São Paulo, quinta-feira, 06 de setembro de 2001

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CELSO PINTO

A coerência da dívida que sumiu

Os US$ 30,3 bilhões que sumiram do estoque da dívida externa brasileira ajudam a arredondar um ponto intrigante da crise cambial brasileira. Ao contrário do que aconteceu em outros países que passaram por crise semelhante, aqui a dívida externa tinha caído muito pouco depois da mudança do regime cambial.
É uma questão de coerência. Entre 1991 e 1996, os países emergentes foram inundados por um fluxo recorde de dólares, resultado de uma enorme liquidez e de baixos juros internacionais. Nos países que, nesse período, decidiram controlar o câmbio, o apelo ao endividamento externo foi irresistível: além de dólares fartos e baratos, o risco cambial era bancado pelo governo.
Quando crises externas e más políticas internas levaram a sucessivas crises cambiais, o desfecho foi parecido. O câmbio flutuante foi implementado, e o endividamento externo, especialmente o privado, caiu. Além da menor oferta de dólares pós-crise, o câmbio flutuante tornou incerto o custo futuro de uma desvalorização.
Tome-se os exemplos do México e dos emergentes asiáticos (com dados do JP Morgan). Entre 91 e 95, quando veio a crise, a dívida externa mexicana cresceu 42%. Na Coréia, entre 91 e 96, a dívida cresceu 172% e na Tailândia, 165%. Nas Filipinas e na Indonésia, entre 91 e 99, as dívidas cresceram, respectivamente, 79% e 81%. No Brasil, aconteceu o mesmo. Entre 91 e 98, a dívida externa cresceu 95%. Só no período do câmbio controlado, depois de 94, a dívida externa total cresceu 63%, e a dívida externa privada, 140%.
Até aí, tudo coerente. Nos dois anos seguintes à crise mexicana, sua dívida externa caiu 9% e, no final do ano passado, continuava 7% abaixo do pico de 95. Na Coréia e na Tailândia, as dívidas caíram, entre 96 (o pico) e o ano passado, 20% e 21%. Nas Filipinas e na Indonésia, a dívida continuou crescendo, mais moderadamente, até 99, mas, no final do ano passado, havia caído, respectivamente, 3% e 8,5%.
No caso do Brasil, foi diferente. Em maio deste ano, a dívida total era apenas 1,1% inferior à do final de 98, e a dívida privada, apenas 0,5% inferior. Aí entra a revisão de contas do Banco Central. Foram duas mudanças. Houve uma reclassificação, transformando empréstimos intercompanhias em investimentos diretos, o que reduziu a dívida em US$ 14,1 bilhões. E houve a eliminação de US$ 16,2 bilhões do estoque da dívida.
A soma das reduções ajuda a melhorar a foto do Brasil junto aos investidores, ao reduzir o estoque da dívida em relação ao PIB e as amortizações necessárias. É a segunda mudança, contudo, que tem a ver com a coerência da crise cambial.
Em 98, depois da crise russa, o Brasil virou a bola da vez, e o risco de uma crise cambial tornou-se altíssimo. O preço dos títulos emitidos pelo Brasil despencou no mercado externo. Qualquer empresa ou banco que tivesse algum dinheiro em caixa só tinha uma coisa racional a fazer: recomprar sua dívida, às vezes com até 80% de desconto, e reduzir seu risco cambial. Só que as regras do BC não permitiam essa recompra ou liquidação antecipada. A única forma de fazê-lo era remetendo dólares pelo câmbio flutuante (CC-5), o que era legal.
Inúmeras empresas fizeram isso, como a imprensa registrou na época. Só que não deram baixa na contabilidade do BC. Em muitos casos, por uma esperteza: mantinha-se a possibilidade de remeter dólares futuros por conta de fluxos de pagamentos de empréstimos que não mais existiam.
Se retirarmos os US$ 16,2 bilhões do estoque atual e compararmos com o pico da dívida registrada, os números brasileiros ficam mais coerentes com os dos outros países. A dívida total, em maio, seria 7,8% menor do que no pico, e a dívida privada cairia 10,6%. O número real não é esse, porque as séries serão impactadas também pela reclassificação dos empréstimos intercompanhias, mas o exercício dá uma idéia de direção.
É verdade que, no Brasil, empréstimos externos às vezes são a única forma (além do BNDES) de se obter recursos a prazo mais longo. Também é verdade que a privatização trouxe muito pacote externo de financiamento junto. Mesmo assim, faz mais sentido imaginar que a incerteza do câmbio tenha feito o setor privado reduzir sua exposição ao risco em dólar.

O plano argentino
Desde que foi anunciado que a Argentina teria US$ 3 bilhões do FMI para renegociar voluntariamente sua dívida com os credores no ano que vem, o mercado estranhou uma quantia tão pequena para uma tarefa tão grande (a dívida é de US$ 128 bilhões). Arturo Porzecanski, economista-chefe para países emergentes do ABN Amro em Nova York, tem uma explicação.
Além dos US$ 3 bilhões, o FMI vai liberar outros US$ 5 bilhões neste mês, com o objetivo de conter a perda de reservas e de depósitos. Os argentinos acham que, mantendo o déficit fiscal próximo de zero, a confiança voltará. Os depósitos, de fato, começaram a se recuperar, embora as reservas continuem em baixa.
Se a tendência for mesmo de melhora, a idéia é que, no início do próximo ano, o risco Argentina será menor e o país poderá usar também os US$ 5 bilhões, além dos US$ 3 bilhões prometidos, numa operação cujo alvo principal seria reduzir o custo da parcela da megatroca feita em maio (de US$ 29,5 bilhões), que saiu com juros altos demais.
Tudo indica que não foram, de fato, os argentinos que levantaram a sugestão de renegociar a dívida. A idéia partiu dos americanos e acabou sendo aprovada numa queda-de-braço com o FMI. Tudo o que os argentinos não querem, aparentemente, é qualquer formato que implique algum calote.
Arturo acha que há uma boa chance de uma renegociação limitada e voluntária dar certo, mas admite que é o mais otimista em Wall Street.

E-mail: CelPinto@uol.com.br



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