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NO PLANALTO
Em uma frase, o que é ser brasileiro sob o iluminismo tucano
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Ser brasileiro é crer que
governar o Brasil é fácil, entregar dois mandatos ao iluminado que pronunciou a tese e descobrir que ele se encontrava em estágio de treva mental, é observar
os PhDs do Planalto e quedar-se
tranquilo, imaginando que têm
os pés no chão, é olhar novamente
para os sábios do palácio e reparar que, além dos sapatos, trazem
as mãos plantadas no carpete, é
fitar um grão-tucano e enxergar
sob a plumagem vistosa uma silhueta de pavão com vocação para coruja, é se atirar nos braços da
USP e ser surpreendido com a revelação de que a "intelligentsia"
nacional, um vexame que esperava para acontecer, também traz
manchas de saliva na gravata, é
lembrar da proclamada superioridade do primeiro escalão e ver
brotar a suspeita de que o país
talvez precise de um grupo de
idiotas para salvá-lo, é enxergar o
nariz empinado do tucanato e
perceber que a empáfia está a um
milímetro do equívoco, é contabilizar todos os ovos quebrados e lamentar que, no escuro, ainda não
tenhamos conseguido apalpar a
omelete, é lembrar das últimas
eleições e constatar que, entre o
príncipe e o torneiro mecânico,
faltou-nos um bom eletricista, é
dar de cara com o absurdo e notar que ele já adquiriu uma fisionomia de doce naturalidade, é
cair de joelhos e rezar para um
Deus que, se existe, deve estar tratando de outras coisas, é voltar os
olhos para Brasília e ser assaltado
pela sensação de que todos são
inocentes ou cúmplices, é imaginar-se em meio à modernidade e
se dar conta de que não há mais
energia para ligar o eletrodoméstico importado de Miami, é lançar um segundo olhar sobre Brasília e ter a alma invadida pela
impressão de que nós é que somos
culpados, é crer na ária da retomada do crescimento econômico
entoada por Pedro Malan e empacar numa pausa de mil compassos, é vislumbrar uma terceira
vez a cidade de Niemeyer e descobrir que um país também pode se
matar, é sonhar com a ficção da
modernidade e receber da realidade o aviso de que o novo Brasil
não nascerá mais porque não pode dar a luz, é penetrar o novo
milênio da era cristã no lusco-fusco, balançando a bundinha no
ritmo das cachorras e das popozudas do funk, é olhar para a
frente e enxergar um futuro pré-Thomas Edson, é sair à cata de
uma utopia e descobrir que ela
tem o inusitado formato de uma
lâmpada acesa, é jogar os búzios e
antever que o verbete de FHC na
enciclopédia será a somatória dos
palavrões pronunciados a cada
nova vela acesa, é acompanhar o
esforço do soberano para achar a
biografia perdida e concluir que
será difícil encontrá-la no escuro,
é afligir-se com as desculpas de
Brasília e constatar que, se a argamassa que erigiu a capital tivesse sido feita à base de autocrítica, teria faltado material, é contar a última do português e notar
que não nos demos conta de que
vivemos, nós próprios, perigosamente à beira do ridículo, é lidar
com a irreprimível vocação do
brasileiro para as anedotas e conformar-se com o fato de que algumas delas ocupam ministérios, a
presidência do Senado e até o Palácio do Planalto, é rir do arrependimento da aristocracia e
apiedar-se de seu esforço para subir os muros e dotar as guaritas
blindadas dos condomínios sombrios de armas mais possantes, é
pensar em FHC e constatar que o
pior cego é o narciso que, tendo
dois olhos, não pode mirar a própria culpa no espelho por falta de
luz, é confiar os destinos da nação
a um (falso) messias agnóstico e
consternar-se ao vê-lo transferir a
custódia de suas culpas para a demoníaca providência divina, é
olhar em volta e concluir que o
governo não é tão mau assim, o
clima é que deixa a desejar, é procurar a esquerda brasileira e
constatar que, ocupada com o escândalo do painel do Senado, ela
transferiu para são Pedro o papel
de vanguarda da oposição, é chorar o escândalo das decisões tomadas e verificar que falta verter
as lágrimas das decisões não tomadas, é olhar para o calendário
e admitir que não dá mais para
fingir que o governo está começando, é recorrer à puída analogia do barco à deriva e achar que
ela ganhou súbita atualidade, é
prestar atenção aos compartimentos próximos à casa de máquinas e descobrir que os ratos já
aproveitam o breu para pular da
embarcação, é enxergar nas pesquisas o futuro caindo no colo de
Ciro Gomes e lamentar que o candidato do ex-partidão já traga
Roberto Jefferson grudado ao cós
de sua calça, é apurar os ouvidos
e perceber que segue alto o tilintar
de verbas e cargos, é espremer os
olhos por entre as seteiras e ver
que, no escurinho de Brasília,
odaliscas e eunucos movem-se
com desenvoltura inaudita, é ouvir o príncipe falar em escalada
fascista e perceber que, no Brasil,
o único extremismo realmente
perigoso é o radicalismo da incompetência, é vislumbrar na
chama de cada vela um quê de
Waterloo e concluir que FHC é
um Napoleão rumo à sua Santa
Helena, é embasbacar-se com a
festejada sofisticação do tucanato
e ser possuído por uma brutal
nostalgia do simples, é recordar os
tempos em que o governo ainda
vestia fraque e constatar que o
striptease mais abjeto é o que resulta na nudez que ninguém pediu para ver, é deparar com o corpo do governo estendido no chão
e negar-lhe a solidariedade de
uma vela, é lembrar da previsão
certeira de que o PIB cresceria
mais de 4% em 2001, refazer as
contas e concluir que, sendo 4% x
inépcia + empulhação - apagão =
ladeira abaixo, as chances de um
ficcionista do governo ser mandado à raiz cúbica de pi dividida pela soma do quadrado dos catetos
aumentaram em 100%.
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