São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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"Lula usa discurso para se descolar do PT"

FLÁVIA MARREIRO
DA REPORTAGEM LOCAL

Arriscado, incoerente com as ações do governo, o discurso recente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra as "elites" tem ressonância em dois setores da população: os líderes sindicais, incorporados ao governo, versão moderna do "peleguismo", e os beneficiários do Bolsa Família.
A análise é do historiador e professor da UFRJ José Murilo de Carvalho. Embora afirme que a política social do governo é "drasticamente reduzida", Carvalho diz que é preciso lembrar que ela atinge cerca de 8 milhões de famílias, "o que é uma base de apoio, com certeza muito forte".
Para ele, Lula foge de sua responsabilidade como chefe de Estado na crise e tenta se descolar do PT. Ao se comparar a Getúlio Vargas (1883-1954), ironicamente, nega a tradição do novo sindicalismo, berço petista.
O autor de "A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil" (Companhia das Letras) diz que, do ponto de vista retórico, Lula se aproxima de Vargas pelo tom "desafiador".
 

Folha - Como o senhor avalia a agenda do presidente Lula, que tem privilegiado, nos discursos, a estratégia de interpelação direta da população e o argumento de que luta contra a "elite"?
José Murilo de Carvalho -
Não sei se é estratégia, mas é uma tática, cuja finalidade creio que é óbvia: realmente descolar do partido, do PT, de todas das acusações de corrupção e apresentar-se como líder popular. Essa é uma estratégia, como muitos já disseram, arriscada. Está pregando o confronto. Por um lado, quer fugir das responsabilidades que o partido e ele, obviamente, têm -o presidente estando ou não estando envolvido. É fuga das responsabilidades que tem como chefe de Estado e de governo. Por outro lado, é inadequado na medida em que, como já foi observado, a "elite" que ele diz que está contra ele está feliz com este governo.

Folha - Como esse governo que o sr. vê favorável às elites pode esperar ter êxito na comunicação com os pobres e os movimentos sociais?
Carvalho
- Neste momento, qual é a esquizofrenia? É que o Lula foi eleito dentro de um sistema popular, mas a política do governo não seguiu nessa direção.
O discurso só é viável em relação a essa população a quem ele tem se dirigido, que é uma população com grau menor de informação, de formação política. É preciso lembrar que a política social implementada no governo anterior, e ampliada agora, atinge um contingente bastante grande -creio que 8 milhões de famílias, o que é uma base de apoio, com certeza, muito forte.
O social se reduziu drasticamente ao Bolsa Família. Mas ele, Lula, pessoalmente, mantém esse apelo popular. Nessa situação, ele usa essa imagem populista. Favorece os banqueiros, favorece o agronegócio -e eu não estou dizendo que ele esteja errado, estou dizendo que é totalmente incoerente com esta imagem. E ela só pode parecer coerente para quem recebe esses benefícios lá na ponta. É um discurso que emite mensagens contraditórias.
Por outro lado, Lula tem, pelo menos, a aparelhagem sindical, que está dentro do governo, que não deixa de ser uma forma moderna de peleguismo. Líderes sindicais podem acrescentar um poder de mobilização em defesa do governo. Não sei em que medida isso se dará, já que até agora só foi sinalizada pela cúpula.

Folha - O sr. considera a estratégia atual arriscada. Por quê?
Carvalho
- Caso as denúncias cheguem, eventualmente, ao presidente, caso se radicalize a oposição contra ele... Se se entra num processo de radicalização dos dois lados, é difícil prever onde vai chegar. Na crise de 64, do golpe, foi uma dinâmica desse tipo. Por isso que realmente é arriscado. Provavelmente, ele calcula que hoje use isso só para assustar, para fazer com que a oposição sinta e maneire. Pode acontecer isso, como pode acontecer o oposto.
Veja o risco se o presidente Lula se descola do seu partido, como aparentemente ele está fazendo. E se resolve se candidatar? Vai se candidatar baseado no prestígio pessoal dele? Isso é arriscadíssimo. E se se elege pelo próprio PT com uma aliança pequena? É uma situação de ingovernabilidade total num eventual segundo mandato. É o que se chama na área de bonapartismo, que é para democracia um risco extremo.

Folha - O que leva Lula a essa tática? Orientação publicitária?
Carvalho
- O governo está parado. Os principais assessores foram afastados. Não sei com quem ele se aconselha. Não me parece algo calculado. Não é uma estratégia do partido, que está em frangalhos. Não sei se há aí um instinto político ou algo estruturado.

Folha - Lula se comparou ao presidente Getúlio Vargas. Onde se pode fazer esse paralelo?
Carvalho
- É uma coisa bastante irônica, não é? Por que, na realidade, todo o PT se formou em torno de uma crítica ao populismo getulista, à vinculação de Getúlio ao povão, ao qual todo o sindicalismo moderno, no qual Lula está baseado, se opunha.
Essa incorporação da imagem do Getúlio é pertinente, mas de certo modo, para o Brasil, hoje, 50 anos depois de Getúlio assistir a isso é algo que, politicamente, é um retrocesso. A referência é pertinente não necessariamente no que se refere a criação da Petrobras [como mencionou Lula].
A Petrobras não foi o ponto onde a elite foi contra a Getúlio. O que no Getúlio foi uma mensagem de conflito foi a própria política social, trabalhista e populista.
No segundo mandato de Getúlio, ele falava apaixonadamente: "Trabalhadores do Brasil, hoje vocês estão com o governo, amanhã vocês serão o governo", coisa radical. Não há dúvida de que Getúlio, na crise, era desafiador, muito desafiador. Os inimigos de quem ele fala na carta de testamento... É exatamente o que Lula está fazendo.


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