São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Depressão tomou conta de Cabral

da Redação

Os últimos anos da vida de João Cabral de Melo Neto foram ainda mais cheios de nãos do que aqueles com que o escritor fez sua poesia, mais negativos do que foi sua vida em geral recatada e discreta. O poeta ficou mais cego a partir de 1993. Poderia ter dito, com ironia amarga, que foram anos sem vício, sem seu vício fundamental, esses últimos de sua vida -ler.
"Eu confesso a você que tenho o vício da linguagem, quer dizer, o vício da leitura. Desde que me entendo por gente, não me lembro de mim, desde menino, senão com um livro na mão. Eu tenho a doença de ler, é um vício", declarou certa vez João Cabral.
Nas até numerosas entrevistas que concedeu depois que voltou ao Brasil, em particular depois que sua retina começou a degenerar, João Cabral sempre se queixava de maneira muito deprimida sobre sua impotência e sobre certa falta de sentido de seus dias. Não podia escrever, não podia ler.
De resto, sua poesia, como tanto se disse, era visual, no sentido de formada pelo que o poeta via, pela concretude, pelos substantivos concretos, pelas coisas. Mas o próprio ato de escrever, à mão depois à máquina, lhe fazia falta.
Não conseguia compor por meio do ditado. Precisava ver o papel. Depois de cego, ou quase, não escreveu, ou não tentou mandar para o papel, mais poema algum. "Tenho de encarar a realidade. Estou cego. Não há poesia para mim sem ver". Por volta de 1992, ainda dizia estar esboçando alguns textos, ou algumas "brincadeiras". Quando a cegueira apertou, Cabral desistiu.

Rotina de ler
Ler era parte fundamental de sua rotina, como ele mesmo a descreveu tantas vezes. Acordar mais ou menos entre 8h e 9h, tomar café, ler jornais. Depois do almoço, um repouso, por recomendação médica, e ler seus livros.
Parava de ler no começo da noite. Pelo menos desde que voltara ao Brasil, aposentado em 1987, João Cabral dizia precisar de focos de luz próximos para ler. Mas eles aumentavam o calor, de maneira que o poeta ficava muito irritado de ter de largar os livros depois das 18h.
Por falar em calor, disse algumas vezes não gostar do Rio, onde no entanto passou os anos finais da vida, desde que se aposentou e deixou seu último posto, no Porto, em Portugal. Reclamava da paisagem, que não era a sua, dos planos pernambucanos e recifenses. Vivia na cidade por causa dos filhos, seus e da mulher, a poetisa Marly de Oliveira, por quem tinha grande e, curiosamente, se dizia, derramada paixão.
De resto não gostava mais de sair de casa. Jamais gostou, dizia, a não ser para uma exposição ou para o cinema, especialmente em Londres. Ouvia rádio, mas não música, que sempre detestou, com a relativa exceção do flamenco e do frevo.
Apesar do casamento com Marly de Oliveira, se dizia mais melancólico do que o habitual, sujeito a crises de depressão, como a que o abateu logo depois de sua volta ao país, devido à irritação que a reforma de seu apartamento no Rio lhe causou. Sua saúde estava mais frágil do que o habitual. Pouco antes de se aposentar, passou por duas cirurgias sérias de úlcera, no estômago e duodeno. Sua vida se apagou nesses últimos dez anos como sua visão e a capacidade de linguagem, ler e escrever, seu vício e seu motivo de vida.



Texto Anterior: Leia a última entrevista
Próximo Texto: Aspirina seis vezes ao dia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.