São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001

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NO PLANALTO

Em uma frase, o que é ser brasileiro sob o iluminismo tucano

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ser brasileiro é crer que governar o Brasil é fácil, entregar dois mandatos ao iluminado que pronunciou a tese e descobrir que ele se encontrava em estágio de treva mental, é observar os PhDs do Planalto e quedar-se tranquilo, imaginando que têm os pés no chão, é olhar novamente para os sábios do palácio e reparar que, além dos sapatos, trazem as mãos plantadas no carpete, é fitar um grão-tucano e enxergar sob a plumagem vistosa uma silhueta de pavão com vocação para coruja, é se atirar nos braços da USP e ser surpreendido com a revelação de que a "intelligentsia" nacional, um vexame que esperava para acontecer, também traz manchas de saliva na gravata, é lembrar da proclamada superioridade do primeiro escalão e ver brotar a suspeita de que o país talvez precise de um grupo de idiotas para salvá-lo, é enxergar o nariz empinado do tucanato e perceber que a empáfia está a um milímetro do equívoco, é contabilizar todos os ovos quebrados e lamentar que, no escuro, ainda não tenhamos conseguido apalpar a omelete, é lembrar das últimas eleições e constatar que, entre o príncipe e o torneiro mecânico, faltou-nos um bom eletricista, é dar de cara com o absurdo e notar que ele já adquiriu uma fisionomia de doce naturalidade, é cair de joelhos e rezar para um Deus que, se existe, deve estar tratando de outras coisas, é voltar os olhos para Brasília e ser assaltado pela sensação de que todos são inocentes ou cúmplices, é imaginar-se em meio à modernidade e se dar conta de que não há mais energia para ligar o eletrodoméstico importado de Miami, é lançar um segundo olhar sobre Brasília e ter a alma invadida pela impressão de que nós é que somos culpados, é crer na ária da retomada do crescimento econômico entoada por Pedro Malan e empacar numa pausa de mil compassos, é vislumbrar uma terceira vez a cidade de Niemeyer e descobrir que um país também pode se matar, é sonhar com a ficção da modernidade e receber da realidade o aviso de que o novo Brasil não nascerá mais porque não pode dar a luz, é penetrar o novo milênio da era cristã no lusco-fusco, balançando a bundinha no ritmo das cachorras e das popozudas do funk, é olhar para a frente e enxergar um futuro pré-Thomas Edson, é sair à cata de uma utopia e descobrir que ela tem o inusitado formato de uma lâmpada acesa, é jogar os búzios e antever que o verbete de FHC na enciclopédia será a somatória dos palavrões pronunciados a cada nova vela acesa, é acompanhar o esforço do soberano para achar a biografia perdida e concluir que será difícil encontrá-la no escuro, é afligir-se com as desculpas de Brasília e constatar que, se a argamassa que erigiu a capital tivesse sido feita à base de autocrítica, teria faltado material, é contar a última do português e notar que não nos demos conta de que vivemos, nós próprios, perigosamente à beira do ridículo, é lidar com a irreprimível vocação do brasileiro para as anedotas e conformar-se com o fato de que algumas delas ocupam ministérios, a presidência do Senado e até o Palácio do Planalto, é rir do arrependimento da aristocracia e apiedar-se de seu esforço para subir os muros e dotar as guaritas blindadas dos condomínios sombrios de armas mais possantes, é pensar em FHC e constatar que o pior cego é o narciso que, tendo dois olhos, não pode mirar a própria culpa no espelho por falta de luz, é confiar os destinos da nação a um (falso) messias agnóstico e consternar-se ao vê-lo transferir a custódia de suas culpas para a demoníaca providência divina, é olhar em volta e concluir que o governo não é tão mau assim, o clima é que deixa a desejar, é procurar a esquerda brasileira e constatar que, ocupada com o escândalo do painel do Senado, ela transferiu para são Pedro o papel de vanguarda da oposição, é chorar o escândalo das decisões tomadas e verificar que falta verter as lágrimas das decisões não tomadas, é olhar para o calendário e admitir que não dá mais para fingir que o governo está começando, é recorrer à puída analogia do barco à deriva e achar que ela ganhou súbita atualidade, é prestar atenção aos compartimentos próximos à casa de máquinas e descobrir que os ratos já aproveitam o breu para pular da embarcação, é enxergar nas pesquisas o futuro caindo no colo de Ciro Gomes e lamentar que o candidato do ex-partidão já traga Roberto Jefferson grudado ao cós de sua calça, é apurar os ouvidos e perceber que segue alto o tilintar de verbas e cargos, é espremer os olhos por entre as seteiras e ver que, no escurinho de Brasília, odaliscas e eunucos movem-se com desenvoltura inaudita, é ouvir o príncipe falar em escalada fascista e perceber que, no Brasil, o único extremismo realmente perigoso é o radicalismo da incompetência, é vislumbrar na chama de cada vela um quê de Waterloo e concluir que FHC é um Napoleão rumo à sua Santa Helena, é embasbacar-se com a festejada sofisticação do tucanato e ser possuído por uma brutal nostalgia do simples, é recordar os tempos em que o governo ainda vestia fraque e constatar que o striptease mais abjeto é o que resulta na nudez que ninguém pediu para ver, é deparar com o corpo do governo estendido no chão e negar-lhe a solidariedade de uma vela, é lembrar da previsão certeira de que o PIB cresceria mais de 4% em 2001, refazer as contas e concluir que, sendo 4% x inépcia + empulhação - apagão = ladeira abaixo, as chances de um ficcionista do governo ser mandado à raiz cúbica de pi dividida pela soma do quadrado dos catetos aumentaram em 100%.




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