São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2000

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NO PLANALTO
A guerra de sempre entre papadores e papados

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Hoje falaremos de gente que não tem celular e nunca foi a Miami. Gente que, sem a sorte do Luiz Estevão para obter bons contratos e sem o talento do Salvatore Cacciola para fazer amigos em Brasília, é obrigada a suar a camisa. Só para manter o nome limpo numa praça suja.
Gente assim, de alma singela, muitas vezes é dada a certas ingenuidades. E a ingenuidade, como se sabe, é a matéria-prima dos espertos. Espertos como Artur Falk, o idealizador do Papatudo, um empreendimento até bem pouco alardeado na maior emissora de TV do país, a Globo, por uma garota-propaganda de peso, a Xuxa.
Vendia-se a ilusão do prêmio fácil, do dinheiro sem esforço. Dava-se ao conto o apelido de título de capitalização. Milhões de brasileiros, desses que frequentam os fundões da sociedade, embarcaram na parola.
Súbito, descobriram-se na incômoda posição de papados. Falk papou-lhe$ tudo, da esperança vã ao dinheiro escasso. O caso não é novo. Mas frequenta pouco o noticiário. Queixa de papado não é coisa que jornal ouça com facilidade.
O assunto voltou às páginas há coisa de uma semana e meia, graças à prisão do papador, obra dos procuradores Artur Gueiros e Raquel Branquinho, do Rio. Como a cana durou poucas horas, o escândalo foi logo devolvido à zona de penumbra. Uma pena.
Perde-se a oportunidade de dissecar um caso exemplar de esbulho à economia popular. Foram abandonadas ao relento 128 mil cartelas de Papatudo. Junto com elas, evaporaram R$ 168 milhões. De resto, deixaram na mão felizardos que, sorteados, tinham direito a R$ 500 mil em dinheiro, 1.200 televisores (coisa de R$ 300 mil) e 125 ambulâncias (R$ 2,5 milhões).
Alguém que se dê ao trabalho de vasculhar o processo, que corre em segredo de Justiça, dará de cara com detalhes inéditos. Manuseando-os, reconstituirá a trilha do vapor, chegando à nuvem que o sorveu.
A coisa funcionou assim: a Interunion Capitalização, controlada por Falk entre 94 e 95, vendia o Papatudo às almas simples. O papel era a única fonte de renda da empresa. Quem o comprasse candidatava-se a ganhar, em sorteios periódicos, prêmios (dinheiro ou bens duráveis). Os que não fossem sorteados receberiam em um ano metade do dinheiro "aplicado".
A grana que deveria lastrear a bolsa de prêmios foi sendo desviada aos poucos. Em seu lugar, eram injetados na contabilidade direitos de qualidade duvidosa -ações micadas e papéis podres, entre eles precatórios de Alagoas. Tudo diante dos olhos da Susep, órgão do governo que deveria ter fiscalizado a farra.
Quando a Susep acordou, a fuzarca estava feita. Os papéis do Papatudo não valiam a tinta que lhes borrava a face. Decretou-se, em 3 de março de 96, algo que em economês se chama de "regime especial de direção fiscal". A Receita começou a reconstituir a trilha do dinheiro.
Descobriu-se, por exemplo, que, em outubro de 94, a Interunion Capitalização "comprou" de Artur Falk, ao preço de R$ 2,8 milhões, 450 mil ações da empresa Tulo Transportes Internacionais Ltda, que tinha Falk como sócio. A Tulo registrava à época patrimônio líquido negativo.
A Interunion comprou também ações da Ponta Funda Participações e Administrações S/ A., empresa que pertencia à Interunion Holding, controlada pelo mesmo Artur Falk. Para justificar o negócio, afirmou-se que a Ponta Funda detinha ações da Varig.
Verificou-se que, na data da operação, as ações da Varig já estavam registradas na CVM (Comissão de Valores Mobiliários) em nome da Interunion Capitalização. Em português claro: a empresa pagou por uma mercadoria que já era sua.
Há mais e pior: no livro de acionistas da Varig, as ações estavam registradas em 31 de agosto de 95 ao preço de R$ 31,5 mil. Na contabilidade da Ponta Funda, "valiam" R$ 3,4 milhões.
Criativos, os gestores da Interunion Capitalização criaram um expediente contábil chamado "adiantamento para futuro aumento de capital". Sob tal rubrica, escoaram milhões do caixa da empresa que buscava o seu sustento no bolso da choldra.
Inspeção feita pela Susep constatou que os "adiantamentos" eram, na verdade, empréstimos disfarçados. Ao final do mês de junho de 95, só a empresa Tulo Transportes Internacionais Ltda. havia recebido da Interunion Capitalização R$ 44,2 milhões. A importância correspondia a "120 vezes a receita semestral" da Tulo.
Abrindo-se a contabilidade da Tulo, verificou-se que a empresa distribuía os seus recursos entre "contas correntes" de firmas do próprio grupo, entre elas uma holding (R$ 32,4 milhões), um banco (R$ 9,4 milhões) e uma empresa de navegação (R$ 673 mil). Todas unidas pela mesma razão social: Interunion.
Há até uma Interunion Cayman (R$ 3,6 milhões). Sem contar a menção ao nome do próprio Falk (R$ 248 mil). Apesar do vistoso movimento financeiro, a Tulo registrava, também em junho de 95, "prejuízos acumulados" de R$ 11,1 milhões.
Como se vê, o caso não fica devendo a outros escândalos que estão na praça. Nada, porém, abala a calma dos envolvidos. Afinal, o nome do papador Artur Falk não frequenta apenas as páginas de processos judiciais. Consta também do caixa-dois reeleitoral de FHC.
Ele aparece nos disquetes atribuídos a Bresser Pereira associado a uma tal Pitinga. Seu elo com o comitê tucano era Mario Petrelli, o "PP" da planilha. Não se sabe se Falk fez doações. Não há valores anotados adiante de seu nome.
O que se deseja realçar é que o simples fato de constar da lista já deixa claro que pertence a um grupo social diferente daquele composto pelas pessoas que lesou. Um grupo que, no Brasil, nem sempre sente o peso da lei.



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