São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O garoto faminto do PT era falso como o Brasil Maravilha

A seca foi o prato forte do programa do PT na noite de quinta-feira, 27 de agosto. Nele, o melhor momento foi o reaparecimento do menino Raimundo Lima, de 6 anos, filho de um casal de lavradores de Irauçuba, no sertão do Ceará. Em maio, sua magra figura estivera na capa da revista "Veja", com um prato de comida no colo e uma frase: "Ainda bem que eu não tenho de comer calango."
A televisão mostrou a capa da revista e o locutor informou: "Raimundo Lima em maio de 98. Raimundo Lima, hoje. Sabe o que o governo fez por ele? Nada."
Em seguida o menino disse: "Tem vez que eu bebo só garapa."
O tucanato correu atrás da história e, com base em inúmeros depoimentos, inclusive do pai do garoto, verifica-se que a situação sugerida pela cena é falsa. Pior: desperdiçou uma oportunidade de mostrar a complexidade do problema de Raimundo.
A cena é falsa porque, tanto hoje quanto em maio, o governo vem fazendo alguma coisa pela sua família. Onofre Rodrigues de Lima, seu pai, foi alistado na frente de trabalho do município em agosto do ano passado. Durante vários meses, recebeu R$ 120 por mês. Depois, e até hoje, passou a receber R$ 90. Trabalha com 16 outras pessoas numa olaria, moldando tijolos. O governo vinha fazendo algo por Onofre desde a seca do ano passado, antes que o país fosse chocado pela deste ano.
Seu salário foi reduzido porque o governo precisou expandir as frentes de trabalho, mas também porque dezenas de prefeitos protestaram contra o que seria um pagamento excessivo às vítimas da seca. Pagavam-se R$ 120 quando o mercado de trabalho não dá R$ 100 a trabalhadores desqualificados. A mão-de-obra das fazendas estava migrando para as frentes de emergência. (Esse problema, que não é desprezível, ficou ao largo da retórica petista.)
A idéia de que Raimundo passa dias sem botar algo no estômago, além de garapa, também é falsa. Sua família vive com R$ 240 por mês, sem que o governo tenha qualquer crédito pela maior parte desse dinheiro. Desde maio, quando ele apareceu na capa da revista, uma senhora do Rio de Janeiro lhe manda R$ 150 por mês, em vales postais. (Essa situação, na qual os pobres brasileiros dependem da caridade, também ficou longe da propaganda do PT.)
Resta saber o que aconteceu com as cestas básicas de que o governo tanto fala. O prefeito de Irauçuba informou que elas sumiram em maio. A Sudene rebateu: elas foram suspensas em junho, porque ele não formou a comissão comunitária que deve gerir a distribuição dos alimentos. A Sudene garantiu que Irauçuba recebeu 2.600 cestas básicas no dia 12 de agosto. (O PT passou lotado por um dos problemas centrais das secas: o destino dado aos recursos do governo.)
O pai de Raimundo informou que em sua casa não se passa fome. Mesmo assim, resta outra questão. Se o menino vai à escola, cadê a merenda? Segundo o prefeito, o governo manda 2.300 merendas por mês, mas as crianças em idade escolar são 6.000. (Novamente, o PT passou lotado.)
A campanha petista bate duro em FFHH, acusando-o de vender um Brasil Maravilha, varrendo para baixo do tapete os problemas do país. São muitos os casos em que tem razão. Do jeito que vai o tucanato, daqui a pouco FFHH vai responsabilizar Lula pela crise econômica que semeou, molhou, e agora não quer colher.
O episódio do menino Raimundo Lima mostra um triste aspecto da campanha de Lula. Em vez de vender um Brasil Maravilha, ele carrega um Brasil Desgraça tão verdadeiro quanto o de seu adversário. O Brasil dos tucanos está infiltrado por presunçosa superioridade, o dos petistas, por um catastrofismo primitivo.
Quem viu o programa do PT ficou com a impressão de que Raimundo Lima não comia direito em maio, continua sem comer hoje e o governo nada fez para melhorar sua vida.
Quem acredita no programa de FFHH fica com a impressão de que todos os nordestinos necessitados estão recebendo a merenda, cesta básica e serviço nas frentes de trabalho.
Nenhuma das duas situações é verdadeira e a realidade é bem mais complexa que esse choque da Maravilha com a Catástrofe. As frentes pagam R$ 90 porque no sertão paga-se isso pelo trabalho. As remessas de cestas básicas às vezes são suspensas porque os prefeitos sabotam as comissões comunitárias e há escolas onde faltam merendas.
O PT achou que poderia resumir a discussão da seca com um Raimundo que passa fome. A falsidade custou-lhe uma boa oportunidade de discutir a vida raimunda do sertão nordestino.

Astuta valentia
Pelo menos três ministros asseguram que já tiveram conversas com o doutor Clóvis Carvalho nas quais ele os tratou com palavras deselegantes. Além disso, tem o hábito de convocar as pessoas para as reuniões com a frase "vamos lá, moçada".
Astuta valentia a do doutor Clóvis, porque na quarta-feira ouviu em silêncio um cabeludo telefonema do senador Antonio Carlos Magalhães. Tão cabeludo que o próprio ACM se recusa a divulgá-lo.
A assombração de Clóvis Carvalho sabe para quem aparece.

Astrofinancistas
Para quem passa o dia colado nos terminais de computadores, caçando o futuro nas previsões de gurus financeiros.
Em 1985 a revista "The Economist" resolveu pedir a diversas categorias profissionais que descrevessem a situação econômica da Inglaterra ao fim dos dez anos seguintes. O primeiro lugar ficou com um painel de quatro diretores de empresas multinacionais, empatados com os lixeiros.
Em 1987 o mercado financeiro foi iluminado por uma nova estrela. Chamava-se Elaine Garzarelli, da casa Shearson Lehman. No dia 9 de setembro ela anunciou que a Bolsa ia despencar. Despencou uma semana depois. Suas previsões posteriores revelaram-se certas em metade dos casos, o que lhe deu um índice de confiabilidade equivalente ao do jogo de cara e coroa. Abriu um fundo de investimentos que foi capaz de perder 13% num ano em que o mercado ganhou 17%. Fechou-o em 1994.
O melhor caminho é esperar pelas previsões de Peter Drucker, o grande pajé da nova ordem mundial. Será um pouco dificil, porque Drucker fez a sua última previsão em setembro de 1929. Sustentou que o mercado continuaria em alta. Duas semanas depois veio o crash e ele saiu do ramo da astrofinança.

A Light vende R$ 131 e cobra R$ 32.358,22
Há razões para se supor que Light está tentando demonstrar aos seus clientes que quem se mete com ela acaba se estrepando.
Em dezembro passado, acompanhada por uma equipe de policiais do 61º DP, ela cortou a luz de uma pequena confecção de Caxias, provocou a prisão do gerente e lacrou o relógio que media o consumo de energia. Acusaram a dona da confecção de manter um "gato" para furtar luz. Ela se chama Eliane Alcântara de Oliveira, tem 33 anos e montara a confecção com o dinheiro que recebera ao ser demitida do banco onde trabalhava.
Ficou sem energia até o início de março, quando a Justiça obrigou a Light a religá-la. No meio tempo, Eliane demitiu 11 funcionários e quase faliu.
O inquérito policial feito à época revelou que, segundo os peritos, não havia "gato" no relógio da confecção. Eliane processou a Light e foi buscar o que acha que é seu direito.
Os advogados da empresa, que haviam perdido o prazo para justificar o corte de energia, resolveram ir à luta e conseguiram uma segunda peritagem do relógio.
Meteram o dedo na tomada. O Instituto Carlos Éboli ratificou a conclusão de que não havia furto de energia. Seus peritos reconheceram que têm colaborado com a empresa, que lhes fornece até equipamentos, mas advertiram: "Trabalhar em conjunto não quer dizer que os peritos tenham que concluir por fraude quando um fio está rompido ou desconectado. Os peritos são totalmente isentos no seu trabalho e sua principal característica é a sua convicção."
Santas palavras, sobretudo quando se sabe que a Light privatizou uma parte dos serviços da polícia do Rio de Janeiro, passando-lhe formalmente uma pochette de R$ 15 mil mensais. (Caçar assaltantes para quem só paga impostos é outra conversa, mas isso é outra história.)
Até aí a briga de Eliane Alcântara de Oliveira era apenas um capítulo da luta do fraco contra o forte. Sua energia foi religada, a confecção está se recuperando, com 14 ações trabalhistas e alguns títulos protestados. Pagava regularmente suas contas de luz, que giravam em torno de R$ 150 por mês.
Agora ela recebeu a conta de setembro, para ser paga até dia 14 de setembro. Segundo a Light, deve R$ 32.358,22.
A empresa, ouvida, informa que Dona Eliane foi vítima de um erro, a conta está cancelada e só deverá pagar o que deve: R$ 131,70. Informa também que "se a cliente tivesse ligado para os nossos telefones de atendimento comercial ou se dirigido a qualquer uma de nossas agências, esses esclarecimentos lhe teriam sido dados."
O doutor Michel Gaillard, presidente da Light, ainda não entendeu direito o seu serviço. Quando acha que uma pequena confecção lhe está roubando energia, manda a polícia.
Quando é apanhado tentando cobrar à vítima R$ 32.358,22 por um consumo de R$ 131, ainda se julga no direito de dizer que tipo de conduta ela deve seguir.
Doutor Gaillard, a dona Eliane foi até boazinha. Ela devia ter chamado aquele pessoal da 61º DP que o senhor mandou à sua confecção.

As Crises de Brasília começam na terça
Existe uma coisa chamada Crise de Brasília. Começa na terça-feira e acaba na sexta. Além disso, seja qual for a sua origem, só prospera quando é reduzida a um conflito pessoal.
A última Crise de Brasília resultou de uma entrevista do ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, na qual ele defendeu mais controles nas importações. Foi rapidamente transformada numa briga com o presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, e, daí metabolizada numa nova briga, de ACM com o chefe do Gabinete Civil, Clóvis Carvalho.
Tudo produto da manipulação da histeria. O que ele disse agora é um trocado, diante do que disse em janeiro do ano passado, quando se saiu com o seguinte: "Há um grupo que defende a abertura da economia na fronteira da babaquice, é mais realista que o rei. Está propugnando um sistema de abertura que não existe em lugar nenhum do mundo. É claro que por mais liberal que seja o país, sempre tem um esquema de favorecimento, via crédito. Nós temos que entrar nesse jogo. A cláusula pétrea é a abertura, a eficiência etc. Mas não podemos ser babacas. Temos que ter nossos instrumentos de defesa da produção interna".
Ninguém respondeu. Não houve sequer quem lhe criticasse a linguagem. Muito menos quem se perguntasse: e se ele tiver razão?

Coisa de mestre
Na manhã de quarta-feira alguns sábios do Banco Central autorizaram a publicação de um edital convocando para o dia 21 de outubro o leilão do patrimônio industrial e petroquímico do falecido Banco Econômico. Nele, com base sabe-se lá em que tipo de estudo, exigiam um lance mínimo de R$ 897 milhões.
À tarde, resolveram recolher o edital, mas ele acabou publicado no jornal "A Tarde", da Bahia, sede de todas as ações judiciais dos ex-controladores do Econômico contra a União.
O leilão foi suspenso, mas fica uma questão: o valor do patrimônio industrial do falecido banco foi calculado em R$ 897 milhões. Há cálculos segundo os quais essa cifra não faz nexo. Por menos de R$ 500 milhões pode-se comprar a própria central do pólo petroquímico baiano. Ademais, o grosso do patrimônio que iria a leilão foi arrematado pelo banco, em 1994, por menos de R$ 200 milhões.
Agora, ou o BC informa que estava fora do seu juízo quando soltou o edital e dá ao distinto público os nomes dos sábios que decidiram liberá-lo, ou o ex-dono do Econômico, Angelo Calmon de Sá, poderá sustentar em juízo, com um documento do BC, que qualquer leilão com lance inferior a R$ 897 milhões será um atentado contra seu patrimônio.
Vai sobrar para Viúva.

Mais fé
As coisas boas também acontecem. Depois de 27 anos à frente da Arquidiciocese do Rio, o cardeal Eugenio Salles consolidou a reversão da queda de suas vocações religiosas. Quando assumiu, houve épocas em que ordenava um padre por ano. Com muito esforço, conseguia formar cinco. Agora acaba de ordenar dez, sem ter afrouxado a severidade da seleção. Metade deles veste a batina depois de ter concluído um curso superior. Um dos secretários do cardeal é arquiteto.
D. Eugenio atribui esse resultado a uma retomada da religiosidade. Há uma semana ele reuniu um congresso de católicos universitários, com cerca de mil participantes.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.