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NO PLANALTO
Em fita, soldado conta como foi torturado por seus comandantes
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Soube-se há dez dias que,
sob FHC, as cartilhas secretas
do Exército prevêem a hipótese de
"arranhar direitos dos cidadãos".
Aqui se verificará como pode ser
tênue a fronteira entre a teoria de
apostila e a prática da caserna.
O Exército produz arranhões
mesmo sem sair dos quartéis. Arranhões, perfurações e queimaduras, é o que se pretende demonstrar.
O soldado Gledson Magalhães
Nogueira foi torturado por superiores em Marabá (PA). Durante
um treinamento, teve as mãos
amarradas. Foi puxado por uma
corda. O "exercício" lhe valeu a
perda de sensibilidade na mão direita.
Dias depois, dois comandantes
de Gledson acharam que, para fugir do batente, ele fingia. E resolveram tirar a prova dos nove. Furaram-lhe o dedo com uma agulha. Como nada sentisse, queimaram-lhe a mão. Uma, duas, três
vezes.
A saga do soldado Gledson foi
reconstituída numa fita Sony, do
tipo microcassete. É parte de um
lote de 19 fitas, apreendidas no escritório de inteligência do Exército em Marabá, junto com a papelada secreta que a Folha começou
a publicar em 2 de agosto passado.
Por ordem do juiz Jeferson
Schneider, a Polícia Federal
transcreveu as fitas. O trabalho,
concluído há cinco dias, foi executado pela agente Rose Marli de
Freitas Vieira e por seu colega Ayres Bonfim Quariguasi.
Antes de chegar ao microcassete
da tortura, Rose e Ayres escutaram muita abobrinha. O ninho
de espionagem militar armazenava fitas com aulas de espanhol,
técnicas de memorização, canções de Caetano Veloso (CD "Fina Estampa"), hinos religiosos na
voz do padre-cantor Zezinho,
músicas regionais do Pará e até
entrevistas de jogadores do Flamengo e do técnico Zagallo, gravadas da TV no último dia 27 de
maio.
O som da voz de Gledson só saltou da fita de número 16. Ela traz
a entrevista de um araponga do
Exército com o soldado torturado. A seguir, um resumo do ocorrido, na voz do próprio Gledson.
Para facilitar o entendimento, suprimiram-se trechos redundantes
da fita:
1) O treinamento: "Houve uma
instrução chamada PG, prisioneiro de guerra. Tem uma etapa chamada "cordada". As mãos são
amarradas para trás e puxadas
por um determinado percurso.
Minha mão foi puxada com a
corda apertada demais. E fiquei
sem sensibilidade na mão direita" [o treinamento ocorreu na
Base de Selva de Cabo Rosas, em
Marabá, entre os dias 31 de maio
e 16 de junho do ano passado".
2) A agulha: "Fui o primeiro a
ser ouvido [em sindicância interna do Exército". Falaram: "se furar a tua mão, tu vais sentir?" Disse que não. O tenente Fujita [Angel Fujita Oliveira" trouxe uma
agulha. E o capitão Alei [Salim
Magluf Jr." furou o meu dedo.
Perguntou se eu estava sentindo
alguma coisa. Respondi que não.
Ele disse que eu havia passado no
teste da agulha";
3) O fogo: "Depois perguntou: e
se eu queimasse a tua mão? Respondi que não sou idiota. Terminou o meu depoimento e eles pegaram um fogareiro de campanha. Eu me abaixei e ficaram os
oficiais em pé, na minha frente. O
capitão Alei falou para mim: "rapaz, vamos parar com essa palhaçada, já sabemos que você move
essa mão". Eu não movimento a
mão, não sou palhaço. "Então coloque a mão no fogo." Eu coloquei
normalmente, botei minha mão
no fogo, pelo menos uns 15 ou 30
segundos. Tirei a mão e perguntei: está bom? Com sarcasmo, disseram: "está bom? Bota a mão de
novo". Eu botei. Tira. Eu tirei. Coloca de novo. Eu coloquei. Tira.
Eu tirei";
4) O arremate: "Pegaram a minha mão direita e apertaram. E
perguntaram: não está sentindo
nada? Respondi que não. E insinuaram que eu estivesse fazendo
algum tratamento para forjar,
que eu estaria querendo a reserva. Insinuaram também que eu
estaria fazendo um tipo de curso
de masoquismo";
Sentindo-se ultrajado com a
ausência de punição de seus superiores, o soldado Gledson recorreu
à Procuradoria da República. Foi
encaminhado ao Ministério Público Militar.
No último dia 20 de junho, o
procurador Clementino Augusto
Ruffeil, de Belém, apresentou denúncia contra o tenente Fujita e o
capitão Alei. Acusou-os de lesão
corporal grave" e "violência aviltante a inferior" Somadas, as penas podem chegar a sete anos de
cana.
Fujita e Alei estão proibidos de
comentar o assunto. Contactado
na sexta-feira, o Exército também
se negou a fazer considerações a
respeito.
Passa da hora de Brasília voltar
os olhos para o Comando Militar
da Amazônia. Do contrário, não
saberá o que dizer quando o brasileiro começar a perguntar: ora,
se um oficial do Exército pode tratar assim um dos seus, o que não
fará quando tiver diante de si um
legítimo representante das "forças adversas"?
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