São Paulo, domingo, 12 de abril de 1998

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LANTERNA NA POPA
Pensamentos de pré-quaresma...

ROBERTO CAMPOS

Pareceria algo profano, numa Semana Santa, tratarmos de bagatelas terrestres como política e economia, nas quais a gente às vezes não sabe bem onde deve passar a linha demarcatória do que é certo ou errado. Mas, pensando melhor, há um fio comum que amarra as preocupações desta vida material com as perguntas profundas que às vezes sobem até a superfície da alma. Quero dizer, a liberdade. Porque a liberdade não é apenas a "indeterminação das possibilidades". É também a consciência do que deve ser. Quando Hegel a definiu como a "consciência da necessidade", não estava longe da marca -se a entendermos, claro, como a consciência de algo que transcenda a nossa existência individual limitada, e nos faça vermo-nos como entes morais, necessariamente situados entre outros entes humanos, sujeitos de um mesmo universo ético e racional.
Liberdade, porém, como todos os juízos universais, é juízo que não comporta uma precisa circunscrição. Aplicado à política, então, pode ser envolvido num nevoeiro sinistro. Alguns dos regimes mais sórdidos de anos ainda não muito distantes se intitulavam "democracias populares". Quando o heroicamente sério G. Orwell, intelectual de esquerda convicto, voluntário na Guerra Civil espanhola -e, mais tarde, pela sua coerência moral, feroz e indecentemente "patrulhado" pelos sabujos da linha soviética- caricaturou, no seu "Animal Farm", a duplicidade do pensamento e da língua, estava nos apontando uma questão vetusta, que deixara perplexo o pensamento grego de 24 séculos. E que se tornou tanto mais complicada quanto mais complicado é o contexto em que vivemos: a pouca vontade de distinguir entre o bem e o mal, a falta de compromisso com o que não seja da conveniência imediata, o descolamento entre o discurso e o fato.
Essa é uma indagação permanente do espírito liberal, que se aplica sempre à disputa pelo poder, às convoluções dos governos, às manobras dos políticos (os "artistas do possível"), à arrogância dos comensais burocráticos do "sistema" e -por fim, mas não por último- aos males que causam os autodesignados salvadores e transformadores do mundo. De São Vicente de Paulo, essa figura maravilhosa de caridade com eficiência prática, consta que todas as noites, antes das poucas horas de sono que se permitia, pedia a Deus que os pobres que ajudava lhe perdoassem o que lhes dava. Esse é o espírito dos que realmente fazem, o oposto do daqueles que se outorgam o direito de salvar os outros, quer estes queiram, quer não.
Um pouco menos genericamente, tenho pensado, liberal convicto que sou, como proliferam essas tendências daninhas no nosso processo político. E como, quando sobem as marés eleitorais, se assanham os inumeráveis candidatos a "fazer o bem" (ou a fazer cartaz, o que, no caso deles, é a mesma coisa) às nossas custas, invadindo sem o menor escrúpulo as nossas liberdades, sob os mais fugidios pretextos.
Essas pessoas, se lhe perguntarem o que pretendem, responderão com ar de inocência (e, aliás, não necessariamente fingido, porque macaco que olhe o próprio rabo é bicho raro) que estão agindo com as melhores intenções. A velha sabedoria do povo diz que, de boas intenções, o inferno está cheio. Pensando aqui na pátria amada pré-eleitoral, catei ao acaso algumas ilustrações do que acontece alhures -por exemplo, com os bem intencionados programas, no chamado "Estado do Bem-Estar Social". Não faz muito, falando perante o Comitê Judiciário do Senado dos Estados Unidos, M. Tanner, do conhecido "think tank" americano Cato Institute, citou uma surpreendente revelação de um relatório da NAACP de Maryland (organização de defesa dos direitos dos negros), segundo o qual o aumento das contribuições sociais para as mães solteiras tem feito crescer muito a criminalidade juvenil. À primeira vista, parece paradoxal, mas a explicação faz sentido: com essas facilidades, multiplicou-se o número de mães solteiras que fazem da assistência uma carreira. E nos lares fraturados, chefiados apenas por mulheres, surge a maioria dos delinquentes (70%) e da população carcerária (43%). Outras pesquisas sérias, como a de J. O'Neill e A. Hill para o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, confirmam essa correlação, que é estatisticamente tão marcada, que faz desaparecer fatores como raça e baixa renda. Tendências parecidas foram encontradas em outros países, v.g., o Canadá.
Não creio que ninguém de bom senso tivesse dúvida de que um dos fatores decisivos na criminalidade é a carência familiar, o lar esfacelado, a falta de modelos bons a serem imitados. E tampouco creio que um espírito bem formado ache que a solução seja punir a mãe solteira (e, com ela, a criança). Mas o fato é que as boas intenções de políticos e burocratas transformaram a solução em problema talvez mais difícil. Não há fórmulas mágicas, naturalmente, mas fico pensando se as igrejas, por exemplo, não fariam melhor e mais barato o que deva ser feito.
O dinheiro alheio é muito fácil de gastar, e custa ainda menos ditar regras para os outros obedecerem. Para os bem-intencionados, a liberdade e os direitos dos demais são considerações irrelevantes. A TV mostra violência? Não seja por isso: censura nela. Pessoas cometem crimes com armas? Simples, vamos desarmar todo o mundo (o criminoso, mesmo, é meio difícil, mas porque atrapalhar uma bela idéia por meras questões práticas?). O automóvel pesteia o meio ambiente e causa desastres? Por que não acabar de uma vez com ele (deixando alguns, claro, para uso oficial)? E vai por aí a fora. Pol Pot, o ex-líder do Khmer Vermelho, quis transformar os cambojanos em bons comunistas, o que seria uma simples questão de matar alguns. Foram só dois milhões, mas parece que faltou vigor à experiência, e o moço agora está preso na pátria ingrata.
E, para concluir, meus amigos, pensem no seguinte: o governo já custa, no Brasil, a mesma proporção do PIB que nos Estados Unidos e no Japão, cerca de 32%. Há pouco tempo, segundo o Ipea, que é órgão público, a carga tributária brasileira já atingira, em 1996, em termos comparativos, uma das cifras mais altas do mundo, certamente muito além da média tributária de países subdesenvolvidos de baixa poupança. E isso num período de contenção de gastos em que o governo tem procurado manter a disciplina (não tanto nos Estados, onde moram os políticos...). E a turma eleitoreira ainda não começou a martelar na necessidade do "social". Para os liberais, a melhor maneira de o governo ser "social" é privatizar suas atividades empresariais, deixando de ser mau empresário para ser bom samaritano.


Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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