São Paulo, Segunda-feira, 10 de Janeiro de 2000


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ENTREVISTA DA 2ª

Enchentes no Sudeste não foram surpresa, diz geógrafa

FERNANDA DA ESCÓSSIA
da Sucursal do Rio

Para a a geógrafa Antonia Martins Ferreira, a enchente que abalou o vale do rio Paraíba do Sul na semana passada não foi catástrofe natural e nem sequer uma surpresa: poderia ser lida nas entrelinhas dos mapas da região, ameaçada pela erosão, o assoreamento de rios, o desmatamento e a ocupação irregular.
Até ontem, as enchentes haviam matado 41 pessoas e deixado quase 100 mil desabrigadas nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
Antonia, 49, é especializada em gestão territorial (o planejamento integrado para uso do espaço) e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Passou os últimos 15 meses estudando sete municípios fluminenses na região do Paraíba, muitos deles alagados com a subida do rio. A seguir, trechos da entrevista.

Folha - O que causou as enchentes no Vale do Paraíba?
Antonia Martins Ferreira -
Uma coisa, claro, é a intensidade de chuva no início do ano, já prevista nesta época. Mas por que essas enchentes se tornam catástrofes, erroneamente chamadas de catástrofes naturais? A enchente não é uma catástrofe natural, é uma catástrofe social. Houve uma enchente porque eu fiz alterações no entorno do rio. Criei desequilíbrios. Com isso, a chuva se transforma em catástrofe.

Folha - Qual a situação das áreas estudadas pela senhora?
Antonia -
O grande problema é a erosão generalizada, no alto do morro, nas margens dos rios, nas áreas urbanas. São zonas suscetíveis a desabamentos e quedas de barreiras. No total, cerca de 20% dos terrenos estão sujeitos à erosão. Isso é o que é mapeável, porque há coisas que não vemos. Outro problema é o lixo que entope os canais menores.

Folha - O desmatamento está relacionado ao problema?

Folha - Sim, sim. Não há vegetação para sustentar o solo, então a água passa e leva tudo. Na área estudada, só há 0,51% de cobertura vegetal original. Cerca de 60% do solo estão expostos, são áreas de pastos.
Folha -
A colonização do rio contribuiu para o problema?
Antonia - Sim. A gente tem tendência a jogar a culpa nos outros, mas as nossas premissas de ocupação primaram por uma visão de curto prazo. À medida em que a gente se urbaniza, a relação da natureza com a sociedade é muito distante. Você só sente a natureza na cidade quando há enchente. Aí você reclama. Hoje, metade das áreas urbanas da região estudada tem ocupação desordenada.

Folha - Os problemas dos municípios fluminenses acontecem em Minas e São Paulo?
Antonia -
Isso é geral para o Vale do Paraíba, a não ser para áreas de ocupação mais restrita, onde ainda há cobertura vegetal. No eixo do Paraíba, por onde tiver passado e se fixado a política da agropecuária, com formação de pasto, onde isso tiver sobrevivido até a década de 70, vai haver situações desse tipo. Em São Paulo está sendo estudado um programa para recuperação da mata ciliar.

Folha - Não é muito utópico querer recuperar o rio e a mata?

Folha - A questão é o que significa recuperação. Não vou recuperar aquele rio de 1500. A questão é trazer o rio e a mata para as condições mínimas de hoje. Tenho de pensar numa cobertura vegetal que proteja o solo e tenha utilização econômica. Temos que mostrar ao homem que, com a árvore em pé, ele vai ganhar mais dinheiro. Uma cidade como Teresópolis, por exemplo, vende o que nos seus condomínios? O verde. O verde está passando a ser um capital.

Folha - Há soluções?
Antonia -
Há soluções de curto prazo para problemas já configurados: uma barragem aqui, um muro de contenção ali. Para evitar que os problemas aconteçam, não adianta só fazer obras. É preciso ter um planejamento urbano e é preciso educar.

Folha - Houve prevenção à enchente nas cidades estudadas?
Antonia -
Até houve, mas muito pontual. Alguns municípios cadastraram as áreas vulneráveis e tentaram retirar as pessoas para locais mais protegidos. Mas isso é difícil. Só no momento da catástrofe é que a prefeitura dispõe de dinheiro para fazer alguma coisa.

Folha - De que esfera de governo é a responsabilidade pela prevenção à enchente?
Antonia -
Do ponto de vista de obter financiamento, caberia ao governo estadual e ao federal. Mas isso tem de estar dentro de uma gestão participativa, para que esse dinheiro não chegue às prefeituras e não seja desviado para uma questão eleitoral. Se você não revalorizar o município, não adianta um plano estratégico.

Folha - Diante desse estudo que a senhora fez, a enchente não foi uma surpresa?
Antonia -
Nenhuma surpresa. Muitos pesquisadores ficam até esperando para poder validar o modelo. Você faz o mapeamento e diz, com a previsão de chuva, que vai cair aqui e aqui. Isso é triste. Mas não é surpresa.

Folha - A Lei das Águas prevê uma cobrança pelo uso da água para bancar investimentos nas bacias. Qual a sua opinião?
Antonia -
Acho correto. Há pessoas por aí que vão chiar, dizer que a água é dádiva da natureza.

Folha - O que a senhora diria para alguém que já paga impostos e conta de água? Ele vai ter de pagar mais pela água?
Antonia -
Aí ficaria sem saber o que dizer. (Pensa) Eu diria que, se ele gastar menos água, vai pagar menos. Diria que exija do síndico, do governo, que os encanamentos e o sistema de saneamento estejam corretos. A água não é dada. Fazemos parte de um planeta e somos responsáveis pela manutenção e pelo esgotamento de qualquer recurso natural.

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