São Paulo, quarta, 7 de janeiro de 1998.




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ELIO GASPARI
O ministro não entende de tran$plante

Ou o ministro da Saúde, Carlos Albuquerque, não sabe o que diz, ou o coordenador da Central de Transplantes da Secretaria da Saúde de São Paulo, Agenor Ferraz, não sabe o que faz.
Referindo-se aos benefícios da nova lei que dá ao Estado o direito de gerir os órgãos dos contribuintes depois que eles saem da jurisdição da Secretaria da Receita e entregam seu futuro ao padre eterno, o ministro disse o seguinte:
"Hoje, não tem mais aquela história de que quem tem recursos pode fazer o transplante na frente de alguém do Sistema Único de Saúde".
Segundo o ministro, os transplantes são feitos de acordo com uma lista única de doentes, sem preferências.
Referindo-se ao sistema que funciona em São Paulo, onde são feitos mais de dois terços dos transplantes do país, o doutor Agenor informa que, de cada dois rins tirados a um cadáver, um vai para o SUS, e outro, para as equipes de medicina privada. Na fila paulista do SUS há 2.600 inscritos. Já as das equipes privadas são menores, bem menores. "É uma forma de incentivo às equipes", informa Ferraz. Refere-se às equipes médicas privadas que se dedicam ao resgate de órgãos em condições de serem transplantados.
Então o ministro não sabe do que está falando. Tem "aquela história", sim. Se amanhã ele precisar de um rim, pode entrar na fila do SUS, mas, se não quiser esperar, paga em torno de R$ 25 mil e faz o seu transplante no mês que vem.
O governo vai estatizar os órgãos e privatizar um bom pedaço dos transplantes. O poder público pode dispor do direito de retirar os órgãos dos cadáveres, desde que eles sirvam para melhorar a vida de outras pessoas, numa competição igualitária e transparente. O sujeito morre, seu rim é retirado e, no interesse público, vai para o primeiro da lista de necessitados. Isso é uma coisa, mas outra bem diversa é um de seus rins ir para o SUS e outro para uma equipe de médicos que cobra pelo transplante e, além da técnica, oferece pronto atendimento. Nesse caso, o que se está fazendo é tungar o cadáver.
As equipes privadas argumentam que, se elas não existissem, milhares de rins seriam perdidos. Têm razão, porque o sistema de captação da rede oficial é uma droga. Nessa linha de raciocínio, teriam direito a algum estímulo. Será que um incentivo de 50% é razoável? Quem fixou essa tarifa? O sindicato dos trapezistas? Basta pensar um pouco: a proporção de pobres que precisam de um rim (em geral tirado a outro pobre) equivale a 50% da população que precisa de transplantes? Que tal um outro critério: rim de rico vai para rico, rim de pobre vai para pobre.
Se o ministro da Saúde diz que "não tem mais aquela história", o que se está fazendo em São Paulo é uma ilegalidade. Em vez do doutor Albuquerque anunciar em Brasília as maravilhas de um mundo de fantasia, seria melhor que ele e todos os médicos interessados na questão se apresentassem à opinião pública para explicar as vantagens e desvantagens de uma lista única. Quem for contra, que ponha a cara na janela.
Se amanhã acontecer o caso de uma pessoa que se recusou a ir ao hospital por medo que lhe roubem os órgãos, logo aparecerá um sábio dizendo que só uma população ignorante é capaz de pensar tais coisas. Acreditar que há médicos interessados em surripiar rins é pura ignorância, mas, do jeito que estão as coisas, só um ignorante é capaz de acreditar no ministro da Saúde quando ele diz que "não tem mais aquela história".
A lei que permite a retirada dos órgãos dos cadáveres foi aprovada pelo Congresso. Quem não estiver de acordo, pode ir a uma delegacia e registrar que seu cadáver deve ser deixado em paz. No caso das listas preferenciai$, quem é o re$pon$ável? O ministro, nem pensar, porque ele diz que elas não existem.
Na hora de tirar o rim do morto, cumpra-se a lei. Na hora de dizer para quem vai o rim, enfiam a mão invisível do mercado na barriga do defunto e vai um para quem espera na fila e outro para quem tem dinheiro para ter pressa.



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