São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

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CRÍTICA

O giro em falso do país e o peão que chegou lá

DA REDAÇÃO

"Entreatos", de João Moreira Salles, e "Peões", de Eduardo Coutinho, são dois grandes documentários, muito diferentes entre si, mas complementares quando vistos em conjunto -o que justifica e recomenda a sua exibição intercalada, prevista pelos diretores. O contraste entre os filmes é cruel para Lula e para o PT.
"Peões" é uma espécie de crônica da derrota histórica de uma geração -a geração de Lula, ou, sendo mais exato, a geração JK, aquela que deixou sua terra e chegou a São Paulo atraída pelo sonho de prosperidade armado em torno da indústria automobilística. São os cacos da utopia juscelinista que aparecem nos depoimentos de 35 ex-companheiros de Lula no ABC paulista.
Eduardo Coutinho vai buscá-los pelo país. Começa a encontrá-los pelo interior do Ceará, para onde voltaram alguns. Em Várzea Alegre, Joaquim chama Lula de "segundo pai". Diz que sem a aposentadoria da fábrica estaria recebendo R$ 200 e não teria seu jumento. Está há quatro anos no lugar onde nasceu, mas conta ao entrevistador que está "passando uns dias" no interior do Ceará. Sua cabeça e sua história estão no ABC.
Os relatos se sucedem, muito ricos nos detalhes e em vários momentos comoventes. O quadro geral é melancólico, mas eles relutam em se ver como fracassados. E têm sua razão: o fracasso não é deles, mas do país. Pode-se dizer que ali nenhum dos personagens, a não ser Lula, deu certo na vida.
Todos têm nas greves de 1979 e 1980 as grandes referências de suas existências. Falam como se tivessem tido o privilégio de participar de uma batalha épica.
João Chapéu virou taxista. Diz que sua vida "é uma novela" e que as coisas mais lindas do mundo são "dançar e o sindicalismo". Sua mulher, que reluta em ser filmada, reprova o marido idealista.
Há outros personagens fascinantes em "Peões". Luiza, responsável pela lanchonete do sindicato, lembra que Lula bebia demais, ressalvando que precisa dizer isso "em voz baixa".
Miguel virou cobrador de ônibus depois fracassar como microempresário. "Montei um salão de forró. Queria o meu negócio. Não deu certo", conta ele, que tinha um conjunto musical chamado Os 7 Nordestinos e diz ter sido elogiado um dia pelo próprio Luiz Gonzaga.
Eduardo Coutinho intercala os depoimentos com cenas de filmes realizados sobre as greves e imagens do próprio Lula em ação, despontando como grande liderança política, apesar do relativo fiasco da greve de 1979, que o filme registra.
É um choque de contraste assistir "Entreatos" depois de "Peões". Choque realçado pelo fato de que Lula pode ter mudado muito, mas é fundamentalmente a mesma pessoa de 25 anos atrás. Tem orgulho de ser um deles, de ser mais um "peão".
Não se trata, portanto, de uma traição pessoal, mas de algo muito mais profundo e complexo. Sintomaticamente, ambos os filmes calam sobre os 25 anos que ligam o ABC à vitória do PT em 2002. A última imagem de "Entreatos" mostra Lula cercado por jornalistas no dia da vitória. Ele sai de cena para entrar na história. Ou seria o contrário? (FBS)


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