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HOMENAGEM
O homem que sabia valorizar as coisas boas da vida
ANTONIO CALLADO
especial para a Folha
Por breve que seja, qualquer estudo biográfico que se faça de Antônio Houaiss refletirá inúmeros
aspectos da vida cultural e política
do Brasil. Houaiss é homem engajado, de participação variada e intensa no que de relevante acontece
ao seu redor. Cultiva uma inata polidez, mas põe paixão em tudo o
que faz.
Pequeno de estatura, magro e
musculoso, articulando com energia frases de extraordinária clareza, parece em princípio quase puro
intelecto. Mas seus olhos são claros
e risonhos, a maneira é afável, o
senso de humor, agudo. E em pouco tempo se descobre que, capaz
como é do pensamento abstrato,
Antônio Houaiss -filólogo, diplomata, homem de um saber enciclopédico- dá igualmente um
valor enorme às coisas boas da vida. É, como já veremos, um requintado cozinheiro.
Sempre que fala à imprensa, ou
que o entrevistam em algum programa de televisão, Antônio
Houaiss gosta de se ocupar dos
primeiros anos de sua vida em Copacabana, onde nasceu dia 15 de
outubro de 1915, no seio de uma
amorosa família de imigrantes libaneses. O pai era dono de armarinho, a mãe (que tinha sete filhos a
alimentar), a perita cozinheira a
quem o filho Antônio trazia da
praia os crustáceos e com quem ia
aprendendo a prepará-los. Desde
esses tempos de uma infância muito feliz, mas dura, Houaiss foi
aprofundando uma natural tendência à concentração, à aplicação
no que fazia, ao estudo. Em 1927,
perfeitamente apto a entrar no Colégio Pedro 2º, compreendeu que o
pai não podia sequer comprar seu
uniforme. Sem titubear entrou para a Escola de Comércio Amaro
Cavalcanti para se formar como
perito-contador e começar a ganhar o dinheiro que lhe financiaria
os incessantes e cada vez mais altos
estudos que o levariam à eminente
posição que hoje ocupa no país.
Bacharelou-se em letras clássicas
pela Faculdade Nacional de Filosofia em 1942, lecionou português,
latim, literatura. Ingressou na carreira diplomática, por concurso,
no ano de 1945, e, no Itamarati, travaria a primeira de suas muitas batalhas em nome do direito de pensar livremente. No correr dos anos
50 Antônio Houaiss se viu envolvido, com outros companheiros de
carreira, entre os quais o poeta
João Cabral de Melo Neto, em insidiosas acusações de conspiração
comunista. O objetivo era de, a um
só tempo, desestabilizar o governo
do momento, de Getúlio Vargas, e
destruir a carreira de jovens de cultura vasta e idéias modernas.
Houaiss enfrentou de cabeça erguida a inquisição então montada
contra o grupo e apelou para o Supremo Tribunal Federal, no que foi
seguido pelos outros acusados.
Voltou, reintegrado, à carreira diplomática, e nela serviu o Brasil até
o ano fatídico de 1964. Foi, então,
cassado como subversivo. Deixou
a "carrière" e mergulhou numa
brilhante carreira de escritor, dicionarista, jornalista, tradutor.
Mas jamais se conformou com o
arbítrio da ditadura militar, com o
esbulho sofrido às vésperas da sua
promoção ao último escalão da
carreira diplomática, o cargo de
ministro de primeira classe. Mesmo depois de anistiado, negaram-lhe ainda a promoção, que só lhe
chegou no ano de 1990. Conta-se
que o marechal Castelo Branco,
quando chefe do governo militar e
num raro momento de humor, teria dito que a cassação de Antônio
Houaiss se justificava do ponto de
vista cultural pois lhe dera tempo
para fazer a tradução do romance
"Ulisses", de James Joyce. A verdade é que Houaiss não só traduziu o
"Ulisses" como deu à cultura do
Brasil e à cultura de língua portuguesa em geral novos e admiráveis
instrumentos para fundamentá-las e ampliá-las: foi o coordenador
de duas enciclopédias, a "Delta Larousse" e a "Mirador", assim como
do "Dicionário Barsa Português-Inglês", além de livros como "A
Crise da Nossa Língua de Cultura",
"O Português no Brasil", "Introdução Filológica às "Memórias Póstumas de Brás Cubas'", para nem falar no seu titânico trabalho, do
"Grande Dicionário da Língua
Portuguesa".
No entanto, falharia redondamente qualquer perfil de Antônio
Houaiss que não desse generoso
espaço ao Houaiss à mesa, ao gastrônomo que não só adora comer e
beber bem, como, igualmente, de
ensinar os outros a bem comerem
e beberem.
Houaiss iniciou sua literatura
gastronômica com um livrinho
chamado "Receitas Rápidas",
compôs um pequeno tratado sobre "A Cerveja e Seus Mistérios" e
se expandiu à vontade no brilhante
e nutritivo "Magia da Cozinha Brasileira", de 1979. Quase qualquer
das inúmeras receitas desse livro
mostra, de corpo inteiro, um Antônio Houaiss que é, a um só tempo, membro da Academia Brasileira de Filologia, da Academia Brasileira de Letras e da Confraria dos
Gastrônomos.
Um jantar que o próprio Houaiss
prepara e oferece em seu apartamento do Rio, debruçado sobre a
lagoa Rodrigo de Freitas, é sempre
uma ocasião memorável. À hora
do aperitivo o anfitrião descreve,
numa breve alocução, o que preparou na cozinha, o que vai ser degustado. No dizer de um amigo dele, é o único jantar do mundo com
prefácio.
O escritor Antonio Callado, morto em 97, produziu esse texto inédito sobre Antônio Houaiss em
setembro de 1992, a pedido da Folha.
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