|
Texto Anterior | Índice
MEMÓRIA
Era um antigramático
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Quinto dos sete filhos de Habib
Assad Houaiss e Malvina Farjalla
Houaiss, o acadêmico Antônio
Houaiss, filólogo, tradutor, diplomata, ex-ministro da Cultura, entendido em comes-e-bebes, nasceu
no Rio de Janeiro, em 1915. Revelando precocidade intelectual e
disciplina de "scholar", aos 19 anos
já era professor de português, latim e literatura.
Casou-se em 1942, não teve filhos, mas fulminante carreira diplomática, exercendo diversas
funções que foram bruscamente
interrompidas em 1964, quando
era secretário da delegação brasileira junto à ONU. Cassado na primeira leva do movimento militar
daquele ano, Antônio Houaiss trabalhou algum tempo como editorialista do "Correio da Manhã" e, a
pedido de seu amigo, o editor Ênio
Silveira, começou a sua principal
obra no campo intelectual, que foi
a tradução do romance "Ulisses",
de James Joyce.
Antes, já firmara renome nacional como crítico literário e dicionarista, trabalhando em diversos
projetos que o credenciaram a
duas das maiores realizações no
campo editorial: a organização das
enciclopédias "Delta-Larousse" e a
"Mirador".
Aliando-se ao editor Abraham
Koogan, organizou também uma
pequena enciclopédia cuja edição
recebeu o título de "Koogan-Houaiss".
Ainda no terreno editorial, integrou e chefiou diversos grupos de
trabalho que elaboraram vocabulários da língua portuguesa, patrocinados pela Academia Brasileira
de Letras, sendo que o último, em
preparo, conseguiu reunir 270 mil
verbetes -que ele achava pouco,
pois suspeitava que, se houvesse
tempo e patrocínio, poderia chegar a 400 mil verbetes.
Eleito para a Academia Brasileira
de Letras em 1971 na cadeira 17,
presidiu a Casa de Machado de Assis em 1996. Membro fundador do
Partido Socialista Brasileiro, em
1989 teve seu nome lembrado para
vice-presidente na chapa de Lula.
Em 1992, indicado por José Aparecido, foi ministro da Cultura no
governo Itamar Franco, quando
teve que lutar contra dois fatores
adversos: a falta de verbas e a falta
de saúde. Datam dessa época suas
primeiras internações no Hospital
Silvestre.
Intelectual dos mais prestigiados
no cenário nacional, Houaiss ficou
rotulado com um adjetivo que pessoalmente detestava: "enciclopédico". Compensava essa fama de
tudo saber com uma abertura espiritual que o fazia apreciar o que era
espontâneo e desvinculado de regras e preconceitos.
A começar pela abertura que
trouxe a linguística e à própria gramática, nela incluindo a ortografia.
Reabilitou o "y", o "k" e o "w", letras cassadas em reformas anteriores.
Considerava a língua uma expressão vital em permanente processo. Criava e aceitava neologismos, desde que tivessem um significado facilmente percebido. Era,
acima de tudo, um antigramático.
Foi de igual modo um apreciador
da boa mesa, escrevendo livros e
artigos sobre o assunto. Aliando
teoria e prática, era considerado
um excelente cozinheiro que levava para suas criações a mesma liberdade que trouxera para a língua
portuguesa. Um de seus livros é
dedicado à cerveja: "O bebedor de
cerveja é cordial, não um porrista
como o uisquidor. Um bebe porque está alegre. O outro porque está amolado". E arremata: "Cerveja
é para quem anda de bem com a vida".
Em política sempre foi fiel a seu
ideário socialista. Em gramática,
criou um processo de abertura que
ajudou a liberar o pensamento,
desvinculando-o de amarras e preconceitos. Na arte de viver, experimentou os altos e baixos de uma
carreira múltipla no cenário nacional e internacional.
Mesmo em sua fase final, quando
alquebrado pela idade tinha dificuldade de se locomover, nunca
deixou de participar da vida que
amou e soube honrar com um
exemplo de trabalho e dignidade
que marcaram a nossa vida intelectual neste final de século.
Texto Anterior: O homem que sabia valorizar as coisas boas da vida Índice
|