São Paulo, domingo, 6 de dezembro de 1998

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JANIO DE FREITAS
Humanos e desumanos

O mundo comemora nesta semana, quinta, 10, os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Feliz será o dia em que, no lugar de mundo, seja possível dizer que a humanidade celebra a Declaração. É muito grande ainda o número bilionário dos que nem sequer sabem dessa bandeira de todos os seres humanos, o que, por si só, vale como medida de quão distantes estão dos direitos que nela lhes são reconhecidos. Mas o que a Declaração já fez pela defesa do ser humano, contra a prepotência, nada deve à obra dos séculos.
As violações aos direitos humanos continuam pelo mundo afora. Impedir sua prática não é, no entanto, o avanço proporcionado pela Declaração. Nenhuma carta teria esse poder. O avanço está na difusão da consciência dos direitos criados pela força só do fato de viver. O texto da Declaração não precisou ser conhecido para oferecer tal consciência. Os seus princípios disseminam-se como grãos de pólen, imperceptíveis e procriativos, que os ventos livres e as correntes de informação levam mundo afora. E um só artigo que germine em uma consciência individual faz surgir, em breve, uma seara.
O reconhecimento efetivo, prático, dos direitos definidos na Declaração é, ainda, uma construção incompleta mesmo na maioria dos países reconhecidos como civilizados. Nos que se caracterizam pela presença de miséria, pela concentração da renda, distribuição precária da Justiça, insegurança urbana, violência e corrupção das polícias, parlamentos indeferentes à sociedade e métodos pouco democráticos de governo, nesses países a prática da Declaração nem incompleta é: mal começou, no pouco que começou.
O que faz penosa essa marcha são causas tão diferentes quanto diferem os países. De comum a todos, há a resistência do poder econômico, da classe rica, com sua voracidade para centralizar a posse das riquezas, das formas todas de poder e, assim, impor domínio e não equidade. São as sociedades onde os privilégios da minoria, para existirem, restringem os direitos da maioria. Mas as maneiras como se dá essa opressão dos direitos é variada, complexa e quase sempre inexplícita, sutil.
Ninguém dirá que o governo brasileiro é contrário aos direitos prescritos na Declaração cujo aniversário, por certo, saudará como se tivesse, para isso, a mesma autoridade do governo sueco, dinamarquês, norueguês, canadense. Embora não lhe caiba aquela acusação, todas as bases teóricas e práticas de sua administração conflitam, frontalmente, com numerosos artigos da Declaração que tratam das obrigações socioeconômicas do Estado para com cada pessoa e cada família.
Se os quatro anos de política econômica e de desastre na assistência à saúde e ao ensino não fossem suficientes, como exemplos de incompatibilidade com a Declaração, as medidas do presente "pacote fiscal" são todas, sem exceção, de natureza eminentemente anti-social. Redução das aposentadorias, das pensões por doença temporária e por invalidez permanente, e dos vencimentos mesmos, pelo aumento do desconto; corte das verbas já insuficientes da Saúde e da Educação, da ciência e da cultura, do saneamento, da habitação e da segurança pública. Aumentos, também, mas da recessão, do desemprego e, por consequência, do empobrecimento da maioria social e do próprio país.
O 30º artigo da Declaração consiste em uma advertência protetora, contra interpretações de má- fé, dos princípios definidos nos demais artigos. Desses 29, não é difícil admitir que o Brasil é cumpridor de dez (8, 10, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20 e 21). O que significa reconhecer que o Brasil, em graus variáveis, descumpre 19 dos artigos. Ou seja, descumpre dois terços da Declaração Universal dos Direitos Humanos.



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