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ENTREVISTA DA 2ª/CARL LEWIS
Ex-campeão afirma que atletas perderam credibilidade e estão estragando o esporte com o doping; por mudanças, anuncia retorno como consultor
"Vou tirar o esporte da lama", diz lenda das pistas
Frederick Carlton Lewis interrompeu a carreira de modelo e empresário. Cancelou desfiles, postergou
reuniões. A ordem agora é rememorar o passado para mudar o futuro.
Lembrar o período em que construiu uma
das trajetórias mais longevas e premiadas
do esporte. Resgatar o prestígio de uma atividade que acredita estar definhando. Mudar a atitude de seus sucessores. Reviver,
enfim, a época na qual era mundialmente
conhecido apenas como Carl Lewis.
GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL
Dez anos após anunciar sua
aposentadoria, o norte-americano que arrebatou dez medalhas em Olimpíadas está de volta ao cenário esportivo.
Não vai calçar sapatilhas e
quebrar recordes, rotina que
cumpriu no atletismo, mais especificamente em provas como
os 100 m e o salto em distância,
entre 1979 e 1997.
Sua cruzada agora é outra,
também ambiciosa: resgatar a
popularidade e a credibilidade
dos atletas. "Enfrentamos uma
grave crise. Hoje eu ligo a TV e
não consigo encontrar provas
de atletismo ou natação, por
exemplo. Na minha época, não
era assim. Voltei porque acho
que é hora de fazer a diferença.
Vou tirar o esporte da lama."
O tom beligerante do discurso não surge por acaso. Lewis,
45, diz saber quem são os culpados por flagelos como a eclosão de casos de doping, o afugentamento de patrocinadores
e o declínio do interesse por
modalidades olímpicas. "Os
atletas perderam a credibilidade. E credibilidade é tudo."
Sua idéia é trabalhar em duas
frentes para reverter tal quadro. Ele pretende adotar esportistas de elite e ensiná-los a se
portar "como atletas de verdade". Além disso, vai levar para
os EUA equipes de países em
desenvolvimento para ensinar
atletismo, garimpar talentos e
ajudar na massificação.
Dono de 11 recordes mundiais, Lewis também gosta de
falar de Pan-Americano, evento que o Brasil recebe em julho.
O torneio ficou marcado como
sua primeira viagem internacional, em 1979. Por isso, é com
frustração que descreve os rumos que a competição tomou,
como explicou em entrevista à
Folha, por telefone.
FOLHA - Quando parou, você prometeu não retornar ao esporte. Por
que mudou de decisão?
LEWIS - Honestamente, preciso
dizer que voltei por necessidade, para combater um mal. O
esporte enfrenta uma grave crise. A popularidade dos atletas
está caindo drasticamente em
todos os países. Colegas cobravam minha ajuda, meu engajamento na busca da credibilidade que o esporte perdeu. Eu dei
minha vida ao atletismo. Sou
um nome famoso. Voltei para
tirar o esporte da lama.
FOLHA - Voltar significa retomar os
treinos, competir novamente?
LEWIS - Não tenho mais condições de correr ou saltar, mas eu
posso fazer a diferença. E vou
fazer. Meu trabalho no esporte
tem dois focos. Em primeiro lugar, ajudarei grandes atletas a
conduzirem suas carreiras. Ensinarei a serem esportistas de
verdade, exemplos de vida. Eles
vão conversar com a mídia, vão
usar o marketing para se promoverem e para alimentar a
modalidade que praticam.
Também vou convocar competidores de países em desenvolvimento para treinar nos
EUA. Vou ajudá-los a progredirem, a popularizarem o esporte
em suas nações.
FOLHA - Quando isso vai começar?
LEWIS - Já começou. Desde o final de 2006, eu e meu antigo
técnico, Tom Tellez, estamos
orientando Dwight Phillips
[norte-americano, campeão
olímpico do salto em distância]. É um atleta fantástico, que
pode ser uma boa vitrine para
nosso projeto. Também estamos treinando esportistas da
Índia, país que não tem tradição no atletismo e pode ser um
bom pólo para formar talentos.
FOLHA - Quanto os atletas pagam
por esse serviço de consultoria?
LEWIS - Nada. A questão não é
financeira. Para mim, é frustrante ver como as modalidades olímpicas perderam importância. Eu ligo a TV e não consigo encontrar uma prova de
atletismo ou de natação, por
exemplo. Na minha época, não
era assim. Essa decadência
ocorreu por culpa dos atletas. E
só os atletas podem mudar isso.
FOLHA - O que exatamente você
classifica como decadência?
LEWIS - Simples. Os atletas de
hoje perderam a credibilidade.
E credibilidade é tudo.
FOLHA - Você se refere aos escândalos de doping?
LEWIS - Sim. O doping talvez
seja a parte mais visível da crise. Hoje, o que acontece se um
atleta ganhar dez medalhas
olímpicas, como eu ganhei?
Vão dizer que ele é um gênio,
um modelo? Claro que não. Vão
pensar que ele é um trapaceiro,
um usuário de drogas. A situação chegou a esse ponto porque
os atletas não estão cuidando
do esporte. O doping não piorou o atletismo ou outras modalidades. Foram os atletas que
fraquejaram e deixaram as drogas se tornarem um problema.
FOLHA - É possível reverter esse
quadro de desconfiança?
LEWIS - Claro que sim. Quando
eu competia, falava todos os
dias contra o doping. Todos os
dias! Eu acreditava que era algo
errado e usava meu prestígio e
meu carisma para combater esse mal. Hoje os atletas ficam reclamando. Culpam os dirigentes. Parecem um bando de bebês chorões. Estou voltando
para dizer-lhes: "Levantem,
unam-se, criem algo, parem de
reclamar! Façam a diferença!".
Atletas de elite que treinarem comigo vão ter que se posicionar. Já os convidados do exterior vão voltar para casa com
a missão de combater o doping.
FOLHA - O canadense Ben Johnson,
banido do esporte por uso de substâncias proibidas, afirmou que você
também usou doping...
LEWIS - Quanta imaginação!
Nem preciso responder. Foi
uma declaração infeliz. Fiz testes durante toda a minha carreira. Sempre incentivei o endurecimento dos controles de
doping. Depois de quatro Olimpíadas, tudo o que existe contra
mim são bravatas.
FOLHA - O Brasil registra casos de
doping todos os anos. Poucos atletas erguem a voz para defender a
classe ou pregar contra o uso de
substâncias proibidas. Você conhece
algum esportista brasileiro?
LEWIS - Honestamente, não sei
o nome de ninguém porque parei de acompanhar esporte. De
qualquer forma, o Brasil faz
parte de meus planos. Uma das
coisas que quero fazer é criar
um circuito realmente global
de competições. Hoje, a elite do
atletismo só corre no eixo Europa-EUA. Uma Liga Mundial,
que tenha estágios em todos os
continentes, é fundamental para a popularização. O Brasil, pela tradição que tem, pode ser a
sede na América do Sul.
FOLHA - O Brasil, aliás, vai receber o
Pan-Americano em julho. Você competiu duas vezes no evento, nas edições de 1979 e 1987. Lembra?
LEWIS - Claro que sim. Os dois
foram especiais. O primeiro,
disputado em San Juan, Porto
Rico, foi a minha primeira competição internacional. Eu tinha
17 anos, era um bebê. Celebrei o
meu aniversário de 18 anos durante o torneio.
Além disso, ganhei uma medalha de bronze no salto em
distância, o meu primeiro prêmio internacional.
FOLHA - Em 1987, o clima era diferente, não? Afinal, você já era medalhista olímpico...
LEWIS - Sim. Eu competia em
casa [o torneio ocorreu em Indianapolis], e os objetivos eram
outros. Eu havia conquistado
quatro ouros na Olimpíada de
1984, e minha meta naquele
torneio era quebrar o recorde
mundial. Não consegui.
FOLHA - Suas palavras suscitam
uma discussão. Naquela época, atletas consagrados competiam no Pan.
Agora, os EUA não mandam mais
seus melhores nomes. Por que o Pan
entrou em decadência?
LEWIS - Quando o Pan estreou,
em 1951, não existiam Copas do
Mundo e os Mundiais eram disputados por poucos países. Assim, o Pan era definitivamente
o segundo evento mais importante do calendário. Só perdia
para a Olimpíada. Creio que o
Pan não soube prosperar e perdeu sua importância.
FOLHA - O que poderia ser feito?
LEWIS - É difícil dizer. Creio
que os organizadores poderiam, por exemplo, convidar
atletas de outros continentes
para tornar as disputas mais
fortes. Claro que eles não entrariam no quadro de medalhas, mas poderiam receber
prêmios pela participação.
Isso melhoraria o nível técnico. O que os atletas querem é
competir contra os melhores.
Ou, pelo menos, é o que deveriam buscar. Enquanto o Pan
continuou igual, outros eventos cresceram. Hoje é possível
encontrar excelência técnica
em outros torneios, como nas
Ligas Mundiais. Assim, penso
que a elite do atletismo norte-americano só volta ao Pan se o
Pan se reinventar. É uma pena,
mas é a realidade.
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