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"Lula usa discurso para se descolar do PT"
FLÁVIA MARREIRO
DA REPORTAGEM LOCAL
Arriscado, incoerente com as
ações do governo, o discurso recente do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva contra as "elites"
tem ressonância em dois setores
da população: os líderes sindicais,
incorporados ao governo, versão
moderna do "peleguismo", e os
beneficiários do Bolsa Família.
A análise é do historiador e professor da UFRJ José Murilo de
Carvalho. Embora afirme que a
política social do governo é "drasticamente reduzida", Carvalho
diz que é preciso lembrar que ela
atinge cerca de 8 milhões de famílias, "o que é uma base de apoio,
com certeza muito forte".
Para ele, Lula foge de sua responsabilidade como chefe de Estado na crise e tenta se descolar do
PT. Ao se comparar a Getúlio
Vargas (1883-1954), ironicamente, nega a tradição do novo sindicalismo, berço petista.
O autor de "A Formação das Almas: o Imaginário da República
no Brasil" (Companhia das Letras) diz que, do ponto de vista retórico, Lula se aproxima de Vargas pelo tom "desafiador".
Folha - Como o senhor avalia a
agenda do presidente Lula, que
tem privilegiado, nos discursos, a
estratégia de interpelação direta
da população e o argumento de
que luta contra a "elite"?
José Murilo de Carvalho - Não sei
se é estratégia, mas é uma tática,
cuja finalidade creio que é óbvia:
realmente descolar do partido, do
PT, de todas das acusações de corrupção e apresentar-se como líder
popular. Essa é uma estratégia,
como muitos já disseram, arriscada. Está pregando o confronto.
Por um lado, quer fugir das responsabilidades que o partido e
ele, obviamente, têm -o presidente estando ou não estando envolvido. É fuga das responsabilidades que tem como chefe de Estado e de governo. Por outro lado,
é inadequado na medida em que,
como já foi observado, a "elite"
que ele diz que está contra ele está
feliz com este governo.
Folha - Como esse governo que o
sr. vê favorável às elites pode esperar ter êxito na comunicação com
os pobres e os movimentos sociais?
Carvalho - Neste momento, qual
é a esquizofrenia? É que o Lula foi
eleito dentro de um sistema popular, mas a política do governo
não seguiu nessa direção.
O discurso só é viável em relação a essa população a quem ele
tem se dirigido, que é uma população com grau menor de informação, de formação política. É
preciso lembrar que a política social implementada no governo
anterior, e ampliada agora, atinge
um contingente bastante grande
-creio que 8 milhões de famílias,
o que é uma base de apoio, com
certeza, muito forte.
O social se reduziu drasticamente ao Bolsa Família. Mas ele,
Lula, pessoalmente, mantém esse
apelo popular. Nessa situação, ele
usa essa imagem populista. Favorece os banqueiros, favorece o
agronegócio -e eu não estou dizendo que ele esteja errado, estou
dizendo que é totalmente incoerente com esta imagem. E ela só
pode parecer coerente para quem
recebe esses benefícios lá na ponta. É um discurso que emite mensagens contraditórias.
Por outro lado, Lula tem, pelo
menos, a aparelhagem sindical,
que está dentro do governo, que
não deixa de ser uma forma moderna de peleguismo. Líderes sindicais podem acrescentar um poder de mobilização em defesa do
governo. Não sei em que medida
isso se dará, já que até agora só foi
sinalizada pela cúpula.
Folha - O sr. considera a estratégia atual arriscada. Por quê?
Carvalho - Caso as denúncias
cheguem, eventualmente, ao presidente, caso se radicalize a oposição contra ele... Se se entra num
processo de radicalização dos
dois lados, é difícil prever onde vai
chegar. Na crise de 64, do golpe,
foi uma dinâmica desse tipo. Por
isso que realmente é arriscado.
Provavelmente, ele calcula que
hoje use isso só para assustar, para fazer com que a oposição sinta
e maneire. Pode acontecer isso,
como pode acontecer o oposto.
Veja o risco se o presidente Lula
se descola do seu partido, como
aparentemente ele está fazendo. E
se resolve se candidatar? Vai se
candidatar baseado no prestígio
pessoal dele? Isso é arriscadíssimo. E se se elege pelo próprio PT
com uma aliança pequena? É uma
situação de ingovernabilidade total num eventual segundo mandato. É o que se chama na área de
bonapartismo, que é para democracia um risco extremo.
Folha - O que leva Lula a essa tática? Orientação publicitária?
Carvalho- O governo está parado. Os principais assessores foram afastados. Não sei com quem
ele se aconselha. Não me parece
algo calculado. Não é uma estratégia do partido, que está em frangalhos. Não sei se há aí um instinto político ou algo estruturado.
Folha - Lula se comparou ao presidente Getúlio Vargas. Onde se
pode fazer esse paralelo?
Carvalho- É uma coisa bastante
irônica, não é? Por que, na realidade, todo o PT se formou em
torno de uma crítica ao populismo getulista, à vinculação de Getúlio ao povão, ao qual todo o sindicalismo moderno, no qual Lula
está baseado, se opunha.
Essa incorporação da imagem
do Getúlio é pertinente, mas de
certo modo, para o Brasil, hoje, 50
anos depois de Getúlio assistir a
isso é algo que, politicamente, é
um retrocesso. A referência é pertinente não necessariamente no
que se refere a criação da Petrobras [como mencionou Lula].
A Petrobras não foi o ponto onde a elite foi contra a Getúlio. O
que no Getúlio foi uma mensagem de conflito foi a própria política social, trabalhista e populista.
No segundo mandato de Getúlio, ele falava apaixonadamente:
"Trabalhadores do Brasil, hoje
vocês estão com o governo, amanhã vocês serão o governo", coisa
radical. Não há dúvida de que Getúlio, na crise, era desafiador,
muito desafiador. Os inimigos de
quem ele fala na carta de testamento... É exatamente o que Lula
está fazendo.
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