São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005

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QUESTÃO AGRÁRIA

Estudo mostra indícios de que o método das avaliações do governo superfatura fazendas expropriadas

Governo paga sobrepreço por indenização

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Estudo do Ministério do Desenvolvimento Agrário revela: o método de cálculo da indenização que o governo paga aos proprietários de terras desapropriadas para a reforma agrária é "impreciso", "inconsistente", "ineficiente", "tendencioso" e, por todas essas razões, "insustentável".
O mecanismo "puxa para cima" os valores das indenizações de fazendas expropriadas, lesando o erário em milhões de reais.
O trabalho foi feito com base na análise de 1.127 processos de desapropriação rural. Envolvem 3,9 milhões de hectares, distribuídos por 11 Estados. São terras expropriadas entre 1993 e 2000. Custaram ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) R$ 1,5 bilhão, em valores atualizados até 2000.
Colecionaram-se indícios de que as avaliações do governo superfaturam o preço das fazendas. Porém as contas e respectivas projeções não puderam ser fechadas. O grupo que realizava o estudo foi dissolvido em 2001, ainda sob o governo FHC. O trabalho ficou pela metade.
Ouvidos, ex-integrantes do extinto grupo de estudo estimam que o sobrepreço médio pago pelo Incra ao longo dos últimos anos tenha oscilado nas faixa de 30% a 40%. A se confirmarem esses percentuais, só nos 1.127 processos analisados, podem ter sido malversados entre R$ 450 milhões e R$ 600 milhões.
O estudo demonstra também que, na maior parte dos Estados, os cálculos do Incra são tonificados por perícias feitas a pedido de juízes federais.
Na fase de tramitação judicial, foram detectadas oscilações para o alto de 55,74%, no Estado do Pará, a 319,4%, no Maranhão. Incidem sobre cifras já infladas. Ou seja, nesse caso, superfatura-se a superavaliação.

Rossetto avisado
O governo sabe, desde a administração FHC, que os laudos de avaliação de terras contêm "valores acima dos preços de mercado". O então ministro Raul Jungmann chegou a divulgar uma publicação intitulada "Livro Branco das Superindenizações".
A despeito disso, em vez de aprofundar o estudo que corroborou as suspeitas, o tucanato o interrompeu. Quanto à metodologia de cálculo das indenizações, embora tachada de "insustentável", lesiva ao interesse público, foi mantida.
Promoveram-se apenas ajustes pontuais. Que, na opinião dos membros do grupo disperso, não lograram conter o sobrepreço.
Ao tomar posse, em janeiro de 2003, o governo Lula foi informado a respeito do estudo que esquadrinha o dano que vem sendo infligido aos cofres públicos.
Embora sobrestado, o estudo resultou num calhamaço de mais de 600 páginas. Os autores remeteram cópias dos documentos para os novos gestores do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
O ministro Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário) também recebeu uma síntese do trabalho. Chama-se "Desapropriação Agrária pelo Rito Sumário: Justa Indenização". As informações foram para a gaveta.
Sob o petismo, a metodologia "insustentável" permaneceu intocada. É usada até hoje. Não por falta de opções. Obtido pela Folha, o estudo oficial propõe alternativas. Uma das fórmulas mencionadas foi desenvolvida pela Universidade Católica de Pelotas.

Preços de mercado
A sistemática gaúcha já foi aplicada em reavaliações esporádicas, realizadas a pedido do Ministério Público. Vem se revelando mais vantajosa para o erário. Mas o Incra esquivou-se de adotá-la formalmente.
O corpo de engenheiros agrônomos da autarquia resiste à adoção do novo método. Argumenta-se que, por recente, ainda não restou demonstrada a sua "viabilidade científica".
A pesquisa que serviu de base às conclusões do estudo foi iniciada em abril de 1998. O trabalho chegou a mobilizar 26 funcionários do Incra, entre agrônomos e procuradores. O objetivo era avaliar a eficácia da legislação agrária baixada em 1993 e atualizada nos anos subseqüentes, culminando com a edição da medida provisória 1.577, em 1997.
Todo esse conjunto de novas leis regulou o processo de aquisição de terras pelo Incra. Instituiu-se o chamado "rito sumário" de desapropriação. Vincularam-se as indenizações, ao menos no papel, aos preços que vêm sendo praticados pelo mercado.
Debruçados sobre processos de expropriação iniciados a partir de 1993, os técnicos produziram o mais minucioso levantamento sobre o tema de que se tem notícia. Não fosse pela interrupção, em vez de 1.127, teriam perscrutado mais de 2.500 laudos de avaliação.
Ouvido, Raul Jungmann, hoje deputado federal pelo PPS de Pernambuco, disse: "Pelo que me lembro, a pesquisa estava demorando demais. Não terminava nunca. Mas creio que muitas das sugestões que o grupo fez foram aproveitadas". A nova direção petista do Incra confirma. Os autores do estudo negam.

Dados encaixotados
De acordo com o planejamento inicial, a pesquisa alcançaria 17 Estados. À altura da interrupção, só haviam sido coletados os dados relativos a 11 deles. Parte dos números nem pôde ser convertida em relatórios analíticos.
A pesquisa foi dividida em duas fases. Apenas os dados relativos à primeira fase, concluída em 1999, foram convenientemente analisados. Produziram-se relatórios sobre sete Estados: Goiás, Ceará, Pará, Maranhão, Bahia, Pernambuco e Tocantins.
Na segunda fase, foram coletadas as informações referentes a mais quatro Estados: Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso. Produziram-se novos relatórios apenas sobre os dois primeiros. Os dados dos dois últimos permanecem encaixotados, pendentes de dissecação. Estão numa sala do 19º andar da sede do Incra em Brasília.
De resto, a interrupção dos trabalhos acabou impedindo que fossem angariadas as informações dos seis Estados restantes: São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Paraíba e Piauí.
A reportagem da Folha havia obtido, há dois meses, o relatório referente ao Rio Grande do Norte. Imaginando tratar-se de documento único, publicou o seu conteúdo na edição de 8 de novembro do ano passado.
Informou-se que, naquele Estado, por força de decisão judicial, o Incra indenizou até as matas das fazendas desapropriadas. Convertida em mourões de cerca, a madeira daria para cercar quatro vezes todo o litoral brasileiro.

Debate sepultado
Alertada para a existência dos outros relatórios, a reportagem saiu a campo e obteve cópias de todos eles.
Num texto de dezembro de 1999, em que o grupo de estudo resume os achados da primeira fase, aponta-se para "uma necessária correção de rumos, no que se refere aos procedimentos e métodos de avaliação administrativa e judicial (...)".
"Todos esses fatores", prossegue o documento, "certamente influenciarão nas decisões judiciais, que poderão ser mais ou menos onerosas para a União, dependendo do grau em que forem adotadas as sugestões e recomendações aqui apontadas, acrescidas de outras, porventura surgidas da discussão que, se espera, ocorrerá no seio da sociedade".
As "sugestões e recomendações" não foram adotadas. A ansiada "discussão no seio da sociedade" simplesmente não ocorreu. Há indícios de que o sobrepreço na desapropriação de terras continua ocorrendo.
Em petição datada de 10 de dezembro de 2003, já sob o governo Lula, o procurador da República Marcelo Mesquita Monte, de Pernambuco, requisita a reavaliação de terras desapropriadas pelo governo naquele Estado.
Mesquita Monte afirma que o Incra, "comprador único" de fazendas, num mercado desaquecido, "paga por essas desvalorizadas terras valores superiores aos devidos, visto que as avalia por metodologia totalmente inadequada". Diz ainda: "Vale salientar que tais constatações não são recentes, visto que o próprio Incra delas tem ciência há pelo menos quatro anos (...)".


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