São Paulo, Segunda-feira, 08 de Março de 1999
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HOMENAGEM
O homem que sabia valorizar as coisas boas da vida

ANTONIO CALLADO
especial para a Folha

Por breve que seja, qualquer estudo biográfico que se faça de Antônio Houaiss refletirá inúmeros aspectos da vida cultural e política do Brasil. Houaiss é homem engajado, de participação variada e intensa no que de relevante acontece ao seu redor. Cultiva uma inata polidez, mas põe paixão em tudo o que faz.
Pequeno de estatura, magro e musculoso, articulando com energia frases de extraordinária clareza, parece em princípio quase puro intelecto. Mas seus olhos são claros e risonhos, a maneira é afável, o senso de humor, agudo. E em pouco tempo se descobre que, capaz como é do pensamento abstrato, Antônio Houaiss -filólogo, diplomata, homem de um saber enciclopédico- dá igualmente um valor enorme às coisas boas da vida. É, como já veremos, um requintado cozinheiro.
Sempre que fala à imprensa, ou que o entrevistam em algum programa de televisão, Antônio Houaiss gosta de se ocupar dos primeiros anos de sua vida em Copacabana, onde nasceu dia 15 de outubro de 1915, no seio de uma amorosa família de imigrantes libaneses. O pai era dono de armarinho, a mãe (que tinha sete filhos a alimentar), a perita cozinheira a quem o filho Antônio trazia da praia os crustáceos e com quem ia aprendendo a prepará-los. Desde esses tempos de uma infância muito feliz, mas dura, Houaiss foi aprofundando uma natural tendência à concentração, à aplicação no que fazia, ao estudo. Em 1927, perfeitamente apto a entrar no Colégio Pedro 2º, compreendeu que o pai não podia sequer comprar seu uniforme. Sem titubear entrou para a Escola de Comércio Amaro Cavalcanti para se formar como perito-contador e começar a ganhar o dinheiro que lhe financiaria os incessantes e cada vez mais altos estudos que o levariam à eminente posição que hoje ocupa no país. Bacharelou-se em letras clássicas pela Faculdade Nacional de Filosofia em 1942, lecionou português, latim, literatura. Ingressou na carreira diplomática, por concurso, no ano de 1945, e, no Itamarati, travaria a primeira de suas muitas batalhas em nome do direito de pensar livremente. No correr dos anos 50 Antônio Houaiss se viu envolvido, com outros companheiros de carreira, entre os quais o poeta João Cabral de Melo Neto, em insidiosas acusações de conspiração comunista. O objetivo era de, a um só tempo, desestabilizar o governo do momento, de Getúlio Vargas, e destruir a carreira de jovens de cultura vasta e idéias modernas. Houaiss enfrentou de cabeça erguida a inquisição então montada contra o grupo e apelou para o Supremo Tribunal Federal, no que foi seguido pelos outros acusados. Voltou, reintegrado, à carreira diplomática, e nela serviu o Brasil até o ano fatídico de 1964. Foi, então, cassado como subversivo. Deixou a "carrière" e mergulhou numa brilhante carreira de escritor, dicionarista, jornalista, tradutor. Mas jamais se conformou com o arbítrio da ditadura militar, com o esbulho sofrido às vésperas da sua promoção ao último escalão da carreira diplomática, o cargo de ministro de primeira classe. Mesmo depois de anistiado, negaram-lhe ainda a promoção, que só lhe chegou no ano de 1990. Conta-se que o marechal Castelo Branco, quando chefe do governo militar e num raro momento de humor, teria dito que a cassação de Antônio Houaiss se justificava do ponto de vista cultural pois lhe dera tempo para fazer a tradução do romance "Ulisses", de James Joyce. A verdade é que Houaiss não só traduziu o "Ulisses" como deu à cultura do Brasil e à cultura de língua portuguesa em geral novos e admiráveis instrumentos para fundamentá-las e ampliá-las: foi o coordenador de duas enciclopédias, a "Delta Larousse" e a "Mirador", assim como do "Dicionário Barsa Português-Inglês", além de livros como "A Crise da Nossa Língua de Cultura", "O Português no Brasil", "Introdução Filológica às "Memórias Póstumas de Brás Cubas'", para nem falar no seu titânico trabalho, do "Grande Dicionário da Língua Portuguesa".
No entanto, falharia redondamente qualquer perfil de Antônio Houaiss que não desse generoso espaço ao Houaiss à mesa, ao gastrônomo que não só adora comer e beber bem, como, igualmente, de ensinar os outros a bem comerem e beberem.
Houaiss iniciou sua literatura gastronômica com um livrinho chamado "Receitas Rápidas", compôs um pequeno tratado sobre "A Cerveja e Seus Mistérios" e se expandiu à vontade no brilhante e nutritivo "Magia da Cozinha Brasileira", de 1979. Quase qualquer das inúmeras receitas desse livro mostra, de corpo inteiro, um Antônio Houaiss que é, a um só tempo, membro da Academia Brasileira de Filologia, da Academia Brasileira de Letras e da Confraria dos Gastrônomos.
Um jantar que o próprio Houaiss prepara e oferece em seu apartamento do Rio, debruçado sobre a lagoa Rodrigo de Freitas, é sempre uma ocasião memorável. À hora do aperitivo o anfitrião descreve, numa breve alocução, o que preparou na cozinha, o que vai ser degustado. No dizer de um amigo dele, é o único jantar do mundo com prefácio.


O escritor Antonio Callado, morto em 97, produziu esse texto inédito sobre Antônio Houaiss em setembro de 1992, a pedido da Folha.


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