São Paulo, Segunda-feira, 08 de Março de 1999
Texto Anterior | Índice

MEMÓRIA
Era um antigramático


CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Quinto dos sete filhos de Habib Assad Houaiss e Malvina Farjalla Houaiss, o acadêmico Antônio Houaiss, filólogo, tradutor, diplomata, ex-ministro da Cultura, entendido em comes-e-bebes, nasceu no Rio de Janeiro, em 1915. Revelando precocidade intelectual e disciplina de "scholar", aos 19 anos já era professor de português, latim e literatura.
Casou-se em 1942, não teve filhos, mas fulminante carreira diplomática, exercendo diversas funções que foram bruscamente interrompidas em 1964, quando era secretário da delegação brasileira junto à ONU. Cassado na primeira leva do movimento militar daquele ano, Antônio Houaiss trabalhou algum tempo como editorialista do "Correio da Manhã" e, a pedido de seu amigo, o editor Ênio Silveira, começou a sua principal obra no campo intelectual, que foi a tradução do romance "Ulisses", de James Joyce.
Antes, já firmara renome nacional como crítico literário e dicionarista, trabalhando em diversos projetos que o credenciaram a duas das maiores realizações no campo editorial: a organização das enciclopédias "Delta-Larousse" e a "Mirador".
Aliando-se ao editor Abraham Koogan, organizou também uma pequena enciclopédia cuja edição recebeu o título de "Koogan-Houaiss".
Ainda no terreno editorial, integrou e chefiou diversos grupos de trabalho que elaboraram vocabulários da língua portuguesa, patrocinados pela Academia Brasileira de Letras, sendo que o último, em preparo, conseguiu reunir 270 mil verbetes -que ele achava pouco, pois suspeitava que, se houvesse tempo e patrocínio, poderia chegar a 400 mil verbetes.
Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1971 na cadeira 17, presidiu a Casa de Machado de Assis em 1996. Membro fundador do Partido Socialista Brasileiro, em 1989 teve seu nome lembrado para vice-presidente na chapa de Lula. Em 1992, indicado por José Aparecido, foi ministro da Cultura no governo Itamar Franco, quando teve que lutar contra dois fatores adversos: a falta de verbas e a falta de saúde. Datam dessa época suas primeiras internações no Hospital Silvestre.
Intelectual dos mais prestigiados no cenário nacional, Houaiss ficou rotulado com um adjetivo que pessoalmente detestava: "enciclopédico". Compensava essa fama de tudo saber com uma abertura espiritual que o fazia apreciar o que era espontâneo e desvinculado de regras e preconceitos.
A começar pela abertura que trouxe a linguística e à própria gramática, nela incluindo a ortografia. Reabilitou o "y", o "k" e o "w", letras cassadas em reformas anteriores.
Considerava a língua uma expressão vital em permanente processo. Criava e aceitava neologismos, desde que tivessem um significado facilmente percebido. Era, acima de tudo, um antigramático.
Foi de igual modo um apreciador da boa mesa, escrevendo livros e artigos sobre o assunto. Aliando teoria e prática, era considerado um excelente cozinheiro que levava para suas criações a mesma liberdade que trouxera para a língua portuguesa. Um de seus livros é dedicado à cerveja: "O bebedor de cerveja é cordial, não um porrista como o uisquidor. Um bebe porque está alegre. O outro porque está amolado". E arremata: "Cerveja é para quem anda de bem com a vida".
Em política sempre foi fiel a seu ideário socialista. Em gramática, criou um processo de abertura que ajudou a liberar o pensamento, desvinculando-o de amarras e preconceitos. Na arte de viver, experimentou os altos e baixos de uma carreira múltipla no cenário nacional e internacional.
Mesmo em sua fase final, quando alquebrado pela idade tinha dificuldade de se locomover, nunca deixou de participar da vida que amou e soube honrar com um exemplo de trabalho e dignidade que marcaram a nossa vida intelectual neste final de século.


Texto Anterior: O homem que sabia valorizar as coisas boas da vida
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.