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São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

Segundo Rubem César Fernandes, ação do Exército não é suficiente para conter o crime

Para antropólogo, só pacto salva o Rio

DA REPORTAGEM LOCAL

Apenas um pacto entre os diversos segmentos da sociedade, e não a presença do Exército nas ruas, pode ajudar o Rio de Janeiro contra a onda insegurança desencadeada pelo crime organizado, afirma o antropólogo Rubem César Fernandes, 59, diretor-executivo do Viva Rio, uma ONG criada no início dos anos 90 para tentar diminuir a violência no Estado.
Para entender a posição dele é preciso voltar no tempo. Com a migração de facções criminosas, como o Comando Vermelho, do roubo para o tráfico, somada à aproximação delas do Cartel de Cali, a cidade viu a taxa de homicídios crescer de 26 casos por 100 mil habitantes, em 82, para 78 crimes por 100 mil em 94. "É uma taxa colombiana", diz ele.
Em meados de 94, porém, começam ocorrer uma série de eventos que, primeiro, freiam essa curva e depois a invertem. Entre os acontecimentos, afirma ele, está a criação do Viva Rio, durante a mobilização que se viu após os massacres da Candelária e de Vigário Geral e dos arrastões nas praias, o que aumentou a cobrança da sociedade sobre as instituições policiais e provocou a criação de projetos sociais pelos governos municipal e estadual.
Leia a seguir a entrevista que ele deu à Folha por telefone.

Folha - É coincidência ou o período de aumento da violência no Rio bate com a criação do Comando Vermelho?
Rubem César Fernandes -
Coincide com a entrada do tráfico de drogas, com essa forma de ocupação de territórios nas favelas, com o modo de distribuição em larga escala. Mudou completamente o padrão da violência na cidade.

Folha - Como se deu isso?
Fernandes -
Até os anos 70, você tem uma relação mais amistosa de troca entre as favelas e o asfalto. A cultura é uma cultura de muita troca, apesar das desigualdades. No meu tempo de rapaz, ir para uma escola de samba na favela era o que tinha de mais "in". O padrão que prevaleceu depois disso é muito anárquico. São grupos locais muito autônomos, com lideranças locais muito jovens. Há um troca-troca muito grande de comando, o que aumenta a violência na disputa pelo poder. Esse padrão formou uma coisa diferente dos cartéis e das máfias.

Folha - Em uma entrevista à Folha, em 94, o senhor disse que evitava a expressão "crime organizado" porque o crime no Rio não era tão organizado assim. Continua com a mesma opinião?
Fernandes -
No plano das lideranças, você teve uma evolução no sentido de se buscar um comando mais forte e sistemático, com uma visão mais politizada. Não é que seja ideológica. Houve uma evolução das lideranças.

Folha - Mas essa expressão pode ser usada agora?
Fernandes -
Ela cabe mais por conta dessas lideranças. Agora, não estamos falando nem de um cartel nem de uma máfia.

Folha - O resultado não é o mesmo, seja cartel, máfia ou qualquer outra organização?
Fernandes -
Não. Em uma família, como na máfia italiana, você tem toda uma hierarquia, respeito, proteção, um código de honra.

Folha - Não há violência?
Fernandes -
Tudo é violento. Esse modelo mais anárquico [o do Rio" é mais violento. Quando você tem a família da máfia, seus membros são contra a violência interna. Enquanto que, nas facções, não existe isso. Há um troca-troca enorme. Localmente, você tem duas comunidades vizinhas, dois chefes da mesma facção que estão brigando o tempo inteiro. É uma identidade muito frouxa internamente, com muita mudança de liderança. Sempre há uma rearrumação de lealdade e poderes, o que aumenta a violência.

Folha - O que levou ao surgimento dessa nova geração?
Fernandes -
O fato de as prisões não serem minimamente adequadas -elas são ou infernais, amontoados de gente nas piores condições, ou dominadas pelos presos. Diante da insegurança, os guardas acabam sendo facilmente corrompidos. Corrupção e insegurança são os dois lados da mesma moeda, tanto nas ruas quanto nas prisões. O fato de as prisões terem acabado sobre o domínio real e efetivo dos presos, sobretudo as grandes prisões, levou à evolução dessas lideranças.

Folha - O perfil é de alguém mais preocupado com dinheiro?
Fernandes -
Além do interesse pelo negócio, aumenta a questão do poder. A grande questão para quem está na prisão é que você não tem poder nem liberdade. As manifestações que tivemos no último ano foram expressões dessa evolução. Foram ações, no Rio de Janeiro, sem precedentes. Do tipo, agir sobre a cidade inteira. Fechar o comércio também dos bairros de classe média, não só das favelas -o que acontece com frequência. Foi uma ação, claramente, com sentido político.

Folha - Há quem fale em ""ideologização" das facções criminosas por conta de cartas e manifestos. O que senhor concorda?
Fernandes -
Começamos a ter sinais disso. Essa "ideologização" tem um elemento, que acho importante, que é o fato dos contatos com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), a experiência colombiana do Fernandinho Beira-Mar [que viveu lá] contribuiu para essa evolução. Também há relação com o tipo de contato entre Estado e comunidades pobres. Embora tenha havido muito investimento nessas últimas duas décadas, em termos de infra-estrutura, o fato é que a segurança, que é condição primeira para a vida em comum, só piorou.

Folha - O senhor vê risco para a segurança do país?
Fernandes -
Não há sentido ideológico como vimos em outros países da América Latina, como Colômbia e Peru, de que tenham qualquer perspectiva de tomar o poder, virar partido político, de se organizar com uma mensagem política para a sociedade como um todo. É meramente confronto com o Estado. É pouco provável que evoluam para isso.

Folha - Os pedidos de Exército nas ruas do Rio se tornaram frequentes em períodos de crise no Rio...
Fernandes -
Quando a insegurança bate, a reação primeira é aquela busca da solução mágica. Chame o Exército. Agora, francamente, tem um grupo desses rapazes que ficaram perto da minha casa. É a garotada que está servindo o Exército, com 18 anos. Para entrar na polícia tem de ter 21. São moradores, em geral, de bairros pobres. Vai ficar ruim de eles voltarem para casa. Usam armas, fuzis longos, inadequados para um confronto mais próximo, sem treinamento nenhum desse tipo. O Exército funciona para a guerra, não para o trabalho miudinho.

Folha - O senhor é contra o Exército nas ruas, agindo como polícia?
Fernandes -
Por efeito de fantasia, para criar uma sensação de segurança, funcionou no Carnaval. Foi uma medida que deu aquele choque de impressão, mas acho que tem de sair rapidinho, porque daqui a pouco começa a se desgastar. Daqui a pouco começa a desmoralizar o Exército também.

Folha - Qual seria a saída?
Fernandes -
Estou falando a linguagem do momento, que é a linguagem do pacto. O famoso pacto que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou durante a campanha. Um pacto é vital para que a questão da violência seja superada. Sem um pacto efetivo, em que entre sociedade civil, mundo empresarial, prefeituras, governo do Estado, governo federal, tudo é muito complicado. Diante de uma questão tão grave, que afeta tudo, até a economia, até o Carnaval, de fato, está na hora de um pacto que seja para valer, que não seja uma resposta a uma situação de emergência. Na prática, tem de ter um pacto de agendas bem concretas, o que não é difícil de elaborar. O difícil é fazer.

Folha - Como isso seria feito?
Fernandes -
Para a agenda de trabalho ser cumprida, você precisa de instrumentos. E os instrumentos não funcionam. Precisamos de reformas gerenciais, menos políticas, nas instituições responsáveis. Estou falando das polícias, do sistema de Justiça, do sistema penal. O mundo empresarial foi revolucionado nos últimos 20 anos a partir da informática, mas o sistema de segurança permanece organizado segundo leis de tempos pré-informatização.

Folha - Qual seria o modelo?
Fernandes -
Quem sabe disso bem é a saúde. A Aids é um problema mundial, não temos solução de cura. No entanto, você tem uma mobilização mundial contra um problema que surge nas relações íntimas, entre duas pessoas, ou lá no pico [uso de drogas]. Soubemos lidar razoavelmente no sentido de pelo menos limitar a doença em algumas regiões do mundo com medidas de epidemiologia, que é controlar o vetor. Você usa camisinha, não usa seringa duas vezes. A criminalidade é o mesmo processo. Querer dar um tiro e resolver é besteira. Você precisa da participação das pessoas em todos os cantos e de uma estratégia. A segurança precisa aprender mais com a saúde.

Folha - E cada segmento teria uma função predefinida, inclusive as Forças Armadas?
Fernandes -
Com as Forças Armadas, todos vivem repetindo e até hoje não temos nenhuma evolução. É a questão do controle das fronteiras. Armas brasileiras são exportadas para o Paraguai e voltam ilegalmente. Soja, café, carro roubado, carga, é uma loucura o que se passa por ali. O problema da fronteira do Mercosul deveria ser prioridade máxima. O Brasil tem autoridade e capacidade de negociar, por exemplo, fechar aquelas lojinhas que ficam do outro lado da rua da fronteira [Paraguai" vendendo todo o tipo de material ilegal no Brasil.

Folha - E as outras Forças?
Fernandes -
Em 99, se não me engano, uma investigação identificou 26 pistas clandestinas no Rio, servindo a propósitos clandestinos. A polícia organizou uma operação para detoná-las. Mas aí passava pelas autoridades da Aeronáutica e nessa relação da polícia com eles, a coisa foi se amarrando, mudou o chefe de polícia, o investigador, o responsável, e as 26 continuam. Só uma ação forte da Aeronáutica em cima da aviação clandestina, já seria um apoio fantástico. A mesma coisa com a Marinha. A baía de Guanabara tem ilhas sob controle do tráfico, transformadas em pontos de observação dos barcos, porque eles temem invasões marinhas de seus adversários. É uma tremenda agenda de trabalho. Botar o Exército nas ruas é desvirtuar sua função, que é muito importante, nobre, mas não é essa [policiar].


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