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LANTERNA NA POPA
Pensamentos de pré-quaresma...
ROBERTO CAMPOS
Pareceria algo profano, numa
Semana Santa, tratarmos de
bagatelas terrestres como política e economia, nas quais a gente às vezes não sabe bem onde
deve passar a linha demarcatória do que é certo ou errado.
Mas, pensando melhor, há um
fio comum que amarra as preocupações desta vida material
com as perguntas profundas
que às vezes sobem até a superfície da alma. Quero dizer, a
liberdade. Porque a liberdade
não é apenas a "indeterminação das possibilidades". É também a consciência do que deve
ser. Quando Hegel a definiu como a "consciência da necessidade", não estava longe da
marca -se a entendermos, claro, como a consciência de algo
que transcenda a nossa existência individual limitada, e nos
faça vermo-nos como entes morais, necessariamente situados
entre outros entes humanos, sujeitos de um mesmo universo
ético e racional.
Liberdade, porém, como todos
os juízos universais, é juízo que
não comporta uma precisa circunscrição. Aplicado à política,
então, pode ser envolvido num
nevoeiro sinistro. Alguns dos regimes mais sórdidos de anos
ainda não muito distantes se
intitulavam "democracias populares". Quando o heroicamente sério G. Orwell, intelectual de esquerda convicto, voluntário na Guerra Civil espanhola -e, mais tarde, pela sua
coerência moral, feroz e indecentemente "patrulhado" pelos
sabujos da linha soviética- caricaturou, no seu "Animal
Farm", a duplicidade do pensamento e da língua, estava nos
apontando uma questão vetusta, que deixara perplexo o pensamento grego de 24 séculos. E
que se tornou tanto mais complicada quanto mais complicado é o contexto em que vivemos:
a pouca vontade de distinguir
entre o bem e o mal, a falta de
compromisso com o que não seja da conveniência imediata, o
descolamento entre o discurso e
o fato.
Essa é uma indagação permanente do espírito liberal, que se
aplica sempre à disputa pelo
poder, às convoluções dos governos, às manobras dos políticos (os "artistas do possível"), à
arrogância dos comensais burocráticos do "sistema" e -por
fim, mas não por último- aos
males que causam os autodesignados salvadores e transformadores do mundo. De São Vicente de Paulo, essa figura maravilhosa de caridade com eficiência prática, consta que todas as
noites, antes das poucas horas
de sono que se permitia, pedia a
Deus que os pobres que ajudava
lhe perdoassem o que lhes dava.
Esse é o espírito dos que realmente fazem, o oposto do daqueles que se outorgam o direito de salvar os outros, quer estes
queiram, quer não.
Um pouco menos genericamente, tenho pensado, liberal
convicto que sou, como proliferam essas tendências daninhas
no nosso processo político. E como, quando sobem as marés
eleitorais, se assanham os inumeráveis candidatos a "fazer o
bem" (ou a fazer cartaz, o que,
no caso deles, é a mesma coisa)
às nossas custas, invadindo sem
o menor escrúpulo as nossas liberdades, sob os mais fugidios
pretextos.
Essas pessoas, se lhe perguntarem o que pretendem, responderão com ar de inocência (e,
aliás, não necessariamente fingido, porque macaco que olhe o
próprio rabo é bicho raro) que
estão agindo com as melhores
intenções. A velha sabedoria do
povo diz que, de boas intenções,
o inferno está cheio. Pensando
aqui na pátria amada pré-eleitoral, catei ao acaso algumas
ilustrações do que acontece
alhures -por exemplo, com os
bem intencionados programas,
no chamado "Estado do
Bem-Estar Social". Não faz
muito, falando perante o Comitê Judiciário do Senado dos Estados Unidos, M. Tanner, do
conhecido "think tank" americano Cato Institute, citou uma
surpreendente revelação de um
relatório da NAACP de Maryland (organização de defesa
dos direitos dos negros), segundo o qual o aumento das contribuições sociais para as mães
solteiras tem feito crescer muito
a criminalidade juvenil. À primeira vista, parece paradoxal,
mas a explicação faz sentido:
com essas facilidades, multiplicou-se o número de mães solteiras que fazem da assistência
uma carreira. E nos lares fraturados, chefiados apenas por
mulheres, surge a maioria dos
delinquentes (70%) e da população carcerária (43%). Outras
pesquisas sérias, como a de J.
O'Neill e A. Hill para o Departamento de Saúde e Serviços
Humanos dos Estados Unidos,
confirmam essa correlação, que
é estatisticamente tão marcada,
que faz desaparecer fatores como raça e baixa renda. Tendências parecidas foram encontradas em outros países, v.g., o Canadá.
Não creio que ninguém de
bom senso tivesse dúvida de que
um dos fatores decisivos na criminalidade é a carência familiar, o lar esfacelado, a falta de
modelos bons a serem imitados.
E tampouco creio que um espírito bem formado ache que a
solução seja punir a mãe solteira (e, com ela, a criança). Mas o
fato é que as boas intenções de
políticos e burocratas transformaram a solução em problema
talvez mais difícil. Não há fórmulas mágicas, naturalmente,
mas fico pensando se as igrejas,
por exemplo, não fariam melhor e mais barato o que deva
ser feito.
O dinheiro alheio é muito fácil de gastar, e custa ainda menos ditar regras para os outros
obedecerem. Para os bem-intencionados, a liberdade e os
direitos dos demais são considerações irrelevantes. A TV mostra violência? Não seja por isso:
censura nela. Pessoas cometem
crimes com armas? Simples, vamos desarmar todo o mundo (o
criminoso, mesmo, é meio difícil, mas porque atrapalhar uma
bela idéia por meras questões
práticas?). O automóvel pesteia
o meio ambiente e causa desastres? Por que não acabar de
uma vez com ele (deixando alguns, claro, para uso oficial)? E
vai por aí a fora. Pol Pot, o
ex-líder do Khmer Vermelho,
quis transformar os cambojanos em bons comunistas, o que
seria uma simples questão de
matar alguns. Foram só dois
milhões, mas parece que faltou
vigor à experiência, e o moço
agora está preso na pátria ingrata.
E, para concluir, meus amigos, pensem no seguinte: o governo já custa, no Brasil, a mesma proporção do PIB que nos
Estados Unidos e no Japão, cerca de 32%. Há pouco tempo,
segundo o Ipea, que é órgão público, a carga tributária brasileira já atingira, em 1996, em
termos comparativos, uma das
cifras mais altas do mundo, certamente muito além da média
tributária de países subdesenvolvidos de baixa poupança. E
isso num período de contenção
de gastos em que o governo tem
procurado manter a disciplina
(não tanto nos Estados, onde
moram os políticos...). E a turma eleitoreira ainda não começou a martelar na necessidade
do "social". Para os liberais, a
melhor maneira de o governo
ser "social" é privatizar suas
atividades empresariais, deixando de ser mau empresário
para ser bom samaritano.
Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de
Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro
do Planejamento (governo Castello Branco). É
autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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