São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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DEPOIMENTO

Carta a d. Manuel Parrado Carral

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO

S. Paulo, 3 de maio de 2007

Prezado dom Manuel Carral,

Antes de mais nada, gostaria de agradecer sua honrosa presença como celebrante da missa em memória de meu pai, Octavio Frias de Oliveira, a ser realizada no próximo sábado. Faço esse agradecimento em nome de minha mãe, d. Dagmar, de meus irmãos Maria Helena, Luís e Maria Cristina, e em meu próprio nome.
Julguei oportuno que alguns subsídios sobre meu pai lhe fossem transmitidos, até porque ele e o senhor não se conheceram pessoalmente. É o que tentarei fazer a seguir de forma breve e resumida. Não abordarei a personalidade pública de meu pai, que tem recebido bastante divulgação nos últimos dias.
Diferente de minha mãe, que é católica, meu pai era agnóstico. Pensava que não é possível comprovar nem a existência de Deus nem o contrário. Mas admitia que a religião é uma consolação útil para quem acredita e achava errado solapar qualquer forma de fé.
Ele foi um homem dinâmico, pragmático e empreendedor. Nasceu numa família de posses que empobrecera. Sair da pobreza foi o impulso que o levou a trabalhar cedo, deixando o colégio ainda adolescente. Sempre se definiu como empresário ou mero comerciante. Tinha um temperamento franco e otimista. Não cultivava ódios, era propenso à conciliação. Sua curiosidade natural o levava a perguntar e se interessar pelo próximo. Não era afeito a hierarquias e convenções sociais.
O valor mais importante para ele, o que mais suscitava seu respeito, era o trabalho. Nada resiste ao trabalho, ele repetia. Costumava repreender delicadamente os filhos quando crianças se jogassem papel no chão, por exemplo, com o argumento de que fazê-lo era desrespeitar o trabalho da pessoa que limpava o local.
Preocupava-se pouco com o futuro e quase nada com o passado, pois era dessas pessoas que vivem para o presente. Gostava dos prazeres da vida, embora fosse moderado em tudo, por disciplina e hábito. Dizia palavrões (mas era incapaz de maledicência). Foi cético quanto à natureza humana. Mesmo assim, acho que não exagero ao dizer que ele era um agnóstico que agia, sem se dar conta disso, como cristão.
Penso que era cristão na simplicidade dos hábitos, no apego à verdade, na consideração pelos outros, no amor à família.
Era comum uma pessoa que se aproximasse do cotidiano de meu pai ficar surpresa com seu despojamento. Ele não tinha vícios nem passatempos, a menos que se considere o trabalho como tais. Vivia com parcimônia, não se importava com objetos de consumo, não era dado a luxos, nunca colecionou nada, detestava ostentação. Abominava também o desperdício. Fez o possível para educar seus filhos e netos nessa mentalidade austera.
Quanto ao apego à verdade, era simplesmente seu modo de ser. É provável que eu nunca o tenha visto mentir. Era de uma franqueza, não raro a respeito dele próprio, sempre definida como desconcertante. Desprezava a hipocrisia, ironizava todo moralismo, sorria dos belos sentimentos e boas intenções que usamos para dissimular a dureza da realidade. Sua pedagogia como pai, intuitiva mas meditada, era uma escola da verdade. Tratava as crianças com carinho, mas como seres pensantes.
Meu pai trouxe da infância uma atitude de respeito pelo sofrimento alheio. Ele próprio sofreu aos 7 anos quando sua mãe, d. Elvira, morreu de forma inesperada. Seu pai, o juiz Luiz Torres de Oliveira, certa vez adotou a família de um operário que perdera o emprego por causa de uma decisão judicial. Mas a infância de meu pai já transcorreu em meio a dificuldades materiais. Adulto, conheceu o triunfo e o desastre, os dois impostores do verso de Kipling que ele gostava de citar.
Para ele, o dinheiro logo se tornou algo que não deveria ser desfrutado, e sim empregado como instrumento para gerar mais riquezas e empregos. Mencionava às vezes um ditado comercial que diz "é imoral perder dinheiro nos negócios". E explicava que quem comete esse erro acaba arrastando para o infortúnio funcionários, fornecedores e até credores -junto com seus dependentes.
Sei que meu pai fazia contribuições discretas, como era de seu feitio, a algumas instituições de solidariedade social, e que por meio dos jornais ajudou muitas outras. Mas acredito que a principal doação tenha sido a de sua inteligência extraordinária e energia quase inesgotável à tarefa de criar os empregos que ao longo de seis décadas sustentaram milhares de famílias.
No esboço deste elogio sumário, devo acrescentar a figura do marido, pai, avô, irmão, tio e sogro profundamente amoroso que ele foi. Suas maneiras informais, sua disposição acolhedora e bem-humorada já despertavam simpatia à sua volta. Sem prejuízo das homenagens devidas à dimensão pública e jornalística que a imagem de meu pai assumiu, seu desaparecimento causou um grau de emoção, até de contrariedade, incomum na despedida de um homem de idade avançada.
Mas suas qualidades humanas só podiam ser apreciadas por inteiro em casa. Ele era compreensivo, doce, afetuoso. Era tolerante, amigo e encorajador. Não tinha preconceito, nem culpa, nem mágoa. Era companheiro para qualquer aventura, um entusiasta dos sonhos dos outros. Formou tarde esta que seria sua família definitiva, razão pela qual tinha urgência de ensinar e compartilhar. No entanto, teve tempo para amar sua família sem pressa e como poucos amaram; foi também amado por ela até o último instante de uma vida luminosa e -até onde isso é possível- feliz.
Escrever este relato levantou um turbilhão de lembranças e sentimentos. Encerro por aqui, prezado d. Manuel, em respeito a seu tempo e também porque o assunto seria para mim interminável. Perdoe o zelo de filho. Espero ter traduzido alguma noção do homem que meu pai foi e continua a ser na vida dos que o conheceram.

Um abraço cordial do
Otavio Frias Filho


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