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ENTREVISTA DA 2ª/WALDIR PIRES
Dentro da favela, não podemos botar soldado
A Constituição não prevê o uso militar para garantia da lei e da ordem, a não ser que o governo do Rio se declare incapaz
ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
O GOVERNO FEDERAL decidiu empregar as
Forças Armadas no combate ao crime organizado no Rio, que o próprio presidente
Luiz Inácio Lula da Silva chamou de "terrorismo", mas não tem noção sobre as formas e os limites, como fica evidente na entrevista concedida pelo ministro Waldir Pires à Folha, na sexta-feira.
O governador Sérgio Cabral
(PMDB-RJ) pediu ajuda, Lula e
Pires responderam afirmativamente e anunciaram o envio de
tropas da Força Nacional (formada por policiais de elite de
diferentes Estados) e a inclusão
das Forças Armadas no gabinete integrado de segurança do
Estado. Postar soldados ostensivamente ou não nas ruas, porém, virou um tortuoso exercício semântico.
Em nota divulgada pelo Planalto após encontro com Lula,
ministros e oficiais militares,
na quinta, o governo disse que
vai "intensificar a presença"
das Forças Armadas no Rio. O
que vem a ser isso na prática?
Ninguém sabe ao certo.
Segundo Pires, 5.000 soldados do Exército, da Marinha e
da Aeronáutica já sediados no
Rio estão de prontidão, instruídos para "proteger prédios públicos federais", e não apenas o
entorno dos quartéis, caso haja
ameaça. O que pode ser muito
ou pode ser nada.
Nos comandos militares, há
duas certezas: é preciso agir,
mas só se o governo lhes der
respaldo jurídico. O grande temor é que as três Forças sejam
alvo de uma avalanche de inquéritos e processos do Ministério Público e da Justiça por "extrapolarem suas funções".
A Constituição não prevê o
uso militar para garantia da lei
e da ordem, a não ser em casos
específicos, como um pedido
do governador, declarando o
Estado incapaz de controlar a
situação e admitindo a intervenção. Mudanças legais estão
em estudo.
Pires, 80, tem enfrentado
uma sucessão de crises na área
da Defesa: o maior acidente da
história da aviação brasileira,
operação-padrão dos controladores de vôo, atritos com a Aeronáutica e o caos dos aeroportos. As novas crises podem se
deslocar da área da FAB para a
do Exército, com os ataques
"terroristas" no Sudeste.
FOLHA - Ministro, as Forças Armadas vão ou não sair de quartéis e bases no Rio para patrulhar ostensivamente o seu entorno?
WALDIR PIRES - Você viu a nota
do governo de quinta-feira? Ali
diz tudo.
FOLHA - Ao contrário. Foi justamente a nota que deu margem a interpretações divergentes.
PIRES - Na realidade, a nota
tem duas partes. Na primeira, o
presidente da República autorizou a participação das Forças
Armadas no gabinete de gestão
integrada da segurança pública
e uma intensificação da presença das Forças Armadas dentro
das áreas de proteção dos edifícios públicos federais.
FOLHA - Na prática, o que significa
intensificação da presença dentro
de áreas federais?
PIRES - Significa uma mobilização maior de gente, não apenas
dentro dos locais, mas que possam estar, digamos assim, junto dos locais, que possam significar a presença da força federal, atenta a tudo que possa
ocorrer em áreas em que o governo tem possibilidade militar
de atuação, de defesa dos interesses federais. Defesa, portanto, das áreas que incumbem a ele. Fora daí, teria de ser alguma coisa na linha da execução
da política de garantia da lei e
da ordem.
FOLHA - Está prevista a ação militar
em patrulhamento ostensivo, dentro da política de garantia da lei e da
ordem?
PIRES - Agora, não. O que o governo fez nesse caso? Mobilizou a Força Nacional de Segurança Pública.
FOLHA - O governador Sérgio Cabral pediu, além da antecipação do
envio da Força Nacional, que os soldados saíssem além dos muros dos
quartéis e bases do Exército, da Marinha e da Aeronáutica para fazer
patrulhamento ostensivo nas ruas
do seu entorno. A nota é dúbia. Vai
ter ou não?
PIRES - Quem faz isso é a Força
Nacional, porque o Exército, a
Marinha e a Aeronáutica só podem fazer isso em operações
que signifiquem a garantia da
lei e da ordem, e essas têm limitações constitucionais e legais.
Que limitações são essas? São
as que tornam ilegais uma atuação de tropa federal.
FOLHA - Ou seja, o governo atendeu apenas em parte as reivindicações do governador Sérgio Cabral?
PIRES - Não, não... Pode atender tudo, mas o Sérgio Cabral,
para fazer isso, teria que fazer
também alguma coisa que é inconveniente para o Rio e para
ele próprio, por causa das disposições legais e constitucionais. Quer dizer: na hora que
ele pede ao governo a garantia
da lei e da ordem, isso significa
uma coisa também que ele dificilmente poderia fazer.
FOLHA - Ele teria que pedir formalmente a intervenção federal, certo?
PIRES - Não é pedir a intervenção, mas era quase que declarar
a incapacidade de garantir a ordem, não é? Não é isso que ele
quer fazer, e o governo quer
prestigiá-lo, na medida em que
intensifica a presença de forças
federais, para que a população
tome conhecimento. Esse é o
objetivo. Do contrário, ele teria
que fazer uma coisa profundamente negativa para quem está
iniciando um governo. Não
convinha ao Rio isso, nem nos
convém que se enfraqueça a
posição do novo governador.
Por outro lado, não podemos
fazer o que a lei não autoriza.
Então, o que se faz? Uma intensificação de presença militar
dentro das áreas que incumbe
aos militares defendê-las.
FOLHA - Quer dizer que a intensificação da presença pode significar o
Exército entrando numa escola pública federal no Rio?
PIRES - Entrar, não, mas pode
protegê-la.
FOLHA - Ou seja: o Exército e as outras Forças Armadas poderão ser
deslocados para as portas de escolas, universidades e hospitais no Rio,
desde que sejam federais?
PIRES - Pode, mas o governador
não pediu isso. O Exército pode
proteger tudo isso que se pode
chamar de os próprios nacionais, que são os estabelecimentos públicos federais. As Forças
Armadas podem fazer com autorização da União.
FOLHA - Isso o governador não pediu, mas o governo federal oferece?
PIRES - Não. O governo federal
oferece o que está dito na nota,
a intensificação por enquanto,
pois o governo está imaginando
que a Força Nacional pode dar
uma ajuda boa, até nós revermos, digamos assim, essa situação institucional do país.
FOLHA - Que tipo de instrumento
legal pode ser conferido para dar poder de polícia às Forças Armadas em
casos especiais?
PIRES - Aí, não. Aí, só quando o
Estado pede.
FOLHA - Mas o sr. falou explicitamente que se pensa em mudar a situação institucional. Não significa
mudar a legislação?
PIRES - Pode-se pensar em mudar a lei para os instrumentos
que seriam usados, isso pode,
mas mudando a Constituição.
FOLHA - Está tudo muito confuso.
O governo aceitou enviar a Força
Nacional, aceitou que as Forças Armadas participem do comitê integrado e falou em "intensificar a presença" militar, mas alegou não ter
instrumento legal para permitir...
PIRES - Não, não. O governo está disposto a tudo isso, mas
dentro das condições legais e
constitucionais do país. Em vez
de usar o negativo, tem de usar
o afirmativo.
FOLHA - Então, no entorno das bases e quartéis, não pode? Uma pessoa que participou da reunião de
quinta-feira com o presidente me
disse que um argumento contrário
foi que o perímetro de alguns quartéis do Rio se confunde com favelas
e isso significaria que o soldado armado ficaria dentro da favela.
PIRES - Dentro da favela, não
podemos botar soldado. Aí, só
se o governador pedir. Quando
se fala em perímetro militar, é o
estabelecimento militar ele
mesmo, em si mesmo.
FOLHA - Dentro dele e não no entorno que o governador queria?
PIRES - Entorno está do lado de
fora, não pode ser. O que pode é
sair uma patrulha de um local
para ir para outro específico,
também militar. Isso pode fazer, mas não substituir a polícia, isso não dá, a não ser de
acordo com a lei. E o que seria
de acordo com a lei? Um pedido
de garantia da lei e da ordem.
FOLHA - E no caso da defesa dos
próprios federais? As três Forças poderão ficar preventivamente ao redor de uma escola, por exemplo, ou
só se essa escola estiver sofrendo
uma ameaça de ataque?
PIRES - Se for federal, pode,
mas não há indicação disso no
momento. Poder, pode, desde
que seja federal. Pode proteger
as crianças de um estabelecimento federal, sem nenhuma
dúvida. A Universidade Federal
do Rio de Janeiro, por exemplo,
o governo federal pode, evidentemente, proteger os jovens ali.
FOLHA - Quais são os próximos
passos?
PIRES - Vão depender da evolução das coisas no próprio Rio. O
fato mais imediato é chegar a
Força Nacional. Segundo, essa
intensificação da presença dentro e ao lado, digamos assim, no
passeio ou o que for, dos edifícios federais, isso poderá ser
mobilizado até, eu imagino, na
próxima [nesta] semana. Qualquer coisa em torno de 5.000
homens, ou soldados, já poderão estar intensificando a proteção dos estabelecimentos federais, de modo a demonstrar a
solidariedade do governo federal com a população do Rio de
Janeiro. Para intervir fora disso, seria necessário o requisito
que está na Constituição, de garantia da lei e da ordem.
FOLHA - Para ficar claro: na próxima [nesta] semana, 5.000 soldados
poderão ser deslocados para o Rio...
PIRES - Não, não é deslocados.
São os soldados existentes no
Rio. Eu falo que, do contingente no Estado, 5.000 soldados
podem, ou devem ser destinados para isso. É uma presença
mais ou menos ostensiva.
FOLHA - Os 5.000 soldados estarão
de prontidão dentro dos quartéis?
PIRES - Exatamente. E se [os
criminosos] extrapolarem alguma coisa e o pedido for
maior, aí se utilizaria o que a lei
autoriza.
FOLHA - O presidente se referiu à
situação como terrorismo. O que ele
está achando de tudo isso?
PIRES - Digamos assim, é a irracionalidade do ato do banditismo, geralmente uma coisa sem
objetivo. Matar para roubar é
um crime comum, e incendiar
um ônibus e matar pessoas
realmente é uma coisa absolutamente cruel e inadmissível.
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