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ENTREVISTA DA 2ª
Segundo Rubem César Fernandes, ação do Exército não é suficiente para conter o crime
Para antropólogo, só pacto salva o Rio
DA REPORTAGEM LOCAL
Apenas um pacto entre os diversos segmentos da sociedade, e
não a presença do Exército nas
ruas, pode ajudar o Rio de Janeiro
contra a onda insegurança desencadeada pelo crime organizado,
afirma o antropólogo Rubem César Fernandes, 59, diretor-executivo do Viva Rio, uma ONG criada
no início dos anos 90 para tentar
diminuir a violência no Estado.
Para entender a posição dele é
preciso voltar no tempo. Com a
migração de facções criminosas,
como o Comando Vermelho, do
roubo para o tráfico, somada à
aproximação delas do Cartel de
Cali, a cidade viu a taxa de homicídios crescer de 26 casos por 100
mil habitantes, em 82, para 78 crimes por 100 mil em 94. "É uma taxa colombiana", diz ele.
Em meados de 94, porém, começam ocorrer uma série de
eventos que, primeiro, freiam essa curva e depois a invertem. Entre os acontecimentos, afirma ele,
está a criação do Viva Rio, durante a mobilização que se viu após
os massacres da Candelária e de
Vigário Geral e dos arrastões nas
praias, o que aumentou a cobrança da sociedade sobre as instituições policiais e provocou a criação de projetos sociais pelos governos municipal e estadual.
Leia a seguir a entrevista que ele
deu à Folha por telefone.
Folha - É coincidência ou o período de aumento da violência no Rio
bate com a criação do Comando
Vermelho?
Rubem César Fernandes - Coincide com a entrada do tráfico de
drogas, com essa forma de ocupação de territórios nas favelas, com
o modo de distribuição em larga
escala. Mudou completamente o
padrão da violência na cidade.
Folha - Como se deu isso?
Fernandes - Até os anos 70, você
tem uma relação mais amistosa
de troca entre as favelas e o asfalto. A cultura é uma cultura de
muita troca, apesar das desigualdades. No meu tempo de rapaz, ir
para uma escola de samba na favela era o que tinha de mais "in".
O padrão que prevaleceu depois
disso é muito anárquico. São grupos locais muito autônomos, com
lideranças locais muito jovens. Há
um troca-troca muito grande de
comando, o que aumenta a violência na disputa pelo poder. Esse
padrão formou uma coisa diferente dos cartéis e das máfias.
Folha - Em uma entrevista à Folha, em 94, o senhor disse que evitava a expressão "crime organizado" porque o crime no Rio não era
tão organizado assim. Continua
com a mesma opinião?
Fernandes - No plano das lideranças, você teve uma evolução
no sentido de se buscar um comando mais forte e sistemático,
com uma visão mais politizada.
Não é que seja ideológica. Houve
uma evolução das lideranças.
Folha - Mas essa expressão pode
ser usada agora?
Fernandes - Ela cabe mais por
conta dessas lideranças. Agora,
não estamos falando nem de um
cartel nem de uma máfia.
Folha - O resultado não é o mesmo, seja cartel, máfia ou qualquer
outra organização?
Fernandes - Não. Em uma família, como na máfia italiana, você
tem toda uma hierarquia, respeito, proteção, um código de honra.
Folha - Não há violência?
Fernandes - Tudo é violento. Esse modelo mais anárquico [o do
Rio" é mais violento. Quando você tem a família da máfia, seus
membros são contra a violência
interna. Enquanto que, nas facções, não existe isso. Há um troca-troca enorme. Localmente, você
tem duas comunidades vizinhas,
dois chefes da mesma facção que
estão brigando o tempo inteiro. É
uma identidade muito frouxa internamente, com muita mudança
de liderança. Sempre há uma
rearrumação de lealdade e poderes, o que aumenta a violência.
Folha - O que levou ao surgimento dessa nova geração?
Fernandes - O fato de as prisões
não serem minimamente adequadas -elas são ou infernais,
amontoados de gente nas piores
condições, ou dominadas pelos
presos. Diante da insegurança, os
guardas acabam sendo facilmente
corrompidos. Corrupção e insegurança são os dois lados da mesma moeda, tanto nas ruas quanto
nas prisões. O fato de as prisões
terem acabado sobre o domínio
real e efetivo dos presos, sobretudo as grandes prisões, levou à
evolução dessas lideranças.
Folha - O perfil é de alguém mais
preocupado com dinheiro?
Fernandes - Além do interesse
pelo negócio, aumenta a questão
do poder. A grande questão para
quem está na prisão é que você
não tem poder nem liberdade. As
manifestações que tivemos no último ano foram expressões dessa
evolução. Foram ações, no Rio de
Janeiro, sem precedentes. Do tipo, agir sobre a cidade inteira. Fechar o comércio também dos
bairros de classe média, não só
das favelas -o que acontece com
frequência. Foi uma ação, claramente, com sentido político.
Folha - Há quem fale em ""ideologização" das facções criminosas
por conta de cartas e manifestos. O
que senhor concorda?
Fernandes - Começamos a ter sinais disso. Essa "ideologização"
tem um elemento, que acho importante, que é o fato dos contatos
com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), a experiência colombiana do Fernandinho Beira-Mar [que viveu lá]
contribuiu para essa evolução.
Também há relação com o tipo de
contato entre Estado e comunidades pobres. Embora tenha havido
muito investimento nessas últimas duas décadas, em termos de
infra-estrutura, o fato é que a segurança, que é condição primeira
para a vida em comum, só piorou.
Folha - O senhor vê risco para a
segurança do país?
Fernandes - Não há sentido
ideológico como vimos em outros
países da América Latina, como
Colômbia e Peru, de que tenham
qualquer perspectiva de tomar o
poder, virar partido político, de se
organizar com uma mensagem
política para a sociedade como
um todo. É meramente confronto
com o Estado. É pouco provável
que evoluam para isso.
Folha - Os pedidos de Exército nas
ruas do Rio se tornaram frequentes
em períodos de crise no Rio...
Fernandes - Quando a insegurança bate, a reação primeira é
aquela busca da solução mágica.
Chame o Exército. Agora, francamente, tem um grupo desses rapazes que ficaram perto da minha
casa. É a garotada que está servindo o Exército, com 18 anos. Para
entrar na polícia tem de ter 21. São
moradores, em geral, de bairros
pobres. Vai ficar ruim de eles voltarem para casa. Usam armas, fuzis longos, inadequados para um
confronto mais próximo, sem
treinamento nenhum desse tipo.
O Exército funciona para a guerra, não para o trabalho miudinho.
Folha - O senhor é contra o Exército nas ruas, agindo como polícia?
Fernandes - Por efeito de fantasia, para criar uma sensação de segurança, funcionou no Carnaval.
Foi uma medida que deu aquele
choque de impressão, mas acho
que tem de sair rapidinho, porque
daqui a pouco começa a se desgastar. Daqui a pouco começa a
desmoralizar o Exército também.
Folha - Qual seria a saída?
Fernandes - Estou falando a linguagem do momento, que é a linguagem do pacto. O famoso pacto
que o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva falou durante a campanha. Um pacto é vital para que a
questão da violência seja superada. Sem um pacto efetivo, em que
entre sociedade civil, mundo empresarial, prefeituras, governo do
Estado, governo federal, tudo é
muito complicado. Diante de
uma questão tão grave, que afeta
tudo, até a economia, até o Carnaval, de fato, está na hora de um
pacto que seja para valer, que não
seja uma resposta a uma situação
de emergência. Na prática, tem de
ter um pacto de agendas bem
concretas, o que não é difícil de
elaborar. O difícil é fazer.
Folha - Como isso seria feito?
Fernandes - Para a agenda de
trabalho ser cumprida, você precisa de instrumentos. E os instrumentos não funcionam. Precisamos de reformas gerenciais, menos políticas, nas instituições responsáveis. Estou falando das polícias, do sistema de Justiça, do sistema penal. O mundo empresarial foi revolucionado nos últimos
20 anos a partir da informática,
mas o sistema de segurança permanece organizado segundo leis
de tempos pré-informatização.
Folha - Qual seria o modelo?
Fernandes - Quem sabe disso
bem é a saúde. A Aids é um problema mundial, não temos solução de cura. No entanto, você tem
uma mobilização mundial contra
um problema que surge nas relações íntimas, entre duas pessoas,
ou lá no pico [uso de drogas].
Soubemos lidar razoavelmente
no sentido de pelo menos limitar
a doença em algumas regiões do
mundo com medidas de epidemiologia, que é controlar o vetor.
Você usa camisinha, não usa seringa duas vezes. A criminalidade
é o mesmo processo. Querer dar
um tiro e resolver é besteira. Você
precisa da participação das pessoas em todos os cantos e de uma
estratégia. A segurança precisa
aprender mais com a saúde.
Folha - E cada segmento teria
uma função predefinida, inclusive
as Forças Armadas?
Fernandes -Com as Forças Armadas, todos vivem repetindo e
até hoje não temos nenhuma evolução. É a questão do controle das
fronteiras. Armas brasileiras são
exportadas para o Paraguai e voltam ilegalmente. Soja, café, carro
roubado, carga, é uma loucura o
que se passa por ali. O problema
da fronteira do Mercosul deveria
ser prioridade máxima. O Brasil
tem autoridade e capacidade de
negociar, por exemplo, fechar
aquelas lojinhas que ficam do outro lado da rua da fronteira [Paraguai" vendendo todo o tipo de
material ilegal no Brasil.
Folha - E as outras Forças?
Fernandes - Em 99, se não me engano, uma investigação identificou 26 pistas clandestinas no Rio,
servindo a propósitos clandestinos. A polícia organizou uma
operação para detoná-las. Mas aí
passava pelas autoridades da Aeronáutica e nessa relação da polícia com eles, a coisa foi se amarrando, mudou o chefe de polícia,
o investigador, o responsável, e as
26 continuam. Só uma ação forte
da Aeronáutica em cima da aviação clandestina, já seria um apoio
fantástico. A mesma coisa com a
Marinha. A baía de Guanabara
tem ilhas sob controle do tráfico,
transformadas em pontos de observação dos barcos, porque eles
temem invasões marinhas de seus
adversários. É uma tremenda
agenda de trabalho. Botar o Exército nas ruas é desvirtuar sua função, que é muito importante, nobre, mas não é essa [policiar].
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