São Paulo, quinta, 10 de dezembro de 1998

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JANIO DE FREITAS
Direitos Desumanos

Um temor bastante justificado, esse que o presidente da Câmara, Michel Temer, manifestou ontem quanto à possibilidade de que o povo, um dia, vá para as ruas pedir o fechamento do Congresso. Por mim, não disponho de explicação segura para o fato de que isso ainda não tenha acontecido. Mas não por causa do noticiário avesso ao Congresso, como supõe o deputado. E, isso sim, porque o povo quer um Congresso, e a maioria dos parlamentares lhe dá um Congresso antipovo.
Nessa contraposição há um componente tão importante quanto, no caso brasileiro, encoberto por pretextos técnicos e propaganda enganosa. É a deformação do sentido de governar e, portanto, dos direitos e deveres que o definem.
Quando se fizer o exame do sentido presente nas reformas e novas leis aprovadas pelo Congresso nos últimos anos, por certo vai sobressair um traço comum: nenhuma foi a favor, ainda que em medida mínima, à grande massa que soma 80% ou mais da população brasileira; e todas amputaram ou extinguiram direitos penosa e demoradamente alcançados pelo povo.
São aprovações parlamentares necessárias à correção das distorções do Estado brasileiro. Isso, no entanto, é uma explicação técnica. Não é uma justificativa, por exemplo, para a evidência de que tais correções do Estado, como propostas ao Congresso e aí aceitas, são distorções terríveis na vida de quase toda a população.
O mecanismo tem sido o mais simplista. Com o apoio irrestrito dos meios de comunicação e da maioria do Congresso, os formuladores das soluções governamentais para os problemas do Estado não precisam fazer mais do que qualquer quitandeiro, em seu lugar, faria: cortam deveres do Estado com a população e tomam mais dinheiro da população. Sangram duas vezes o povo.
No governo, todos se sentem dispensados de criatividade. Não há uma só medida contra as distorções do Estado que tenha trazido alguma inovação, alguma particularidade proveniente do raciocínio aplicado ao conhecimento.
Theodore Zeldin, considerado um dos grandes intelectuais da atualidade, observa que há pessoas "cujo mundo é feito de números". Suponho que o problema, mais do que isso, esteja em não perceber a redução da pessoa a um mundo feito de números. É a desumanização.
Os economistas de governo não têm contribuído mais para a melhoria dos países do que o fizeram seus antecessores não-economistas. A permanência e até crescimento dos problemas sociais prova-o bem, com o aval das crises sucessivas em todo o mundo. O que os economistas levaram ao ato de governar foi reduzi-lo ao seu mundo feito de números. Foi a desumanização progressiva, tanto do governo, como da população vista pela ótica do governo.
Por melhores que aparentem ser suas relações com os números, essas soluções são necessariamente desprovidas de visão humana. São desumanas, pois. Porque reduzir aposentadorias, pensões, vencimentos líquidos e pequenos direitos de quem, em vez de alguma sobra, tem necessidades não é menos do que ato desumano. Cortar gastos com socorro à saúde pública, com educação, com saneamento das zonas de pobreza não é senão desumanidade. Aumentar impostos que vão recair, na última instância, nas despesas forçosas do povo, é outra forma de desumanidade.
Dizer que medidas assim são necessárias não é próprio de gente respeitável. Se não há esforços na busca de soluções humanas, dispensadas pelos apoios que a tudo permitem impor ao povo, não é decente dizer que as medidas desumanas são necessárias. São, apenas, medidas provenientes dos direitos desumanos de que governantes e parlamentares se dotam.
²
Dia especial

A autorização do governo inglês para o processo de extradição de Pinochet veio demarcar, agora sim, o passo inicial de um novo tempo. Muito menos, porém, para os facínoras ditatoriais, sujeitos à vida enclausurada de fugitivos mesmo quando livres, do que para os povos subjugados pelas armas de compatriotas e, em particular, para as vítimas da covardia sanguinária.
Os democratas de todos os quadrantes têm tudo a celebrar nesta ocasião extraordinária em que a desdita de Pinochet se sobrepõe ao cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Esse aniversário não poderia receber homenagem maior.
As atitudes de Espanha e Inglaterra permitem vislumbrar, embora no futuro incalculável, uma sequência de desdobramentos.



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