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QUESTÃO AGRÁRIA
Estudo mostra indícios de que o método das avaliações do governo superfatura fazendas expropriadas
Governo paga sobrepreço por indenização
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Estudo do Ministério do Desenvolvimento Agrário revela: o método de cálculo da indenização
que o governo paga aos proprietários de terras desapropriadas para
a reforma agrária é "impreciso",
"inconsistente", "ineficiente",
"tendencioso" e, por todas essas
razões, "insustentável".
O mecanismo "puxa para cima"
os valores das indenizações de fazendas expropriadas, lesando o
erário em milhões de reais.
O trabalho foi feito com base na
análise de 1.127 processos de desapropriação rural. Envolvem 3,9
milhões de hectares, distribuídos
por 11 Estados. São terras expropriadas entre 1993 e 2000. Custaram ao Incra (Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária) R$ 1,5 bilhão, em valores
atualizados até 2000.
Colecionaram-se indícios de
que as avaliações do governo superfaturam o preço das fazendas.
Porém as contas e respectivas
projeções não puderam ser fechadas. O grupo que realizava o estudo foi dissolvido em 2001, ainda
sob o governo FHC. O trabalho ficou pela metade.
Ouvidos, ex-integrantes do extinto grupo de estudo estimam
que o sobrepreço médio pago pelo Incra ao longo dos últimos anos
tenha oscilado nas faixa de 30% a
40%. A se confirmarem esses percentuais, só nos 1.127 processos
analisados, podem ter sido malversados entre R$ 450 milhões e
R$ 600 milhões.
O estudo demonstra também
que, na maior parte dos Estados,
os cálculos do Incra são tonificados por perícias feitas a pedido de
juízes federais.
Na fase de tramitação judicial,
foram detectadas oscilações para
o alto de 55,74%, no Estado do Pará, a 319,4%, no Maranhão. Incidem sobre cifras já infladas. Ou
seja, nesse caso, superfatura-se a
superavaliação.
Rossetto avisado
O governo sabe, desde a administração FHC, que os laudos de
avaliação de terras contêm "valores acima dos preços de mercado". O então ministro Raul Jungmann chegou a divulgar uma publicação intitulada "Livro Branco
das Superindenizações".
A despeito disso, em vez de
aprofundar o estudo que corroborou as suspeitas, o tucanato o
interrompeu. Quanto à metodologia de cálculo das indenizações,
embora tachada de "insustentável", lesiva ao interesse público,
foi mantida.
Promoveram-se apenas ajustes
pontuais. Que, na opinião dos
membros do grupo disperso, não
lograram conter o sobrepreço.
Ao tomar posse, em janeiro de
2003, o governo Lula foi informado a respeito do estudo que esquadrinha o dano que vem sendo
infligido aos cofres públicos.
Embora sobrestado, o estudo
resultou num calhamaço de mais
de 600 páginas. Os autores remeteram cópias dos documentos para os novos gestores do Incra (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária).
O ministro Miguel Rossetto
(Desenvolvimento Agrário) também recebeu uma síntese do trabalho. Chama-se "Desapropriação Agrária pelo Rito Sumário:
Justa Indenização". As informações foram para a gaveta.
Sob o petismo, a metodologia
"insustentável" permaneceu intocada. É usada até hoje. Não por
falta de opções. Obtido pela Folha, o estudo oficial propõe alternativas. Uma das fórmulas mencionadas foi desenvolvida pela
Universidade Católica de Pelotas.
Preços de mercado
A sistemática gaúcha já foi aplicada em reavaliações esporádicas,
realizadas a pedido do Ministério
Público. Vem se revelando mais
vantajosa para o erário. Mas o Incra esquivou-se de adotá-la formalmente.
O corpo de engenheiros agrônomos da autarquia resiste à adoção do novo método. Argumenta-se que, por recente, ainda não restou demonstrada a sua "viabilidade científica".
A pesquisa que serviu de base às
conclusões do estudo foi iniciada
em abril de 1998. O trabalho chegou a mobilizar 26 funcionários
do Incra, entre agrônomos e procuradores. O objetivo era avaliar a
eficácia da legislação agrária baixada em 1993 e atualizada nos
anos subseqüentes, culminando
com a edição da medida provisória 1.577, em 1997.
Todo esse conjunto de novas
leis regulou o processo de aquisição de terras pelo Incra. Instituiu-se o chamado "rito sumário" de
desapropriação. Vincularam-se
as indenizações, ao menos no papel, aos preços que vêm sendo
praticados pelo mercado.
Debruçados sobre processos de
expropriação iniciados a partir de
1993, os técnicos produziram o
mais minucioso levantamento sobre o tema de que se tem notícia.
Não fosse pela interrupção, em
vez de 1.127, teriam perscrutado
mais de 2.500 laudos de avaliação.
Ouvido, Raul Jungmann, hoje
deputado federal pelo PPS de Pernambuco, disse: "Pelo que me
lembro, a pesquisa estava demorando demais. Não terminava
nunca. Mas creio que muitas das
sugestões que o grupo fez foram
aproveitadas". A nova direção petista do Incra confirma. Os autores do estudo negam.
Dados encaixotados
De acordo com o planejamento
inicial, a pesquisa alcançaria 17
Estados. À altura da interrupção,
só haviam sido coletados os dados
relativos a 11 deles. Parte dos números nem pôde ser convertida
em relatórios analíticos.
A pesquisa foi dividida em duas
fases. Apenas os dados relativos à
primeira fase, concluída em 1999,
foram convenientemente analisados. Produziram-se relatórios sobre sete Estados: Goiás, Ceará, Pará, Maranhão, Bahia, Pernambuco e Tocantins.
Na segunda fase, foram coletadas as informações referentes a
mais quatro Estados: Rio Grande
do Norte, Minas Gerais, Paraná e
Mato Grosso. Produziram-se novos relatórios apenas sobre os
dois primeiros. Os dados dos dois
últimos permanecem encaixotados, pendentes de dissecação. Estão numa sala do 19º andar da sede do Incra em Brasília.
De resto, a interrupção dos trabalhos acabou impedindo que
fossem angariadas as informações dos seis Estados restantes:
São Paulo, Rio Grande do Sul,
Santa Catarina, Mato Grosso do
Sul, Paraíba e Piauí.
A reportagem da Folha havia
obtido, há dois meses, o relatório
referente ao Rio Grande do Norte.
Imaginando tratar-se de documento único, publicou o seu conteúdo na edição de 8 de novembro do ano passado.
Informou-se que, naquele Estado, por força de decisão judicial, o
Incra indenizou até as matas das
fazendas desapropriadas. Convertida em mourões de cerca, a
madeira daria para cercar quatro
vezes todo o litoral brasileiro.
Debate sepultado
Alertada para a existência dos
outros relatórios, a reportagem
saiu a campo e obteve cópias de
todos eles.
Num texto de dezembro de
1999, em que o grupo de estudo
resume os achados da primeira
fase, aponta-se para "uma necessária correção de rumos, no que
se refere aos procedimentos e métodos de avaliação administrativa
e judicial (...)".
"Todos esses fatores", prossegue o documento, "certamente
influenciarão nas decisões judiciais, que poderão ser mais ou
menos onerosas para a União, dependendo do grau em que forem
adotadas as sugestões e recomendações aqui apontadas, acrescidas
de outras, porventura surgidas da
discussão que, se espera, ocorrerá
no seio da sociedade".
As "sugestões e recomendações" não foram adotadas. A ansiada "discussão no seio da sociedade" simplesmente não ocorreu.
Há indícios de que o sobrepreço
na desapropriação de terras continua ocorrendo.
Em petição datada de 10 de dezembro de 2003, já sob o governo
Lula, o procurador da República
Marcelo Mesquita Monte, de Pernambuco, requisita a reavaliação
de terras desapropriadas pelo governo naquele Estado.
Mesquita Monte afirma que o
Incra, "comprador único" de fazendas, num mercado desaquecido, "paga por essas desvalorizadas terras valores superiores aos
devidos, visto que as avalia por
metodologia totalmente inadequada". Diz ainda: "Vale salientar
que tais constatações não são recentes, visto que o próprio Incra
delas tem ciência há pelo menos
quatro anos (...)".
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