São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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DOMINGUEIRA

Brasilianistas

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

A nova geração de brasilianistas, como informa o caderno Mais! de hoje, está dando menos atenção à grande história e à política para se fixar em áreas mais específicas, como raça, sexo e religiosidade.
Perigo.
Raça, sexo e religiosidade são temas que guardam diferenças importantes quando ambientados no Brasil ou nos Estados Unidos. As duas sociedades têm origens diversas e elaboraram, também diversamente, esses aspectos da vida sócio-cultural -o que cria o risco de se tentar interpretar o outro contaminado pela sua própria experiência ou por suas supostas "soluções".
A julgar unicamente pelas entrevistas publicadas pelo Mais!, o que certamente é pouco, há indícios de que esse perigo pode não ser só uma hipótese. Jeffrey Lesser, por exemplo, professor do Connecticut College, parece convencido de que a ideologia multiculturalista em voga nos EUA é um modelo a ser seguido. Dá a impressão de que o Brasil, ao não fazê-lo, estaria num estágio "atrasado".
Lesser queixa-se de que as pessoas quando indagadas sobre questões raciais e étnicas preferem deixá-las de lado em favor da identidade "brasileiro". Ele diz que isso é coisa "para inglês ver" e acrescenta que há, aqui, uma contínua pressão para "esconder o hífen", ou seja, ao contrário dos EUA, ninguém se qualifica ou qualifica o outro de nipo-brasileiro, hispano-brasileiro, nativo-brasileiro, afro-brasileiro ou euro-brasileiro -fórmulas comuns por lá.
Ora, é nos EUA, onde o Estado do Alabama estava, na semana passada, discutindo a possibilidade de finalmente eliminar uma lei que proíbe casamento entre brancos e negros, que há uma obsessiva necessidade de se explicitar o hífen, ressaltando as origens étnicas para agrupá-las em departamentos coletivos e estanques.
É um mecanismo que funciona para dar maior visibilidade aos diversos grupos, facilitando a conquista de direitos. Mas é possivelmente a forma encontrada na sociedade americana para evitar o risco real de o país se transformar numa espécie Iugoslávia, com etnias matando-se entre si, num "Do the Right Thing" coast to coast.
No Brasil, os defensores da estratégia multicultural costumam dizer que pelo menos lá as coisas são explícitas e os negros e outras minorias têm mais direitos.
Bem, mais direitos todo mundo tem nos EUA. Assim como eles têm mais dinheiro, mais democracia, mais livros, revistas, jornais, filmes, museus, escritores, poetas, pesquisas, patentes, computadores, edifícios, lanchonetes e sanduíches. Os EUA são o país mais rico e bem-sucedido do mundo, um "acidente evolutivo" social extremamente vitorioso.
Daí a imaginar que as fórmulas praticadas lá podem ser transportadas e adotadas na sociedade brasileira de modo igualmente exitoso vai uma enorme distância.
O Brasil não é, a despeito de aparentes semelhanças históricas, um EUA que ainda não se realizou ou que está à espera da adoção de fórmulas lá testadas para finalmente emergir em sua grandiosidade; o Brasil é uma outra sociedade, com outras possibilidades e potencialidades.
Para ficar na questão racial, o cenário de demandas étnicas aqui é substancialmente diverso do norte-americano, como é diferente a instituição do racismo. Isso quer dizer que no Brasil não há discriminação? Que os negros estão bem? Não, mas quer dizer que o processo de formação étnica e de identidades no Brasil é diferente. E que essa diferença, a depender de como venha a evoluir, pode ter resultados muito mais interessantes e felizes do que os obtidos na sociedade americana. Mas, como diz Caetano Veloso na letra de "Língua", parece que gostamos de ter inveja até dos negros que sofrem horrores nos guetos do Harlem.


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