São Paulo, segunda-feira, 12 de março de 2007

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ENTREVISTA DA 2ª/CARL LEWIS

Ex-campeão afirma que atletas perderam credibilidade e estão estragando o esporte com o doping; por mudanças, anuncia retorno como consultor

"Vou tirar o esporte da lama", diz lenda das pistas

Frederick Carlton Lewis interrompeu a carreira de modelo e empresário. Cancelou desfiles, postergou reuniões. A ordem agora é rememorar o passado para mudar o futuro.
Lembrar o período em que construiu uma das trajetórias mais longevas e premiadas do esporte. Resgatar o prestígio de uma atividade que acredita estar definhando. Mudar a atitude de seus sucessores. Reviver, enfim, a época na qual era mundialmente conhecido apenas como Carl Lewis.

GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

Dez anos após anunciar sua aposentadoria, o norte-americano que arrebatou dez medalhas em Olimpíadas está de volta ao cenário esportivo.
Não vai calçar sapatilhas e quebrar recordes, rotina que cumpriu no atletismo, mais especificamente em provas como os 100 m e o salto em distância, entre 1979 e 1997.
Sua cruzada agora é outra, também ambiciosa: resgatar a popularidade e a credibilidade dos atletas. "Enfrentamos uma grave crise. Hoje eu ligo a TV e não consigo encontrar provas de atletismo ou natação, por exemplo. Na minha época, não era assim. Voltei porque acho que é hora de fazer a diferença.
Vou tirar o esporte da lama." O tom beligerante do discurso não surge por acaso. Lewis, 45, diz saber quem são os culpados por flagelos como a eclosão de casos de doping, o afugentamento de patrocinadores e o declínio do interesse por modalidades olímpicas. "Os atletas perderam a credibilidade. E credibilidade é tudo."
Sua idéia é trabalhar em duas frentes para reverter tal quadro. Ele pretende adotar esportistas de elite e ensiná-los a se portar "como atletas de verdade". Além disso, vai levar para os EUA equipes de países em desenvolvimento para ensinar atletismo, garimpar talentos e ajudar na massificação.
Dono de 11 recordes mundiais, Lewis também gosta de falar de Pan-Americano, evento que o Brasil recebe em julho. O torneio ficou marcado como sua primeira viagem internacional, em 1979. Por isso, é com frustração que descreve os rumos que a competição tomou, como explicou em entrevista à Folha, por telefone.  

FOLHA - Quando parou, você prometeu não retornar ao esporte. Por que mudou de decisão?
LEWIS
- Honestamente, preciso dizer que voltei por necessidade, para combater um mal. O esporte enfrenta uma grave crise. A popularidade dos atletas está caindo drasticamente em todos os países. Colegas cobravam minha ajuda, meu engajamento na busca da credibilidade que o esporte perdeu. Eu dei minha vida ao atletismo. Sou um nome famoso. Voltei para tirar o esporte da lama.

FOLHA - Voltar significa retomar os treinos, competir novamente?
LEWIS
- Não tenho mais condições de correr ou saltar, mas eu posso fazer a diferença. E vou fazer. Meu trabalho no esporte tem dois focos. Em primeiro lugar, ajudarei grandes atletas a conduzirem suas carreiras. Ensinarei a serem esportistas de verdade, exemplos de vida. Eles vão conversar com a mídia, vão usar o marketing para se promoverem e para alimentar a modalidade que praticam. Também vou convocar competidores de países em desenvolvimento para treinar nos EUA. Vou ajudá-los a progredirem, a popularizarem o esporte em suas nações.

FOLHA - Quando isso vai começar?
LEWIS
- Já começou. Desde o final de 2006, eu e meu antigo técnico, Tom Tellez, estamos orientando Dwight Phillips [norte-americano, campeão olímpico do salto em distância]. É um atleta fantástico, que pode ser uma boa vitrine para nosso projeto. Também estamos treinando esportistas da Índia, país que não tem tradição no atletismo e pode ser um bom pólo para formar talentos.

FOLHA - Quanto os atletas pagam por esse serviço de consultoria?
LEWIS
- Nada. A questão não é financeira. Para mim, é frustrante ver como as modalidades olímpicas perderam importância. Eu ligo a TV e não consigo encontrar uma prova de atletismo ou de natação, por exemplo. Na minha época, não era assim. Essa decadência ocorreu por culpa dos atletas. E só os atletas podem mudar isso.

FOLHA - O que exatamente você classifica como decadência?
LEWIS
- Simples. Os atletas de hoje perderam a credibilidade. E credibilidade é tudo.

FOLHA - Você se refere aos escândalos de doping?
LEWIS
- Sim. O doping talvez seja a parte mais visível da crise. Hoje, o que acontece se um atleta ganhar dez medalhas olímpicas, como eu ganhei? Vão dizer que ele é um gênio, um modelo? Claro que não. Vão pensar que ele é um trapaceiro, um usuário de drogas. A situação chegou a esse ponto porque os atletas não estão cuidando do esporte. O doping não piorou o atletismo ou outras modalidades. Foram os atletas que fraquejaram e deixaram as drogas se tornarem um problema.

FOLHA - É possível reverter esse quadro de desconfiança?
LEWIS
- Claro que sim. Quando eu competia, falava todos os dias contra o doping. Todos os dias! Eu acreditava que era algo errado e usava meu prestígio e meu carisma para combater esse mal. Hoje os atletas ficam reclamando. Culpam os dirigentes. Parecem um bando de bebês chorões. Estou voltando para dizer-lhes: "Levantem, unam-se, criem algo, parem de reclamar! Façam a diferença!". Atletas de elite que treinarem comigo vão ter que se posicionar. Já os convidados do exterior vão voltar para casa com a missão de combater o doping.

FOLHA - O canadense Ben Johnson, banido do esporte por uso de substâncias proibidas, afirmou que você também usou doping...
LEWIS
- Quanta imaginação! Nem preciso responder. Foi uma declaração infeliz. Fiz testes durante toda a minha carreira. Sempre incentivei o endurecimento dos controles de doping. Depois de quatro Olimpíadas, tudo o que existe contra mim são bravatas.

FOLHA - O Brasil registra casos de doping todos os anos. Poucos atletas erguem a voz para defender a classe ou pregar contra o uso de substâncias proibidas. Você conhece algum esportista brasileiro?
LEWIS
- Honestamente, não sei o nome de ninguém porque parei de acompanhar esporte. De qualquer forma, o Brasil faz parte de meus planos. Uma das coisas que quero fazer é criar um circuito realmente global de competições. Hoje, a elite do atletismo só corre no eixo Europa-EUA. Uma Liga Mundial, que tenha estágios em todos os continentes, é fundamental para a popularização. O Brasil, pela tradição que tem, pode ser a sede na América do Sul.

FOLHA - O Brasil, aliás, vai receber o Pan-Americano em julho. Você competiu duas vezes no evento, nas edições de 1979 e 1987. Lembra?
LEWIS
- Claro que sim. Os dois foram especiais. O primeiro, disputado em San Juan, Porto Rico, foi a minha primeira competição internacional. Eu tinha 17 anos, era um bebê. Celebrei o meu aniversário de 18 anos durante o torneio. Além disso, ganhei uma medalha de bronze no salto em distância, o meu primeiro prêmio internacional.

FOLHA - Em 1987, o clima era diferente, não? Afinal, você já era medalhista olímpico...
LEWIS
- Sim. Eu competia em casa [o torneio ocorreu em Indianapolis], e os objetivos eram outros. Eu havia conquistado quatro ouros na Olimpíada de 1984, e minha meta naquele torneio era quebrar o recorde mundial. Não consegui.

FOLHA - Suas palavras suscitam uma discussão. Naquela época, atletas consagrados competiam no Pan. Agora, os EUA não mandam mais seus melhores nomes. Por que o Pan entrou em decadência?
LEWIS
- Quando o Pan estreou, em 1951, não existiam Copas do Mundo e os Mundiais eram disputados por poucos países. Assim, o Pan era definitivamente o segundo evento mais importante do calendário. Só perdia para a Olimpíada. Creio que o Pan não soube prosperar e perdeu sua importância.

FOLHA - O que poderia ser feito?
LEWIS
- É difícil dizer. Creio que os organizadores poderiam, por exemplo, convidar atletas de outros continentes para tornar as disputas mais fortes. Claro que eles não entrariam no quadro de medalhas, mas poderiam receber prêmios pela participação.
Isso melhoraria o nível técnico. O que os atletas querem é competir contra os melhores. Ou, pelo menos, é o que deveriam buscar. Enquanto o Pan continuou igual, outros eventos cresceram. Hoje é possível encontrar excelência técnica em outros torneios, como nas Ligas Mundiais. Assim, penso que a elite do atletismo norte-americano só volta ao Pan se o Pan se reinventar. É uma pena, mas é a realidade.


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