem sendo feito. Por que vocês estão
achando que problema de índio
se resolve assim? Um problema
que tem 500 anos. Um problema
de crescimento demográfico. Um
problema de relacionamento com
fazendeiros, com tensões. Tem sido trabalhado há anos e anos (...)
Antes de surgir a crise, estávamos
para construir o Programa Guarani, um programa para ser instalado em Dourados. Mas não é só
para Dourados. É para ver todas
essas questões: terra, educação,
nutrição, agricultura. E em relação a plantio de coisas permanentes, como erva-mate, de plantas
nativas, de proteção de meio-ambiente, de proteção de rios que
atravessam essas pequenas terras.
Porque você está cercado ali de
soja de tudo quanto é lado. Então
todas as áreas estão poluídas de
soja, de defensivos agrícolas etc.
Folha - A presença da soja, então,
atrapalha?
Pereira Gomes - Atrapalha.
Folha - Mas o governo não incentiva isso, a expansão da soja, o
agronegócio?
Pereira Gomes - Antes de incentivar, já existe isso. É um processo
do agrobusiness brasileiro. Não
somos contra isso. Mas temos de
encontrar um modo de seguir a
legislação, de proteger as nascentes dos rios, dentro e fora das
áreas indígenas.
Folha - Enquanto não se aumentam as terras indígenas, que é um
processo longo de obtenção, nada
pode ser feito?
Pereira Gomes - Pode e está sendo. Há um equipe lá.
Folha - Essa equipe foi enviada
agora?
Pereira Gomes - Uns 15 dias
atrás.
Folha - Ou seja, uma ação a reboque dos acontecimentos.
Pereira Gomes - Bem, ninguém
sabia que ia estourar uma série de
casos de desnutrição nesse nível.
Folha - A saúde não é acompanhada?
Pereira Gomes - É acompanhada. Mas os problemas que surgem
com crianças e em circunstâncias
indígenas são às vezes inesperados. Como você acha que a gente
vai ter controle de tudo?
Folha - Em dois anos, o governo
Lula demarcou apenas uma área
em MS. E isso é prioridade?
Pereira Gomes - Temos 11 áreas
no Judiciário que estão em processo de demarcação. O juiz recebe um pedido do fazendeiro, concede uma liminar e aí prende o
processo de demarcação.
Folha - O Judiciário, então, atravanca esses processos?
Pereira Gomes - O Judiciário impede que a demarcação vá adiante, porque os fazendeiros dizem
que querem uma garantia maior
do que a compensação pelas benfeitorias que a Funai avalia
Folha - É difícil compreender
quando o sr. diz que os índios guaranis são prioridade, diante de um
Programa Guarani há dois anos
sem execução e quando apenas
uma área é demarcada.
Pereira Gomes - Meu caro, você
não entende que tem o Judiciário?
Você entende, né? O Judiciário
empaca. O que a gente pode fazer?
Folha - O Judiciário então tem
culpa na morte das crianças e na
falta de terras?
Pereira Gomes - Não tem culpa
de nada, rapaz. Quem tem culpa é
você, brasileiro. Somos nós que
colonizamos aquela terra (...) Então não venha culpar a ninguém,
em particular (...) A Funai não
tem o fôlego atual para abranger
toda a questão indígena, daí a saúde estar com a Funasa [Fundação
Nacional de Saúde], e os projetos
de ajuda alimentar nessas áreas
cruciais com o Ministério do Desenvolvimento Social.
Folha - Por que a Funai tem perdido esse fôlego?
Pereira Gomes - Neste governo, a
Funai cresceu de fôlego. Dois
anos atrás, vocês não entrariam
aqui [sede da autarquia] se não
fosse por um corredor polonês
(...). Os recursos da Funai não alcançam todas as necessidades dos
índios. Em algumas regiões, [a
verba] é mais do que suficiente.
Em outras, não é.
Folha - E qual seria um orçamento
necessário?
Pereira Gomes - Eu acho que um
orçamento de R$ 160 milhões. E
hoje [para 2005] temos R$ 117 milhões.
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