São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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ELIO GASPARI
Uma crise daquelas de que FFHH não gosta



Noves fora a conversa golpista de uma nova candidatura de FFHH, ele está metido numa crise daquelas de que não gosta. São aquelas que resultam de um choque de forças que não defendem interesses visíveis. Ele entendia a briga política provocada pelo populismo cambial, assim como entende a encrenca que o governo de George W. Bush está montando com o Brasil. Não entende, por exemplo, como o Brasil chegou à beira da guerra civil em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros. Agora ele olha para os jardins do Alvorada e não entende por que a briga com o PFL foi tão longe. Muito menos as razões que esfacelaram o PSDB. Na essência, não entende como se tenha chegado a um ponto em que tanto o PFL quanto um pedaço do PSDB prefiram perder para Lula a abrir uma rodada de conversações que recoloquem de pé a candidatura de José Serra. Primeiro, viu o PFL ir para uma eleição sem candidato. Agora, já recebeu sinais de que nem uma troca de candidato assegura a unidade do PSDB. Pior: os estepes sumiram.
Há na sua perplexidade um raro abatimento. Primeiro, porque percebeu a dificuldade para recolocar a pasta de dentes no tubo espremido. Depois, porque a cada dia e ponto percentual que passa, o tucanato se vê numa campanha eleitoral que lhe exigirá a satanização de Luiz Inácio Lula da Silva a níveis próximos daqueles usados por Fernando Collor de Mello. Tendo conseguido eleger-se duas vezes sem ter recorrido a esse tipo de expediente, FFHH será um dos últimos tucanos a embarcar nesse caminho.
Se vier a preferi-lo, jogará fora um dos maiores atributos de seu reinado, a rara capacidade de esvaziar as crises, em vez de agravá-las.

Entrevista

Antonio Delfim Netto

(74 anos, ex-ministro da Fazenda, deputado federal pelo PPB-SP)

-FFHH disse que, apesar dos resultados do Censo, a década de 90 não foi perdida. Foi?
-O que o Censo está mostrando é que a década perdida de 90 finalmente foi achada. O Plano Real foi o programa de estabilização mais caro do mundo, e quem pagou esse preço foi a sociedade brasileira. Brilhante na concepção, desandou em 1998, mas foi salvo pelo governo americano, que jogou o socorro do FMI em benefício da reeleição de FHC. Tomados pelo conjunto, os oitos anos resultaram num crescimento médio de 2,3% do PIB, o que significa 0,8 % na renda per capita. Isso é algo muito próximo da estagnação. Nesse mesmo período, o Chile e o México cresceram o dobro, com menos inflação. Nenhum dos dois tem a nossa taxa de juros nem a nossa dívida. Tivemos um desemprego praticamente constante de 7,5%. O Lula sabe o que isso significa para um trabalhador. Em 1973, um operário não só vivia em regime de pleno emprego, como o salário de metalúrgico permitiu-lhe comprar um Volkswagen novo. Quando se fez o Plano Real, nós tínhamos dificuldades, inflação e patrimônio. Passados oito anos, continuamos com dificuldades, sem inflação e sem patrimônio. Muitos tucanos fizeram fama falando da má distribuição de renda nacional. Passaram-se oito anos e ela está igualzinha. Com uma diferença: eu nunca duvidei nem contestei os dados do Censo.

-Que tipo de dificuldades?
-Estamos entrando num período de instabilidade econômica, e o Lula não tem nada a ver com isso. Vamos fingir que não temos uma dívida interna líquida equivalente a 55% do PIB e que não estamos obrigados a trazer US$ 1 bilhão de investimentos externos por semana. O governo comemora como vitória o fato de termos conseguido um superávit comercial de US$ 1,5 bilhão. Ele foi obtido por meio de uma queda de 21% nas importações, num período em que as exportações caíram 11%. Ou seja: estamos vendendo pouco e comprando menos ainda. Isso não é sinal de saúde, a economia está murchando.

-O senhor está dizendo o contrário dos analistas da banca. As dificuldades econômicas é que podem estar esfrangalhando a base política do governo, em vez de esse esfrangalhamento estar criando incerteza econômica?
-Quem procura explicações e previsões globais simples e condensadas deve ler horóscopo. Dá muito menos trabalho. Temos dificuldades econômicas perfeitamente mensuráveis que são do conhecimento público. Temos também dificuldades políticas resultantes do fato de o PSDB ter achado que poderia impor um candidato aos seus aliados. Temos ainda o PSDB respondendo frivolamente a indagações que devem ser claramente respondidas Há uma relação entre a crise política e os problemas estruturais que os tucanos tentam afastar do debate. Os eleitores começaram a se dar conta de que, se a inflação os roubava à noite, a carga tributária do Real lhes tira o dinheiro do bolso durante o dia. A subida do Lula nas pesquisas pode derivar dessa percepção, e de nada adianta demonizá-lo. Digo isso com toda tranquilidade, porque, se o Lula for eleito -coisa que não desejo, mas que não me amedronta-, terei uma fonte de divertimento intelectual. Ele passou a vida fazendo oposição ao Delfim. Fazer oposição ao Lula será um prazer.

O consulado em Nova York está sem tempo para atender à choldra


Um bom tema para o ministro Celso Lafer meditar diante da ascensão de Lula nas pesquisas eleitorais. Aqui vai o horário de atendimento que o Consulado Brasileiro em Nova York oferecerá à patuléia a partir de 1º de junho:
Para entrega de documentos, só das 10h às 13h. Para recebimento da papelada, das 14h30 às 16h.
Isso dá um total de quatro horas e meia de expediente para o público. Pior: só atendem durante o horário de trabalho da cidade e não atendem na hora do almoço.
O chanceler poderá se divertir vendo as condições impostas aos contribuintes que desejem falar com o consulado por telefone. Oferecem-se treze números para que a choldra converse com máquinas.
Para "atendimento personalizado" (nome dado pelos burocratas à interlocução humana), o atendimento será restrito a duas horas diárias. Das 15h às 17h. O consulado é claro quanto a esse regime: "Fora do novo horário mencionado acima, não haverá atendimento telefônico personalizado". Ressalva que atende a "casos de comprovada emergência", mas não diz o que isso significa. Para evitar contratempos, talvez seja melhor que o andar de baixo procure a Cruz Vermelha e o de cima, a Merrill Lynch.
Vivem na região de Nova York mais de 300 mil brasileiros, que remetem anualmente ao Brasil perto de US$ 1 bilhão (dinheiro da família das exportações anuais de calçados). É gente que trabalha oito horas por dia e foi ela quem transformou a rua 46 num pedaço do Brasil, assim como é ela quem organiza a maior festa verde-amarela da cidade. A repartição justifica seu novo expediente para a escumalha "em razão do aumento da demanda de serviços consulares pela comunidade, sobretudo após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, sem que houvesse o correspondente aumento de seus recursos".
Se a razão é essa, a solução é fácil: basta suspender o atendimento personalizado que o consulado dá aos ministros e maganos indo buscá-los no aeroporto e colocando-lhes automóveis com motorista à disposição quando passam pela cidade. Celso Lafer pode começar a realocação de recursos dispensando sua própria mordomia. Ele não lhe sentirá a falta, pois já cansou de bater pernas e de entrar em táxi amarelo em Nova York.
Nisso tudo há uma parte divertida. A página do consulado na internet oferece uma entrevista, em áudio, do cônsul-geral sobre um tema de interesse geral. Atendimento aos nativos? Não, notícias sobre sua poesia. Ele até recita um versinho do poema "Balada". Quem estiver precisando desse tipo de serviço, pode ser atendido a qualquer hora no seguinte endereço: http://www.un.org/av/radio/portuguese/flavio020221.ram. (Talvez seja necessário o programa RealPlayer para ouvir a peça.)

O marechal Bittencourt morreu de valentia, mas foi esquecido



Está nas livrarias "Veredicto em Canudos", do escritor húngaro Sándor Márai. Tem 157 páginas, foi magnificamente traduzido (do inglês) por Paulo Schiller e tem uma história intrigante. Márai acabou de escrevê-lo na Itália em 1969 e sua primeira edição saiu no Canadá no ano seguinte. O escritor nunca esteve no Brasil e nada leu sobre Canudos além de "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Fascinou-se pela história do arraial, como sucedeu ao peruano Vargas Llosa, que escreveu "A Guerra do Fim do Mundo".
O coração do livro é uma conversa do ministro da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt, com uma pessoa que sobrevivera ao massacre. Como se trata de ficção, pouco importa que suas idéias nada tivessem a ver com as tintas jacobinas de seu personagem. Ele era um verdadeiro "milico" sem simpatias pelo marechal Floriano, pela República nascente ou pelo imperador destronado. Grande organizador, assegurou as linhas de suprimento das tropas, mobilizando mil mulas e jumentos.
O fato de Márai ter colocado em Bittencourt a voz de um interessante personagem é boa oportunidade para registrar dois fatos. O primeiro é a falta de dimensão dada a esse marechal na história brasileira. Teve um momento de glória, mas não lhe dão os devidos quinze minutos de fama. Na manhã de 5 de novembro de 1897, exatamente um mês depois da queda do arraial do Conselheiro, já no Rio de Janeiro, o ministro da Guerra caminhava ao lado do presidente da República, Prudente de Moraes. Preparavam-se para assistir a um desfile da tropa que voltava de Canudos. Apareceu um sujeito (Marcelino Bispo) com uma garrucha e apontou a arma contra o peito de Prudente. Ele escapou porque a garrucha falhou. O marechal Bittencourt, de 57 anos, jogou-se em cima do sujeito e enfrentou-o no braço. Juntaram-se a ele alguns oficiais, e a pancadaria durou uns cinco minutos. Marcelino Bispo tinha um sabre, mas tomaram-no. Tinha também uma faca. Acertou o peito de Bittencourt e atravessou-lhe o pulmão. O marechal já tinha levado outras quatro facadas, mas essa o mataria. Teve mais um hora de vida.
Carlos Machado de Bittencourt é praticamente desconhecido na história brasileira, apesar de ter sido a maior patente militar a morrer em combate. Graças a ele o Brasil é um dos poucos países do mundo onde um chefe militar morreu defendendo o poder civil. Em 1962, tornou-se patrono da Intendência do Exército, e de sua memória resta um busto colocado em frente ao lugar do atentado (o portão onde funciona o Museu Histórico Nacional). O exato ponto onde tombou está lembrado por uma placa de bronze. Por décadas ela foi protegida por duas peças de pedra. Talvez para não atrapalhar o estacionamento de automóveis, retiraram-nas. Assim, foi-se o relevo dado àquele pedaço de chão. Coisas da vida, um marechal morto na defesa de um presidente não deve ocupar o espaço onde se pode estacionar um carro.
Finalmente, uma suspeita, baseada em algo que pode ser lenda. No início de 1974, circulou entre a tropa que combatia os guerrilheiros do Araguaia a ordem de capturar vivos alguns prisioneiros. Não se destinava a mantê-los vivos, pois, assim como em 1897 a tropa exterminou os sobreviventes do arraial do conselheiro, no Araguaia, a partir de outubro de 1973, exterminaram-se os guerrilheiros do PC do B. Queria-se um guerrilheiro vivo para mandá-lo a Brasília, para que o ministro da guerra, Orlando Geisel, conversasse com ele. O encontro do general com o prisioneiro, que Márai inventou em 1969, como se tivesse acontecido em 1897, pode ter acontecido em 1974. Se aconteceu, só outro húngaro poderá recriar o encontro, pois os personagens desse diálogo estão mortos.



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