São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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QUESTÃO AGRÁRIA
Raul Jungmann afirma que 70 milhões de hectares de terras no Brasil estão sob suspeita
75% dos latifúndios são irregulares


"Cairá por terra um velho discurso da esquerda, segundo o qual o Brasil é líder em concentração de terras"



"Uma parcela ponderável das propriedades é fruto de grilagem, só existe no papel ou não se sustenta se formos analisar a cadeia dominial"


JOSIAS DE SOUZA
Diretor da Sucursal de Brasília

O governo está próximo de provar algo de que muitos já suspeitavam: o Brasil vive uma situação de anarquia fundiária. Cerca de 70 milhões de hectares de terras estão em situação irregular. Está-se falando de uma área correspondente a três vezes o Estado de São Paulo. "Uma parcela ponderável das propriedades que estão no nosso cadastro é fruto de grilagem, é propriedade que só existe no papel ou é propriedade que não se sustenta se formos analisar a cadeia dominial", diz o ministro Raul Jungmann (Desenvolvimento Agrário). De acordo com os arquivos do Incra, as propriedades rurais privadas do país se esparramam por 353 milhões de hectares. Desse total, 93 milhões de hectares (11% do território nacional) estão concentrados nas mãos de escassos 3.065 proprietários. É nesse naco que se concentra a fraude. Cerca de 75% dos latifúndios são irregulares, segundo o ministro. O governo deu prazo de 120 dias para que os 3.065 latifundiários apresentassem documentos comprovando a posse das terras. Para a maior parte deles, o prazo termina dentro de cinco dias. Pois só 150 entregaram ao Incra os respectivos documentos, ainda sob análise. Segundo Jungmann, já está claro que o governo terá de fazer uma "limpeza" nos arquivos do Incra após o recenseamento das terras cuja titulagem está sob suspeição.

Folha - O sr. costuma dizer que a titulagem de terras no Brasil não é confiável. Recentemente, baixou portaria dando prazo até meados deste mês para que os proprietários exibam a documentação de suas terras. Como está esse levantamento? Raul Jungmann - O prazo é até 14 de abril. Um pequeno grupo, composto por pessoas que demoraram a ser notificadas, terá prazo até o final de junho. A grande maioria precisa agir até o dia 14.

Folha - Já se pode fazer um balanço parcial? Jungmann - A resposta tem sido insatisfatória, extraordinariamente baixa.

Folha - Muito baixa? Jungmann - Dos 93 milhões de hectares, só 5 milhões ingressaram com a papelada até aqui.

Folha- Só se apresentaram os proprietários de 5 milhões de hectares? Jungmann - Sim. Esses 93 milhões de hectares estão registrados em nome de 3.065 proprietários. Só 5% deles deram as caras até agora. E não estou dizendo que passaram no teste. Isso ainda está sob análise. Achamos que, mesmo lá adiante, quando vencer o prazo dado àqueles que foram notificados mais tarde, esse quadro não irá se alterar muito.

Folha - O que isso significa? Jungmann - Significa que uma parcela ponderável das propriedades que estão no nosso cadastro é fruto de grilagem, é propriedade que só existe no papel ou é propriedade que não se sustenta se formos analisar a cadeia dominial. Há também proprietários sérios e honestos, que queremos reconhecer e premiar.

Folha - Quantos hectares de terras com titulagem fraudulenta há nos cadastros do Incra? Jungmann - Calculamos que, ao final de todo o processo, vamos ter de limpar cerca de 70 milhões de hectares dos cadastros do Incra. Cairá por terra um velho discurso da esquerda, segundo o qual o Brasil é líder em concentração de terras. Fico triste quando vejo, como em artigo recente de Frei Beto, dizerem essa impropriedade. O Brasil não é líder de concentração de terras nem mesmo na América Latina. Com esses novos dados, a concentração de terras no país irá despencar.

Folha - Quer dizer que há 70 milhões de hectares de terras com títulos falsos? Jungmann - São três situações: há terras griladas; há puro papel, que se utiliza para alavancar recursos em bancos ou para esquentar dinheiro, talvez até do narcotráfico, e pode haver proprietários que, muitas vezes de boa-fé, receberam papéis fraudados ao comprar terras.

Folha - Quando o sr. diz puro papel, está querendo dizer que há terras fictícias, que só existem no papel? Jungmann - Exatamente. Parece absurdo, mas é o que acontece. Grande número de propriedades com supostas escrituras nem mesmo existe. É um número expressivo.

Folha - O que vai resultar de todo esse levantamento? Jungmann - Quem sair vivo do outro lado, terá uma certidão sólida de propriedade. Esperamos reduzir os conflitos. E pretendemos fazer um sistema público de registro de terras que seja digno do nome. Isso é básico para um país com 8,5 milhões de quilômetros quadrados.

Folha - Os títulos de papel vão virar fumaça. O governo irá retomar as terras griladas? Jungmann - Talvez uma parte delas. Podemos também arbitrar um valor para que as pessoas paguem ao Estado por terras que estejam ocupando irregularmente.

Folha - O sr. afastou 29 superintendentes regionais do Incra e anunciou novos critérios de preenchimento dos postos. O que muda? Jungmann - Estamos reestruturando radicalmente o Incra desde o ano passado. Além disso, travamos uma batalha interna contra o patrimonialismo, contra a apropriação privada do Estado. Não me bato contra a indicação política. Não nomearei ninguém da oposição e as escolhas finais serão também políticas. O que não pode acontecer é o funcionário ter uma dupla lealdade, subordinando o compromisso com os objetivos públicos aos interesses de quem quer que seja.

Folha - Mas, se o sr. mantém a indicação política, está mantendo também a dupla subordinação. O superintendente indicado por político jamais deixará de ser leal ao seu padrinho. Jungmann - É diferente. O novo sistema prevê que a seleção será feita segundo critérios de mérito e probidade. Em segundo lugar, o funcionário fica amarrado por um contrato de gestão que é público, sai no "Diário Oficial" da União. Se me chega uma lista tríplice para determinado posto e os apoios políticos aderem a este ou aquele candidato, eu tenho liberdade para escolher com base na probidade e na competência.

Folha - Como funcionará na prática a nova sistemática? Jungmann - Poderão concorrer às superintendências do Incra todos os brasileiros que tenham pelo menos dois anos de experiência em cargos de gestão, com conhecimento na área de desenvolvimento rural.

Folha - Como se dará publicidade a isso? Jungmann - Por meio de convocação pública, em jornal, no boletim interno e no "Diário Oficial".

Folha - E quem fará a triagem? Jungmann - Uma comissão fará a seleção prévia dos candidatos. Serão escolhidos cinco. Em seguida, o colegiado do Incra, aqui em Brasília, sob nosso total controle, escolherá três. Esses três nomes vêm para a mesa do ministro, para que ele opte por um.

Folha - Quem garante que, dos três nomes que virão para a sua mesa, o que eventualmente tenha apadrinhamento político não prevalecerá em detrimento do que reúne melhor qualificação técnica? Jungmann - Respondo à sua pergunta, mas me permita dizer que isso é o menos importante. O importante é que aquela pessoa chegou ali pelos seus méritos. E ele tem um contrato de gestão com as metas estipuladas. Uma parte do salário dele irá variar em função do desempenho. Se na lista tríplice houver um apoio político maior a este ou aquele nome, não haverá como ele creditar primordialmente a uma indicação política a sua escolha. A indicação será bem-vinda, mas a base será o mérito, a competência e o resultado. O funcionário terá, de resto, um mandato de dois anos, renováveis por mais dois. E sairá a qualquer momento, caso não cumpra as metas.

Folha - Quais serão os critérios de desempenho aos quais o funcionário estará sujeito? Jungmann - O contrato de gestão prevê avaliação trimestral, feita por auditoria externa, com a participação da UnB (Universidade de Brasília). Veremos, entre outros critérios, o número de famílias que o superintendente assentou, quantidade de infra-estrutura que ele realizou, custo e preço que conseguiu pelas obras e assentamentos. Permita-me dizer que também estamos editando medida que visa inibir a prática do nepotismo no âmbito do ministério. Pretendemos também estabelecer um sistema de cotas, para aumentar o número de mulheres e pessoas de cor nos escalões superiores.

Folha - Qual será a cota? Jungmann - Quero discutir este assunto. Hoje, nos escalões elevados do serviço público, há pouquíssimas mulheres e pessoas de cor. A discussão é complexa. Vou travar uma ampla discussão. Não será decisão apenas do ministro. Mais adiante, espero também criar um conselho social, com representantes da sociedade a quem prestaremos contas.

Folha - O sr. está no governo desde o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique. Só na pasta do Desenvolvimento Agrário, está há quatro anos. Por que só agora está abrindo os olhos para todas essas questões? Jungmann - Faço isso desde o primeiro dia. O problema é que cada passo tem que ser dado com consistência. É preciso antes buscar alianças dentro e fora da máquina. Na verdade, o decreto que cria a possibilidade desta mudança nas superintendências do Incra vem de agosto de 99. Agora só estamos dando consequência a ele. E o processo de reestruturação do Incra já existe há aproximadamente um ano e meio. Concordo que temos sido algo tímidos. Estamos muito preocupados com as metas externas. Quando cheguei aqui, a pressão era para assentar famílias. Não se colocava à época o desafio de mudar o Incra. Hoje, com quase 400 mil famílias assentadas, podemos nos impor novos desafios.

Folha - Ao afastar 29 superintendentes do Incra, o senhor de certo modo os está colocando sob suspeição, não? Jungmann - É um risco. Mas eu já disse que não estava exonerando ninguém por punição ou corrupção. Isso nós fazemos cotidianamente. Já troquei algo como 60% desses superintendentes, ou por incompetência ou por corrupção. Agora estamos mudando os critérios de seleção, o que é diferente.

Folha - Todos os 29 vieram por indicação política? Jungmann - Não. Creio que só 10 ou 11 foram indicados politicamente. Há indicações políticas que vão muito bem. Há também o contrário. O quadro se repete no quadro eminentemente técnico. Por isso estamos partindo para o sistema de metas.

Folha - O senhor é filiado ao PPS. Está licenciado, mas continua filiado. O PPS tem candidato à Presidência, Ciro Gomes, que é desafeto do presidente Fernando Henrique. Como o senhor consegue administrar essa aparente contradição? Jungmann - Quando optei por participar do governo, entreguei ao presidente do partido uma carta em que me licenciava e liberava o partido para tomar uma atitude unilateral, se assim o desejasse. Quanto às relações entre Ciro e o presidente, não me cabe comentar. É evidente que isso, em determinados momentos, me causa algum desconforto. Mas acho que o PPS dá um exemplo democrático. O partido nunca me pediu um cargo. Recebo críticas e elogios do partido ao que venho fazendo. Sobre o Ciro, acho que ele tem qualidades. Mas o grande desafio dele e do PPS é o desafio da governabilidade. Hoje, não se faz nada no Brasil sem um grande suporte parlamentar. Um suporte que até aqui o candidato não amealhou.


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