São Paulo, terça, 11 de fevereiro de 1997.

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PERSONALIDADE
Gênio incompreendido do regime militar, economista-engenheiro trocou de personas ao longo da vida
Simonsen foi a razão contra o ufanismo

GILSON SCHWARTZ
da Equipe de Articulistas

O engenheiro e economista Mário Henrique Simonsen representou o papel da racionalidade e da contenção em um regime militar comprometido com o ufanismo e a expansão econômica.
O regime queria legitimar-se gerando milagres econômicos. Simonsen encarnava a ciência da escassez e do equilíbrio. Um casamento que não podia dar muito certo, apesar da vontade de poder do jovem engenheiro formado também em economia e da admiração que inspirou em homens fortes do regime militar, como Golbery do Couto e Silva.
O projeto político-econômico dos militares teve uma primeira etapa, reformista, em que Geraldo Bulhões e Roberto Campos lançaram novas bases para o financiamento do Estado, armaram um mecanismo de arrocho salarial e lançaram a correção monetária.
Depois, veio o milagre de Delfim Netto, e a Simonsen coube a tarefa desgastante de mostrar que em economia não existem almoços grátis.
Não conseguiu, foi bombardeado pelo pragmático Delfim Netto e acabou retirando-se precocemente da vida pública, que ele mesmo considerou como etapa transitória de sua trajetória profissional.
Mobral
O que hoje talvez poucos lembrem é que o engenheiro-economista que se tornou célebre como tecnocrata foi, antes de virar superministro da economia, presidente do Mobral, um dos pilares do projeto mais amplo de educação de massa do regime militar.


Simonsen foi o criador do BNH e do Sistema Financeiro de Habitação

Mas, antes ainda de servir aos desígnios de cooptação que sempre se denunciou no Mobral, Simonsen colaborou com Roberto Campos numa tarefa mais prosaica: foi o autor da fórmula salarial instituída pelo Paeg, através da qual todos os salários passaram a ser calculados pela média dos dois anos anteriores, à qual eram somados os resíduos inflacionários dos 12 meses seguintes e ganhos de produtividade. A denúncia do arrocho salarial do regime militar viria a ser uma das mais importantes bandeiras da oposição política e sindical.
Simonsen foi também o autor de outra obra-prima do pensamento tecnocrático que, anos depois, desabaria aos primeiros sinais de crise: o Sistema Financeiro de Habitação e o Banco Nacional da Habitação.
Nesse sistema, incluíram-se ainda as cadernetas de poupança que, ainda segundo denúncias de muitos economistas, anos depois, foram também um instrumento de captação de recursos notoriamente desfavorável aos poupadores, muitos de baixa renda.
Já em 1965, Simonsen integrava o Conselho de Administração do BNH. Nesse mesmo ano tornou-se professor da Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) que tinha sido criada pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro.
Em resumo: Simonsen esteve por trás de alguns dos mais importantes instrumentos de fomento do regime militar, como o BNH, o arrocho salarial, a caderneta de poupança.
O Mobral, criado em 1968 e em suas mãos em abril de 1970 depois da posse do general Emilio Garrastazu Médici, parecia coroar uma vocação tecnocrática.
Simonsen tinha então 35 anos, já havia publicado seis livros sobre economia e já era vice-presidente do Banco Bozano, Simonsen de Investimentos.
Simonsen tinha claro seus objetivos no Mobral: "o indivíduo que sabe ler e escrever aumenta automaticamente sua produtividade", declarava.
Embate
Mas Simonsen afinal se tornaria célebre como ministro da Fazenda do general Ernesto Geisel, sucedendo em 1974 a Delfim Netto, que imperava desde 1967. No Ministério do Planejamento, ficou João Paulo dos Reis Velloso.


O embate assumiu as cores de uma disputa entre a Fazenda e o Planejamento

Nascia então, ou renascia, dados os antecedentes de polêmica entre monetaristas e desenvolvimentistas, a oposição entre os que pretendiam ver o Brasil dar saltos, à moda asiática, e os mais cautelosos, que preferiam ater-se à sabedoria da bandeira "ordem e progresso".
O embate assumiu as cores de uma disputa, que seria recorrente nos anos seguintes, entre a Fazenda e o Planejamento. A diferença levaria ainda à tentativa frustrada, já no governo Collor, de juntar tudo num Ministério da Economia.
A segunda metade dos anos 70 seria já uma época de crise internacional, pós-choque do petróleo. Para alguns, era importante dar logo um salto substituindo energia e importações.
Para outros, a crise impedia sonhos maiores, tratava-se sobretudo de conter a economia e viver com os próprios meios. Simonsen queria a recessão e foi assim, em nome da racionalidade econômica, que ele abriu o flanco para o crescimento da oposição que explorava a desilusão da população com o fim do milagre econômico.
1974
O ano de 1974 marca também o início da mobilização da elite industrial paulista contra o regime militar, vocalizado no então ministro da Indústria e Comércio, Severo Gomes.
Gomes estava particularmente preocupado com a entrada de capital estrangeiro num momento de fragilização da economia nacional. O desentendimento com Simonsen foi crescendo.
Até o final dos anos 70, a política econômica oscilaria entre o investimento pesado, financiado com recursos externos, e as tentativas de contenção da aceleração inflacionária. As decisões de investimento público agitavam as hostes empresariais, nem sempre atendidas na dose e segundo as prioridades de agrado geral.
As medidas recessivas e de contenção do crédito esquentavam o caldo de cultura da oposição, para quem o regime militar apenas procurava dar sobrevida ao arrocho salarial, entregava o país aos interesses estrangeiros e era incapaz de organizar a política além de um "stop and go" sem rumo definido. Em 1977, Severo Gomes demitia-se do ministério Geisel e passava a trabalhar com a oposição.


Em 79, ele seria deslocado para o Ministério do Planejamento por Figueiredo

Figueiredo
Em 1979, Simonsen seria deslocado para a pasta do Planejamento pelo novo general-presidente, João Baptista Figueiredo. Novamente, Simonsen iria dedicar-se a organizar a casa, conter o financiamento externo, reduzir a expansão do crédito e bloquear os investimentos públicos.
Mas a onda de investimento na substituição de energia e de importações deslanchada pelo governo Geisel ganhara uma dinâmica econômica e política própria, assim como a dívida contraída no exterior para financiar o salto desenvolvimentista.
Nesse período, foi incessante a multiplicação de medidas tópicas, localizadas, emergenciais e transitórias que pareciam a tentativa de tampar buracos numa barragem prestes a se romper.
Simonsen usou ao máximo a imaginação tecnocrática e acabou celebrizando outra característica de política econômica do regime militar que seria muito explorada pela oposição, que denunciava o "casuísmo" e a incapacidade do governo oferecer respostas direcionadas e estratégicas à crise que se acentuava.
O movimento sindical já estava na rua, e o casuísmo naturalmente envolvia a busca de fórmulas cada vez mais imaginosas de contenção de demandas salariais, em nome do controle da inflação.
Demissão
Em agosto de 1979, Simonsen jogou a toalha, frente a reações cada vez mais fortes às suas propostas de ajuste recessivo. Foi substituído por alguns dias no Planejamento pelo próprio Golbery do Couto e Silva.
Mais até que Delfim Netto, Simonsen celebrizou a figura do tecnocrata -o civil notável seduzido pelo encanto do poder e que acredita no poder da técnica, na suficiência do conhecimento científico como credencial para organizar o mundo, o tipo ideal "engenheiro-economista". O tecnocrata que iria compor, na transição democrática brasileira, uma rede de conflitos tanto com burocratas quanto com democratas.
O burocrata, filhote do nacional-estatismo ufanista-militar, procura legitimar-se ainda em termos de ``bem público'', como se a lógica da dominação emanasse do próprio instrumento ou aparato da dominação.
Os burocratas ou, como também se veio a denominá-los, tecnoburocratas, acabam assim se opondo a um tecnocrata puro como Simonsen, que vê o instrumento de fora e quer usá-lo segundo os ditames do equilíbrio econômico-financeiro, doa a quem doer.


Fora do poder, teve participação decisiva na formação de vários gabinetes

O burocrata é parte do instrumento, está impregnado à máquina e acredita que ela pode pensar e decidir por si mesma. Os democratas, na transição brasileira, recolocaram em cena o tema da origem da legitimidade e dos limites da técnica, recusando o discurso da competência em nome de ideais de pertinência programático-ideológica. O tecnocrata olhou de longe esse debate, sentindo-se fora de tempo e lugar.
Simonsen, uma vez fora do poder, saciado talvez, investiu cada vez mais na recuperação de uma persona até então recalcada. Foi convidado inúmeras vezes a voltar aos ministério, teve participação decisiva na formação de inúmeros gabinetes especialmente depois da transição democrática, tornou-se um polemista agudo e persistente, em oposição à atitude turrona e dura com que personificou o tecnocrata do período militar. Mais de um civil no poder, desde os anos 80, desejou trazer para perto de si aquele que representara sempre o papel da economia científica e indiferente às crises.
Ele entretanto preferiu dedicar-se a construir e expandir uma personalidade cada vez mais alheia ao envolvimento direto com o poder e a política, ao mesmo tempo se dedicando à economia pura e às consultorias na alta finança mundial.
Suas intervenções nos debates de política econômica voltavam-se invariavelmente à insistência nos princípios da ordem, da contenção, do equilíbrio.
Em 1983, dizia que, "se a pobreza é inevitável, que se organize o prejuízo": "a alternativa está entre empobrecer desordenadamente -com mais inflação e mais desemprego- ou empobrecer com um simultâneo ajuste da economia".
Apóstolo da sisudez ideológica, fiel ao conservadorismo na teoria e na prática, Simonsen afinal assumiu numa terceira fase da vida uma persona mais debochada e mundana.
Fez gênero de cantor lírico, passou a dar entrevistas sobre o gênero musical, pregando a interdisciplinaridade e o bem viver, para culminar apoiando o monarquismo no plebiscito de 1993.


Pregou a adoção de um regime monetário do tipo argentino, com dolarização


Como economista, pregou até o fim a adoção pelo Brasil de um regime monetário do tipo argentino, em que ao fim se dolarizasse a economia acabando com a possibilidade de emissão irresponsável de moeda pelo Banco Central.
Cético talvez com a possibilidade de burocratas e democratas encontrarem limites ou critérios para uma ação racional e equilibrada, mas afinal reconhecendo, pragmaticamente, que uma ditadura platônica (com os sábios no poder) talvez fosse uma idéia irrealizável.
Simonsen sonhou com a utopia de disciplinar o país submetendo Estado e povo aos rigores incontornáveis de uma exposição plena à ordem financeira global.

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