São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI
A bolha de vitalidade infantil de Pedro Malan

O ministro Pedro Malan escreveu um artigo intitulado ""Perspectivas do Real e Diretrizes para o Desenvolvimento". Apesar do título burocrático, vale a pena lê-lo. É uma sincera sustentação de sua conduta. Argumenta que a crise brasileira era de um tamanho que tornava indispensável o tranco dos últimos anos. Está disponível na Internet (http://www.fazenda.gov.br) e sua leitura custa uns 15 minutos.
Malan informa que se avançou no campo social e diz:
""Por exemplo, a tendência de mortalidade infantil, acompanhada pela Pastoral da Criança da CNBB, mostra que os números de mortos (com menos de um ano) por mil nascidos vivos, declinou de 41 em 1992 para 31 em 1995 e 17,6 em 1996."
Se o leitor saiu dessa frase com a impressão de que a taxa de mortalidade infantil brasileira caiu de 41 em 1992, para 17,6 em 1996, fez papel de bobo. Acreditou numa insinuação estatística. Nesse caso, convém examinar a dança dos números, para que se conheça melhor as manhas da ekipekonômica e, sobretudo, para que as pessoas saboreiem um exemplo de como é possível fazê-las de bobas.
A chave da questão está no trecho em que Malan se refere a uma ""tendência de mortalidade infantil, acompanhada pela Pastoral da Criança". Permite a impressão de que a pastoral acompanha os indicadores de mortalidade infantil do país e traça ""tendências". Isso é falso como uma nota de R$ 3.
A pastoral, esplêndida obra da pediatra Zilda Arns Neumann, tem 16 anos de vida, vale-se de uma rede de 112 mil líderes comunitários e trabalha junto a 1,4 milhão de crianças em 28 mil comunidades carentes de 3.000 municípios. De uma maneira geral, em seis meses de trabalho, ela consegue derrubar à metade os indicadores das regiões miseráveis a que chega.
Ela não calcula tendências nacionais de mortalidade infantil. Calcula os índices brutos dos lugares onde atua. Trabalha com fichário, não com amostra.
A turma da dra. Zilda produz dois índices. Um registra o número de crianças mortas antes de completar um ano de vida, no universo das mulheres cuja gestação acompanhou. O outro registra os casos que só acompanhou depois do parto. Seus resultados, a partir de 1992, estão no quadro ao lado.
Quem acha que os indicadores da pastoral valem para o conjunto do país confunde rio de mel com tio do Joel. Por não ter qualificado a estatística, Malan permitiu que os números da pastoral parecessem uma coisa que não são. Citou três índices, dois dos quais não existem, mas isso pode ser relevado, pois as diferenças são pequenas. O que dói na alma é ver o ministro da Fazenda catar o índice mais baixo (o 17,6 de 1996) para lustrar sua teoria do êxito.
Os números da pastoral são magníficos. Têm a ver com o trabalho da dra. Zilda e com a ajuda que recebe do governo de FFHH. Ele dobrou-lhe os recursos e hoje lhe dá R$ 16 milhões por ano (ervanário equivalente a 1% do dinheiro dos empréstimos vencidos da banca junto ao Proer).
Se Malan quisesse argumentar com os dados do IBGE, baseados nos censos de 1980 e 1991, bem como nos PNADs de 1992 a 1995, acharia projeções diferentes. Estão aí ao lado.
A taxa nacional de mortalidade infantil, segundo a projeção do IBGE, está em 36 crianças para cada mil nascidas vivas. A confusão desse número com os do trabalho da pastoral resulta numa tunga de 49% na projeção do IBGE. Trata-se da maior e mais barata bolha de avanço social dos últimos 500 anos de vida em Pindorama.
Nos seus escritos de 1982, o professor Malan azucrinava os ""otimistas-por-dever-de-ofício" que viam crises cor-de-rosa.
Como ministro da Fazenda, diz que ""o mundo é por demais complexo para permitir essa simplória e maniqueísta divisão entre pessimistas de um lado e otimistas de outro". ""As coisas são muito mais complicadas no mundo real."
A astuciosa apropriação dos indicadores da dra. Zilda sugerem que no mundo real as coisas são mais simples.
Na hora de mexer com números que levam dinheiro para o andar de cima, o governo de FFHH sabe fazer contas. Segurou a taxa de mortalidade da banca criando o Proer e está com R$ 15,3 bilhões de dívidas vencidas, mas sustenta que fez tudo certo. Na hora de mexer com números que levam crianças para a cova, é disléxico.
Essa não é a primeira vez que o governo empulha a choldra com números da mortalidade infantil. Em agosto de 1995, os sábios de Brasília levaram FFHH a anunciar uma queda espetacular na taxa de Jaramataia, pobre município da porta do sertão alagoano. Ele disse o seguinte:
""Até o ano passado, 333 crianças, de cada mil que nasciam, morriam antes de completar um ano de idade. De janeiro para cá, este número caiu para 3. Vou repetir, é isso mesmo, caiu para 3 crianças em cada mil. Graças aos agentes comunitários de saúde."
Coisa nenhuma. Graças aos agentes de saúde, o índice caíra de 333 para 250. Repetindo, 250. Para se ter uma idéia do que isso significa, nenhum país tem números nacionais desse porte. O campeonato mundial de mortalidade infantil está com o Níger, com 191 crianças mortas para cada mil nascidas vivas. FFHH leu números que, se fossem verdadeiros, teriam dado a Jaramataia uma taxa de mortalidade infantil melhor que a do Canadá, dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.
As coisas são cruelmente simples. Malan e FFHH não fornecem ambiguidades e absurdos desse tipo à banca. Se anunciassem uma taxa de juros de 5% ao ano ou um crescimento de 10% do PIB, seriam considerados ridículos. Quando lidam com o quadro social do país, propagam astúcias e absurdos porque, nesse campo, Deus os poupou do sentimento do ridículo.

A História do Brasil, no grampo da Casa Branca

O telegrama da CIA de 30 de março de 1964, contando o que ouviu: ""Goulart precisa ser deposto, e depressa"
A historiografia brasileira deve mais uma ao professor Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil de 1961 a 1967.
Ele teve a gentileza de obter e traduzir o texto de dois telefonemas do presidente Lyndon Johnson, dos dias 30 e 31 de março de 1964. Foram publicados pelo repórter Carlos Eduardo Lins da Silva, juntamente com um artigo do embaixador, na Folha de S.Paulo. Gordon contesta uma afirmação de Ronaldo Costa Couto, em seu livro ""História Indiscreta da Ditadura e da Abertura".
Segundo Costa Couto, um telefonema do presidente Lyndon Johnson ao seu assessor de imprensa mostra que o governo americano sabia, na noite de 30 de março de 1964, que haveria uma rebelião militar no Brasil. Na manhã seguinte, o general Olympio Mourão Filho rebelou-se em Juiz de Fora e, no dia 1º de abril, o presidente João Goulart estava deposto. Segundo Costa Couto, Johnson fora avisado pela CIA.
O embaixador sustenta que na noite do dia 30, não sabia o que aconteceria na manhã seguinte. É categórico: ""Não houve planejamento conjunto com os golpistas". Reafirma também que a força naval americana mandada para o litoral brasileiro só foi ativada depois do início do levante.
Só a essência democrática da sociedade americana, que dá acesso a boa parte de seus documentos secretos e aos grampos (voluntários e deliberados) de seus presidentes, permitem uma discussão desse tipo.
Gordon sabia que Mourão Filho se rebelaria no dia 31 de março? Os documentos indicam que não. Nem ele, nem o general Castello Branco, oficial de maior nível hierárquico da conspiração.
A CIA sabia? Sabia pelo menos o seguinte:
1) segundo seu homem em Belo Horizonte, um dos conspiradores informara que ""o presidente Goulart deve ser deposto, e depressa" (telegrama da estação da CIA, do dia 30 de março);
2) ""Duas fontes ativas no movimento contra Goulart dizem que o golpe contra o seu governo deve vir em 24 horas" (telegrama da estação da CIA em São Paulo, do dia 30 de março).
Essas informações podem ter chegado a Johnson no mesmo dia? Sim.
As fitas que o embaixador obteve (como cidadão, por US$ 5,00) informam que às 21h35 (hora de Washington), depois de uma conversa telefônica com Gordon e de uma reunião com assessores, ""incluindo a CIA", o secretário de Estado Dean Rusk disse ao presidente Johnson o seguinte:
""A crise vai chegar ao auge nos próximos um ou dois dias, talvez até mesmo de hoje para amanhã. (...) A coisa pode estourar a qualquer momento."
Uma hora depois, Johnson alertou seu assessor de imprensa. Se o golpe brasileiro estourasse, deveria seguir para Washington: ""Se estourar hoje à noite, você saberá pela manhã".
Gordon sustenta que foi o seu telefonema, e não as informações que a CIA possa ter passado a Rusk, que produziu esse clima de urgência.
O telefonema do secretário de Estado a Johnson leva água para a interpretação oposta. Foram as informações da CIA que deram a Rusk a sensação de que ""a coisa pode estourar a qualquer momento". Nesse aspecto, o embaixador parece estar enganado.
Ele está certo quando diz que não havia um planejamento que ligasse o gesto do general Mourão Filho à Embaixada americana. Nisso, tem o amparo da documentação conhecida.
Havia ""planejamento conjunto com os golpistas"? Algum, genérico, havia. Por volta do dia 15 de março, o empresário paulista Alberto Byington pediu ao governo americano, em Washington, que abastecesse os revoltosos com gasolina. (O general Cordeiro de Farias faria o mesmo pedido, no Brasil, ao adido militar, Vernon Walters.)
No dia 20 de março, numa reunião na Casa Branca, presidida por Johnson, acertara-se que, na eventualidade de uma conflagração, os americanos mandariam uma força-tarefa ao Brasil, para ""mostrar a bandeira". Nessa reunião, o chefe da CIA, John McCone, mencionou o pedido de Byington e decidiu-se incorporar alguns petroleiros à frota. Só depois, conforme revela o embaixador, resolveram embarcar também 110 toneladas de armas e munições.
No dia 27 de março, de volta ao Brasil, Gordon reiterou o pedido de formação da força-tarefa. Ele insiste: em nenhum momento pediu tropas. Se alguém pediu, não lhe contaram. Não há documento capaz de sustentar que os americanos tenham mobilizado tropas combatentes.
A frota só começou a ser armada às 13h30 do dia 31 de março, numa reunião na Casa Branca. Nessa hora, João Goulart estava no Palácio das Laranjeiras e o seu temido ""dispositivo militar" não sabia direito o que estava acontecendo. Haviam telefonado para Juiz de Fora e foram informados que não havia levante algum. O general Mourão estava sublevado, mas tinha ido dormir depois do almoço.
Quando Mourão acordou, a frota já tinha ordem para zarpar em direção a Santos. Chamou-se Operação Brother Sam. Era capitaneada pelo porta-aviões Forrestal e composta por seis contratorpedeiros, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado e quatro petroleiros que traziam 553 mil barris de combustível. Foi desativada pouco depois do meio-dia de 2 de abril. João Goulart já estava deposto. Na noite de 31 de março, o deputado San Tiago Dantas dissera a Goulart que ele corria o risco de sofrer uma intervenção militar americana, mas essa história toda só foi conhecida em 1977, quando o repórter Marcos Sá Correa descobriu os documentos do período, na Biblioteca Lyndon Johnson, no Texas.


Texto Anterior: Celso Pinto: O calote é inevitável?
Próximo Texto: Treinamento: Caderno sobre trabalho voluntário encerra curso
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.