São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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JANIO DE FREITAS
A memória desses dias

Tanto faz se a história se repete ou não como farsa, nos termos do controverso e cansado axioma. Grave é a repetição como drama ou tragédia. É disso mesmo que trata a relação entre a assustadora estagnação brasileira e a memória de um episódio, até aqui inédito, provocada pelo risco de nova crise mundial de petróleo.
Era o segundo semestre de 72, tempos de ditadura militar. O ministro Delfim Netto, estrela do êxito econômico chamado de "milagre brasileiro", participava de uma reunião do FMI em Roma. Giscard D'Estaing, futuro primeiro-ministro da França, chamou-o a um canto e avisou-o da aproximação de uma crise muito séria, porque os países produtores de petróleo articulavam-se para praticar uma política comum de valorização das suas exportações.
Informado do aviso por Delfim, Médici convoca uma reunião no Planalto, para conhecimento do problema e discussão das possíveis providências acauteladoras do Brasil, então com produção inexpressiva de petróleo. Presentes, além de Médici, os ministros Delfim Netto, Ernane Galvêas, Dias Leite e Leitão de Abreu (os três primeiros vivos ainda); o chefe do SNI, general Carlos Alberto Fontoura, e o presidente da Petrobras, general Ernesto Geisel.
Exposta a informação de Giscard e feitas as considerações necessárias sobre a ameaça à balança de pagamentos brasileira, o general Geisel, olhar duro, cara crispada, assumiu a palavra: "O Giscard não é especialista em petróleo. Não vai haver aumento de preço nenhum, a balança de pagamentos não corre risco nenhum. Os meus informantes são mais importantes e as minhas informações muito mais seguras".
Pasmo geral. Ministro das Minas e Energia, ao qual a Petrobras estava teoricamente (e só isso) subordinada, Dias Leite não engoliu a precipitação arrogante de Geisel: "O senhor pode entender de petróleo, mas quem entende de balança de pagamentos é o Delfim". Da reação de Geisel e da discussão que se seguiu, bastará dizer que Médici precisou suspender o encontro, o general e Dias Leite ficaram de relações rompidas e o episódio teve reflexos sobre Delfim no governo Ernesto Geisel.
É incerto, mas provável, que o general Orlando Geisel, poderoso ministro do Exército, tenha feito algum tipo de pressão sobre Médici, em apoio ao irmão. Certo é que a prevista retomada da reunião foi suspensa, com esta explicação de Médici a alguns dos convocados: "Em seis meses o governo estará acabando e não vale a pena criar um problema agora com os Geisel".
Os preços do petróleo logo subiram com tal violência, produzindo efeitos tão drásticos no Brasil, que o "milagre brasileiro" nem pôde esperar a introjeção de Ernesto Geisel como sucessor de Médici. O novo presidente, sempre distinguido como militar nacionalista, por isso integrante do Conselho Nacional do Petróleo, entusiasta do monopólio estatal entregue à Petrobras, em pânico diante da alta sufocante dos preços do petróleo entregou-se a uma solução humilhante: a burla disfarçada ao monopólio. Petrolíferas estrangeiras foram chamadas a pesquisar no Brasil, sob o regime artificioso de "contratos de risco". Mas o petróleo não apareceu.
Ou melhor, apareceu e muito, porém sem qualquer relação com Geisel. Nem seria coerente tê-la. Embora estudos rigorosos da Petrobras indicassem a conveniência e a necessidade de investimentos na prospecção de petróleo, pelos indícios promissores e pelos riscos internacionais, Ernesto Geisel, como presidente da Petrobras, concentrou-a na sua ampliação como distribuidora de combustível, disseminando postos de venda BR pelo país todo. Até tomando-os a outras distribuidoras, no que chegou a gerar um problema diplomático.
O atraso provocado pelo teimoso erro de Geisel, em sua política na Petrobras, produz efeitos deletérios até hoje. O Brasil já poderia ser auto-suficiente em petróleo, como está previsto que ocorra nesta década, mas já poderia sê-lo e não estaria ameaçado pelo atual risco de crise, não fossem os anos perdidos com a recusa de Geisel a considerar os argumentos dos especialistas críticos da sua (anti)política petrolífera.
A recusa de Geisel não foi diferente da que hoje mantém Pedro Malan e, por consequência, Fernando Henrique Cardoso, nestes mais de cinco anos que se vão perdendo para a economia brasileira, para a vida mesma do país e da população em permanente crescimento. Anos irrecuperáveis.


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