São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2001

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PÚBLICO X PRIVADO

Brasil Empreendedor tem 26,6 mil casos de CPFs falsos e repetidos

Bebês e fantasmas "fazem" curso com verba federal

DAVID FRIEDLANDER
DA REPORTAGEM LOCAL

O Brasil Empreendedor, programa de incentivo ao pequeno empresário criado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, transformou-se num campo fértil para demagogia, dinheiro fácil e criação de fantasmas.
Entre as 639 mil pessoas que o programa atendeu em São Paulo, há pelo menos 26,6 mil casos de CPFs falsos e repetidos. Há ainda 299 crianças e 404 bebês registrados como empreendedores.
As irregularidades ocorreram no ano passado e estão registradas em documentos do Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) de São Paulo, aos quais a Folha teve acesso.
O Sebrae é uma entidade privada, sustentada com verba repassada pela Previdência Social. No Brasil Empreendedor, seu papel é patrocinar cursos para ensinar o microempresário a tomar empréstimo nos bancos federais. São cursos de 16 horas, gratuitos. A intenção inicial era treinar 314 mil pessoas em São Paulo, mas o Sebrae dobrou a meta.
O Sebrae pagou pelos cursos R$ 37,5 milhões, 41% a mais do que estava planejado. O resultado, no entanto, foi fraco. Das 639 mil pessoas que o Sebrae mandou treinar, apenas 1.995 atingiram objetivo declarado do curso -que era apresentar um projeto e obter financiamento do Banco do Brasil ou da Caixa Econômica Federal para abrir um negócio.
"Houve um exagero. Sempre disse que estávamos errando na quantidade e que iríamos errar também na qualidade", diz Horácio Lafer Piva, presidente da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo), que presidiu o conselho do Sebrae até o fim de 2000. Piva afirma que não sabia das fraudes.
O superintendente do Sebrae, Fernando Leça, não quis comentar o assunto.

CPFs frios
Sem estrutura própria para cumprir sua meta, o Sebrae fez parcerias com 655 instituições, às quais deu a tarefa de montar os cursos. Cada instituição recebia, do Sebrae, R$ 50 por aluno capacitado. Como os pagamentos eram feitos pelo número de CPFs apresentados, abriu-se uma janela para a falsificação.
Estudantes de 14, 15 ou 16 anos foram admitidos no curso, desde que tivessem o CPF de algum adulto para apresentar. Pessoas foram contratadas para oferecer o curso de porta em porta, com o objetivo de incrementar o número de alunos. Usou-se, também, o nome de pessoas que nunca fizeram o curso (crianças, por exemplo) para justificar pagamentos.
No grupo dos "fantasmas", 1.495 se apresentaram ao Sebrae com o CPF de número 88888888888. Esse foi o campeão dos CPFs frios. O vice foi o 11111111111, usado 839 vezes.
Do número 00000000000 ao 99999999999, todos os CPFs mais frios que existem foram todos aceitos centenas de vezes pelo Sebrae. Para evitar a repetição desse problema, o Sebrae conectou seu sistema ao da Receita Federal.
Outra grande distorção apareceu nas entidades que o Sebrae chamou para ajudá-lo a executar o programa. Várias delas subcontratavam pessoas para correr atrás de alunos e assim justificar a liberação de mais verbas.
A Folha conversou com três dessas pessoas. Uma delas, Neuza Lourenço Queiroz, presidente do Centro Comunitário e Social da Vila Operária, concordou em aparecer na reportagem.
"Quem não quer um dinheirinho extra? Eu recebia R$ 10 por cada aluno que arrumasse para fazer o curso", afirma Neuza. Oficialmente, ela nunca existiu para o Brasil Empreendedor. Neuza foi contratada por Maria dos Santos, presidente da Associação dos Moradores do Vale Verde, que era parceira legítima do Sebrae.
Neuza diz ter matriculado mais de 500 pessoas no programa. "Eu tinha uma menina que ia de casa em casa buscar o pessoal para oferecer o curso. Na favela lá de trás muita gente fez", conta ela.

Febem
Em muitos lugares do Estado de São Paulo, o Brasil Empreendedor foi oferecido à comunidade como curso de capacitação profissional. Isso explica a presença de mais de 90 mil adolescentes com idades entre dez e 19 anos, conforme relatório do Sebrae.
A Associação dos Funcionários da Febem, parceira regular do Sebrae, costumava encher com menores as aulas do Brasil Empreendedor. Auditoria contratada pelo próprio Sebrae constatou, por exemplo, que, em turma organizadas pela associação entre os dias 11 e 14 de setembro do ano passado, 52 dos 73 "empreendedores" treinados eram menores.
As irmãs Viviane e Juliana Rebequi, de Perus, participaram do programa em junho do ano passado para incrementar o currículo. Na época, Viviane tinha 15 anos e Juliana, 16. Elas trabalham numa sorveteria e estudam à noite. Fizeram o curso porque era de graça. "Eu fiz o curso para me atualizar. Achei bom", diz Juliana, que, por ser menor, não pode pegar empréstimo em banco.


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