São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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Anderson vê na ênfase atribuída pela imprensa à biografia de Lula o sintoma de uma cultura "sentimental e cínica"

"O paz e amor é um vocabulário de derrota"

Vanderlei Almeida/France Presse
TERRA EM TRANSE Simpatizante do PT festeja vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em São Bernardo, acenando para o presidente eleito no instante em que ele aparecia na janela do seu prédio


Pergunta - Explique melhor.
Anderson -
Pense na relação entre Menem e Cavallo. É claro que a dupla brasileira é muito diferente. Cavallo possui um lado demoníaco, também em sua ousadia e energia, que está inteiramente ausente em Malan, discretamente medíocre. Menem tinha motivos para temer Cavallo como rival potencial. FHC, pelo contrário, talvez preferisse que Malan fosse seu sucessor. Mas o que havia em comum nos dois casos é a dependência do governante num técnico, e isso na área decisiva do governo contemporâneo. Menem, ignorante completo em matéria de economia, permitiu que Cavallo instalasse a loucura que foi a paridade entre peso e dólar.
Fernando Henrique, infinitamente mais bem preparado, mesmo assim continuou sendo sociólogo por formação, e sua própria consciência das disciplinas intelectuais o levou a mostrar deferência a um economista profissional. O Real foi obra de Malan e da equipe dele -e FHC deve tudo a ele. Essa dívida moral fez com que lhe fosse difícil descartar Malan juntamente com Gustavo Franco no momento em que, politicamente, deveria tê-lo feito para proteger seus próprios interesses.
Mas havia um fator adicional: o fato de que Malan, que tinha intimidade com o FMI, representava uma garantia da confiança americana. Enquanto permanecesse no cargo, FHC poderia ter certeza de receber um tratamento excepcional por parte do FMI e do Tesouro americano. Para Fernando Henrique, os Estados Unidos sempre foram o ponto central de referência externa, em todos os sentidos.

Pergunta - Em todos os sentidos? Em termos intelectuais, a cultura de FHC é muito mais européia.
Anderson -
Não, eu diria que ocorreu uma mudança significativa durante os anos de exílio e da abertura. Foram fundações americanas, afinal, que possibilitaram o trabalho científico do Cebrap quando Fernando Henrique voltou ao Brasil, e, quando ele ingressou na arena política, não fez segredo do fato de que achava que o Brasil precisava de algo equivalente ao Partido Democrata americano, que ele enxergava no MDB. Quando ele se tornou presidente, o poder dos EUA no mundo tinha aumentado tremendamente com a vitória americana na Guerra Fria, criando uma hegemonia global de um tipo nunca antes visto. Ideologicamente, FHC já tinha se adaptado a isso bem antes de chegar ao Planalto.
O resultado, se deixarmos de lado os atritos esporádicos em torno de tarifas ou patentes, foi um alinhamento mais ou menos completo com Washington em todas as mais importantes questões internacionais. Durante uma década, o Brasil praticamente não teve política externa própria. É verdade que isso não chegou a ser novidade: o regime militar, que tinha alguma idéia de geopolítica, constitui uma exceção nesse sentido. Mas FHC chegou ao poder prometendo que o Brasil exerceria um papel no mundo que seria proporcional às dimensões de sua economia recém-encontrada. No exterior, porém, tudo o que provavelmente será lembrado disso serão os encontros presunçosos da ""Terceira Via", em Nova York, Florença e Berlim, nas quais Clinton e Blair se reuniram com companheiros e subalternos, suscitando reações de ridículo cada vez maior, mesmo entre a imprensa que os enxergava com bons olhos. O lado de bobagem cômica dessas reuniões, de palavras tolas e fúteis jogadas ao vento, fez mais para desacreditar FHC no exterior do que ele talvez tenha imaginado.

Pergunta - Apesar disso, o sr. não acha que FHC contribuiu para consolidar a democracia no pais?
Anderson -
Mas o que há de tão especial nisso? Os impérios tendem a conferir aos povos que os desfrutaram uma perspectiva nitidamente introvertida, provinciana -destino do qual os brasileiros não foram capazes de escapar, não mais do que o foram os britânicos ou americanos. A preservação da democracia não constitui mérito especial de FHC, pois ela nunca esteve seriamente ameaçada desde que os generais deixaram o poder, e, longe de constituir um feito notável do Brasil, é uma banalidade regional. Todas as outras sociedades latino-americanas que passaram por tiranias militares nos anos 60 e 70 fizeram o mesmo (Argentina, Chile, Uruguai) sob governantes insossos, conservadores ou mesmo corruptos e autocráticos: Aylwin, Frei, Lagos, Sanguinetti, Batlle; mesmo Menem entregou o poder a De La Rua da mesma forma rotineira que FHC o entregará a Lula. Não há nada demais nisso.

Pergunta - Mas a qualidade da democracia brasileira não teria melhorado sob o governo FHC?
Anderson -
Pelo contrário, eu diria que ela decaiu. Quando as pessoas falam do efeito ""civilizador" do governo FHC, estão, na realidade, fazendo referência a sua capacidade de reprimir o potencial conflituoso da democracia brasileira, ao estabelecer os parâmetros de um consenso no qual todas discordância séria é desqualificada de antemão, vista como anacrônica e deslocada. É a versão local do pensamento único. Naturalmente, as trocas de opinião dentro desse curral são feitas com cortesia. Mas, se olharmos para as estruturas institucionais do poder, o que vemos? Antes de tornar-se presidente, FHC falava da necessidade urgente de reforma política para tornar o sistema partidário mais coerente e mais regido por princípios, e isso como condição primeira para melhorar a vida democrática no Brasil. O que foi feito nesse sentido? Nada.
Na prática, ele preferiu manter a promiscuidade amorfa existente, já que ela se coadunava tão bem com suas próprias habilidades de mestre exímio das manobras no Congresso. A suposta ""reforma" que ele instituiu quase à força foi o exato oposto: reeleição presidencial. Politicamente falando, foi o pior ato isolado de sua gestão, aquele que terá os efeitos mais prolongados. Esse ato o situa ao lado de Fujimori e de Menem, assim como de tantos outros governantes de ego inflado, que degradaram tanto as tradições constitucionais quanto as perspectivas democráticas de seus países.

Pergunta - Por que o sr. tem uma opinião tão negativa da reeleição?
Anderson -
A América Latina sempre sofreu os efeitos do presidencialismo excessivamente poderoso -a pior importação feita dos Estados Unidos, mais ainda porque agravada pela ausência de um sistema que refreia a atuação do presidente-, berço do qual nasce todo tipo de demagogia e autocracia. Mas, pelo menos os oligarcas liberais do século 19 e seus sucessores no século 20 tinham o bom senso de manter o limite do mandato único. No Brasil, mesmo a ditadura militar dos anos 60 e 70 não mexeu com essa regra, tendo dado mostras de autodisciplina coletiva suficiente para passar o bastão de um presidente a outro a cada quatro anos. Não havia razões fortes para que FHC fizesse questão de se reeleger, exceto a vaidade. Malan ou Serra poderiam perfeitamente ter levado seu regime adiante em 1998, momento no qual eles teriam sido eleitos sem dificuldade. Ao forçar essa mudança fundamental por razões triviais, Fernando Henrique desferiu um golpe duplo contra a democracia brasileira. Em primeiro lugar, ao reforçar os poderes do Executivo e a personalização da política, no sentido mais deteriorado do termo, que o cerca. Em segundo, pela desonestidade com que ele orquestrou a campanha para seu continuísmo, dizendo à nação, repetidas vezes, que não tinha nada a ver com o desejo espontâneo de autorizar um segundo mandato que teria nascido no Congresso. Mentir de maneira tão aberta e desavergonhada assim é um ato de menosprezo. Mostrou claramente até demais a realidade cínica que se escondia por trás da fachada da democracia brasileira ""aperfeiçoada". Para ter uma visão da decadência política que essa iniciativa desencadeou, basta olhar para os anúncios com que os candidatos à Presidência inundaram o país neste outono.

Pergunta - Como assim?
Anderson -
Se FHC tivesse deixado o poder em 1998, seu desempenho teria parecido muito melhor do que parece em 2002. Ao aferrar-se ao poder, FHC garantiu que será recordado principalmente pela derrocada econômica que provocou. Ele deixará o poder em estilo mexicano -como Lopez Portillo ou Carlos Salinas, capaz apenas, e por pouco, de adiar até depois de estar fora do poder a prestação de contas pelo que fez, mas com poucas chances de poder proteger sua reputação contra o que está por vir. Diferentemente de Portillo ou Salinas, FHC nunca foi corrupto. Mas -e nisso também ele difere dos dois- ele não proporcionou a seu país nem sequer um período breve de boom econômico.

Pergunta - O sr. considera que o governo FHC fracassou?
Anderson -
Não, ainda é cedo para dizer isso. Paradoxalmente, os próprios erros de administração econômica de seu governo podem acabar gerando um êxito político de longo prazo. Pois o legado da dívida que FHC deixou vai colocar um ônus tão debilitante sobre seu sucessor que Cardoso terá boas razões para esperar, como ele diz, que sua política continue depois dele, no novo governo. É claro que essa não é a única restrição que ele legou: a hegemonia ideológica do tipo de neoliberalismo que ele passou a personificar permanece, se não intato, largamente dominante no Brasil de hoje, juntamente com a personalização do poder que ele intensificou. Do mesmo modo que Thatcher pode enxergar Tony Blair como sua realização mais durável, tanto assim que ela o afirma, FHC também poderá congratular-se pelo fato de que ele tornou a ordem neoliberal irreversível no Brasil por um bom tempo ainda por vir.

Pergunta - O sr. acha que Lula pode tornar-se semelhante a Blair?
Anderson -
Já temos muitos exemplos de políticos ou partidos vencendo eleições em plataformas que se opõem frontalmente ao neoliberalismo mas que, uma vez chegados ao poder, passam a implementar políticas neoliberais, com frequência ainda mais drasticamente do que tinham feito aqueles que o denunciavam. Na América Latina, Carlos Andrés Perez foi o primeiro a seguir esse caminho, tendo feito críticas eloquentes à dívida externa e à austeridade em sua campanha, para depois impor ao país um pacote tão selvagem que detonou o ""caracazo" de 1989, numa sociedade que, na época, era substancialmente mais rica do que é o Brasil hoje. No mesmo ano, Fujimori derrotou Mário Vargas Llosa no Peru, denunciando o neoliberalismo deste com uma violência que supera de longe qualquer discurso do PT de hoje, para, em seguida, tornar-se arquiteto de uma versão particularmente corrupta e cruel do neoliberalismo. A trajetória de Menem, na Argentina, foi essencialmente a mesma.

Pergunta - Mas nenhum desses dirigentes se situava à esquerda. Não podem ser comparados a Lula.
Anderson -
Na Europa, já vimos o mesmo ciclo sendo repetido tanto pela esquerda quanto pela direita. A França é o caso mais eloquente em pauta. Chirac chegou ao poder em 1995 denunciando o ""pensamento único" dos anos Mitterrand -foi ele quem virtualmente cunhou o termo. Uma vez eleito, seu governo imediatamente tentou impor reformas neoliberais clássicas, o que desencadeou as grandes greves de 1996 e o fez perder as eleições de 1998, que foram vencidas por Jospin prometendo fazer o contrário. Em quatro anos, Jospin já tinha privatizado mais do que todos os governos anteriores juntos. O Partido Socialista, por sua vez, foi rejeitado nas urnas este ano.

Pergunta - O sr. acha que o PT é como o Partido Socialista francês?
Anderson -
Não. A eleição de Lula para ser o próximo presidente do Brasil marca uma virada política muito mais profunda, e, potencialmente, abre espaço para mais esperança do que qualquer mudança de governante na França. Mas, se quisermos traçar uma estimativa realista das chances de uma descontinuidade real nas políticas econômicas e sociais no Brasil, teremos que pesar cuidadosamente as condições de uma ruptura significativa com o passado. Existem três razões principais para imaginar que o país possa escapar de um ciclo de repetição.
Em primeiro lugar, a própria figura de Lula. Pode haver uma tendência a sobrestimar a importância de suas origens. A cultura brasileira é sentimental, além de cínica, e neste momento a mídia está se fartando de divulgar informações biográficas sobre o presidente eleito. O exemplo de Lech Walesa deveria bastar como aviso contra os excessos nesse departamento. Isto posto, não deixa de ser verdade que Lula personifica uma experiência de vida popular e um registro da luta social e política de baixo para cima inigualado por qualquer outro governante no mundo atual. Além disso, por trás dele está o único partido de massas novo a ter sido criado a partir do movimento sindical desde a Segunda Guerra -um partido que, em termos de números, influência e coesão não tem igual na América Latina. Existe uma distância entre Lula e o PT -Lula recebeu o dobro dos votos dados ao PT- que corre o risco de ser acentuada pela Presidência reforçada. Mas a combinação de Lula e PT ainda é muito forte. Por fim, existe um clima de expectativa popular que nenhum presidente recente desfrutou no início de seu mandato. A esperança de que o país possa deixar para trás a miséria dos últimos anos não vai desaparecer da noite para o dia.

Pergunta - O sr. está otimista quanto ao governo Lula?
Anderson -
Contra esses pontos a favor, precisamos equilibrar as restrições objetivos formadas pela situação na qual o presidente e o partido agora se encontram. Em primeiríssimo lugar, está a paisagem econômica devastada. Já antes de assumir o poder, o PT se comprometeu a respeitar os termos severos ditados pelo FMI, que vão não apenas excluir qualquer aumento significativo nos gastos sociais como, provavelmente, ditar uma contração forte, visando impedir que a confiança dos credores externos e as taxas de juros subam ainda mais. Se é virtualmente tabu dizê-lo no Brasil, fora do país a imprensa financeira não faz segredo quanto ao fato de ter concluído que uma moratória brasileira é inevitável, mais cedo ou mais tarde. O mais provável é que a crise econômica se aprofunde. Ao mesmo tempo, a mobilização social permanece baixa, em níveis muito inferiores aos dos anos 80 -um dos efeitos dos anos FHC, enfraquecendo as energias coletivas sempre necessárias para fazer frente a tais crises. Há também o peso da tradição cultural que se fará sentir sobre os agentes de qualquer renovação. Muito mais ainda do que a Itália, que lançou o conceito para o mundo, o Brasil é por excelência o país do ""transformismo", a capacidade que possui a ordem estabelecida de abraçar e inverter as forças transformadoras, até que fica impossível distingui-las daquilo que se propunham a combater. É o lado sombrio da incomparável cordialidade brasileira. O "paz e amor" é, por antecipação, um vocabulário de ingestão e derrota. Uma causa pode sobreviver a um slogan, mas, sem slogans melhores do que este, as pressões objetivas não vão demorar a esmagar os desejos subjetivos.

Pergunta - Como o sr. avalia os programas do PT?
Perry Anderson -
O PT, como oposição, vem dando mostras de razoável criatividade. Os orçamentos participativos de Porto Alegre são uma invenção largamente admirada em todo o mundo. Os economistas do PT foram os primeiros a chamar atenção para a lógica do neoliberalismo de Malan e a prever suas consequências fatais. De modo geral, porém, nem o PT nem o presidente eleito têm qualquer alternativa pronta para opor à ortodoxia reinante, como deixa clara a imediata adesão deles às diretivas do FMI. Historicamente, é claro, as inovações políticas reais na América Latina não seguiram esquemas preconcebidos. Da grande crise que abalou o continente em 1929 saiu um conjunto de respostas pragmáticas e intuitivas -em essência, diferentes formas de populismo baseado na substituição de importações: o getulismo, o peronismo, o MNR na Bolívia e assim por diante, que, em sua época, foram altamente criativas e eficazes. Em lugar de orientar os atores de antemão, as doutrinas do Cepal foram cristalizadas ""post facto". Hoje a América Latina mais uma vez enfrenta uma crise de proporções continentais. Por que o Brasil não poderiam encontrar uma saída do impasse de maneira similar -com soluções pragmáticas, feitas sob medida para cada caso?
A diferença está no grau incomparavelmente maior de integração das economias, sociedades e culturas latino-americanas com a ordem mundial do capital, comandada pelo Norte. Por esse motivo, os pré-requisitos programáticos para uma fuga da camisa de força atual parecem ser muito maiores. Mas se as economias centrais entrassem numa espiral descendente, então, enquanto o império ficasse cuidando de suas próprias terras original, é provável que aumentassem as chances de a periferia encontrar soluções baseadas na criatividade.


Tradução de Clara Allain


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