São Paulo, domingo, 12 de dezembro de 2004

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ELIO GASPARI

A memória dos desgraçados é implacável

Essa é a mais famosa fotografia do Gueto de Varsóvia. O garoto do boné chama-se Tsvi Nussbaum. (Ou melhor, Tsvi Nussbaum diz que é o garoto do boné.) Casou-se e teve quatro filhas e duas netas. Seus pais haviam vivido na Palestina e decidiram retornar à Polônia antes da guerra. Tinha sete anos quando foi preso, semanas depois do levante do gueto. Ele foi mandado para o campo de concentração de Bergen-Belsen onde estava à morte quando os Aliados chegaram. Em 1945, Tsvi desembarcou na Palestina e lá presenciou a criação do Estado de Israel. Emigrou para os Estados Unidos, formou-se em medicina (otorrino) e clinica em Rockland, ao norte de Nova York. Mais uma boa notícia: o soldado da metralhadora chamava-se Josef Blösche, vulgo Frankenstein. Foi passado nas armas.

Numa das saudáveis humilhações impostas por Lula ao tucanato, foi ao lixo a Lei da Venda, baixada pelo professor Fernando Henrique Cardoso nos últimos instantes do seu governo. A providência dobrara todos os prazos de blindagem dos documentos oficiais, inclusive aqueles que guardam a memória da privataria posterior a 1995.
A devolução aos brasileiros do direito de saber o que faz o governo aconteceu numa semana em que seis folhas de papel guardadas há cerca de 30 anos num museu de Israel devolveram ao mundo a percepção do valor da memória dos desgraçados.
Nos anos 70, um sobrevivente do Holocausto, Adolf-Abraham Berman, doou a uma comunidade de Israel sua coleção de documentos da história do Gueto de Varsóvia. Lá, em 1940, 400 mil judeus foram confinados numa área equivalente à do Flamengo. Em 1943 estavam quase todos mortos. Só agora percebeu-se que nas seis páginas manuscritas estava o único diário escrito por um judeu do gueto durante a batalha de 27 dias que terminou com a sua destruição, em 16 de maio de 1943. Não se sabe o nome de quem o escreveu. Foi uma mulher de boa educação. Tinha cerca de 20 anos e estava escondida no porão de um prédio arruinado. A narrativa começa com o ataque alemão e vai até o dia 2 de maio. Sua última anotação foi: "Nós vivemos este dia, esta hora, este momento".
Numa história com tamanha carga emocional, ainda há o que relembrar.
Adolf-Abraham Berman (1906-1978) foi um dos chefes da organização dos combatentes do gueto. Ele e sua mulher viviam com nomes falsos no outro lado da cidade e coordenavam a ajuda e o resgate dos judeus. Para quem viu "O Pianista", era a organização de Berman que conseguia esconderijos para personagens como o de Roman Polanski. Depois da guerra, ele foi eleito para o Parlamento de Israel e buscou a história do gueto.
Um dos judeus resgatados pela rede de Berman e escondido no lado ariano de Varsóvia chamava-se Emmanuel Ringelblum. Sem que se possa dizer que a moça do diário o conhecesse, era ele quem coordenava o esforço de uma sociedade secreta de historiadores do gueto. Eram algumas dezenas, com uma comissão editorial que coordenava grupos de trabalho encarregados de trabalhos monográficos: "Com um pouco de sossego nós poderemos conseguir que nada do que acontece aqui seja esquecido pelo mundo", escreveu Ringelblum. Produziram cem volumes de manuscritos. Ele escreveu um diário e diversos ensaios, um deles sobre a resistência armada.
Ringelblum foi um dos grandes homens do seu tempo. Em agosto de 1939, quando os alemães invadiram a Polônia, ele estava na Suíça, num congresso sionista. Tinha 39 anos, mulher e um filho de sete. Era um historiador respeitado em seu país. Diversos colegas seguiram para a Palestina ou para os Estados Unidos. Ringelblum ficou no grupo que voltou para Varsóvia. Viveu no gueto até fevereiro de 1943, quando passou a esconder-se no lado ariano da cidade.
Tendo sido um dos organizadores do levante dos judeus, juntou-se ao seu povo na véspera da revolta. Capturado, foi para um campo de concentração, de onde viu-se resgatado pela sociedade secreta de Berman. Durante dez meses viveu com outras 37 pessoas num porão das ruínas do gueto. Em janeiro de 1944 o governo polonês no exílio organizou uma lista de 19 chefes de organizações clandestinas que deveriam ser retirados da Polônia. Só três estavam vivos. Um deles era Ringelblum. Todos recusaram a oferta. Em março o porão foi descoberto.
Há duas histórias para um só desfecho. Numa, Ringelblum poderia ter escapado da prisão, mas se recusou a deixar a família. Noutra, ele, a mulher e o filho foram torturados para contar onde estavam os arquivos da sociedade secreta de historiadores. Foram fuzilados no dia 7 de março de 1944.
Em setembro de 1946 um dos poucos sobreviventes da brigada de Ringelblum localizou o esconderijo de dez caixas de metal com uma parte da história do gueto. Quatro anos depois, trabalhadores de uma obra encontraram dois grandes recipientes de borracha usados à época para transportar leite. Era outro pedaço do arquivo. Ao todo, juntaram-se 30 mil folhas de papel, fotografias e desenhos. Um dos recipientes de borracha pode ser visto no museu do Holocausto, em Washington.

Certeza
Em pelo menos uma ocasião, amigos de Lula surpreenderam-se ao ouvi-lo contar que coisas estranhas (e boas) acontecem à sua volta.
No caso, ele mencionava a recuperação do ministro Luiz Gushiken, que no início de 2002 se submeteu a uma cirurgia de extração de um câncer do estômago, padeceu uma septicemia e deu a volta por cima.

Maldição da base
Roberto Freire, presidente do PPS, não quer mal ao governo. Ele prefere que o seu partido fique longe da base de apoio do governo por medida de segurança.
Desde que o PMDB abriu suas negociações com o Planalto é razoável temer que qualquer dia desses a Polícia Federal lance a Operação Pirâmide.
Como se sabe, a turma do Queops gostava de guardar tesouros na base.

Grande futuro: importar IBMs chineses
A empresa chinesa Lenovo comprou por US$ 1,25 bilhão a divisão de computadores pessoais da IBM. Isso na semana em que a Câmara aprovou a medida provisória de Lula que estendeu até 2019 a escala de redução do IPI para os fabricantes (ou maquiladores) nacionais. Os çábios das políticas industriais brasileiras podem ter as mais variadas explicações para esses dois fatos. Para a patuléia, vale a pena revisitar as bobagens impostas ao país por conta do que seria uma independência tecnológica e resultaram na criação de um baronato retardatário.
A Lenovo surgiu em 1984, em Pequim, com o nome de Legend. Funcionava num barracão e vendia máquinas IBM e HP. Nesse mesmo ano, sob os aplausos da Fiesp, criou-se em Pindorama uma reserva de mercado para produtores nacionais, prorrogando-se o fechamento das fronteiras brasileiras aos fabricantes estrangeiros.
A reserva de mercado era justificada em nome de um futuro grandioso. Com um pé na Presidência da República, Tancredo Neves dizia: "Um país que não pode controlar os seus serviços de informática estará condenado a se transformar numa subnação".
Tratando do fluxo internacional de informações (hoje conhecido como internet), o senador Severo Gomes advertia: "É questão de primeira grandeza. (...) Está na hora de conceituarmos, para a defesa dos nossos interesses, a informação como mercadoria, regida pelo direito comercial, de forma que possamos controlar os fluxos comerciais de informação". Isso mesmo, controlar download.
O presidente da Associação das Indústrias Brasileiras de Computadores, Edson Fregni, era categórico: "Nós achamos inaceitável para o Brasil exportar café e açúcar e importar computadores".
Bingo. Passaram-se 20 anos e o Brasil exporta grãos e pedras (soja e minério) para a China, importando produtos eletrônicos e manufaturados. Em breve, vai importar também computadores IBM.
A turma da reserva de mercado e o baronato cevado pelas leis de proteção industrial anacrônicas, clientelistas e cartoriais conseguiram uma proeza: desenharam uma política para enfrentar os países desenvolvidos tecnológica e industrialmente e conseguiram ser superados pela China, que nos anos 80 estava na idade da pedra lascada da ressaca maoísta.
Inventaram a roda que só anda para trás.

Aula magna
O comissariado petista deveria reunir estudantes de administração de empresas para expor sua estratégia na área dos transportes aéreos.
Uma empresa quebrada deve US$ 2,2 bilhões à Viúva, e o governo quer juntá-la às duas concorrentes, a TAM e a Gol, que não estão falidas nem querem abraço de afogado.
O economista austríaco Alois Schumpeter (1883-1959) viu na "destruição criativa" um ingrediente saudável do capitalismo. Os comissários de Lula trabalham com uma novidade: a associação destrutiva pela qual prejudica-se o melhor para preservar o pior.
A Gol colocou o governo numa posição ridícula. Pediu isonomia de calotagem à Infraero. Como a Varig deve R$ 132 milhões e recebeu uma oferta de um ano de alívio, a Gol, que paga em dia, pediu seis meses de refresco à Novacap petista.

É mais
O rombo do Banco Santos passa dos R$ 700 milhões revelados nos dias seguintes à intervenção. É coisa de mais R$ 1 bilhão.

O debate do aborto é um bom teste para os tucanos
A decisão do governo de Lula de abrir o debate em torno da questão do aborto, além de ser uma medida civilizatória, terá a propriedade de chamar os tucanos às falas.
Ninguém precisa ser a favor do aborto, muito menos os católicos. Como já ensinou Carlos Heitor Cony, "ser católico não é para quem quer, mas para quem pode". A encíclica Humanae Vitae, por exemplo, proíbe as mulheres católicas de tomar pílulas anticoncepcionais. O Brasil pode discutir o direito das mulheres sobre a sua própria reprodução. O professor Lawrence Tribe, um dos maiores juristas da Faculdade de Direito de Harvard, já advertiu que esse tema gera "um choque de absolutos".
Para as pessoas radicalmente contra a idéia (católicos ou não), um debate desses pode levar à legalização do aborto, assassinato de fetos. Para os defensores, trata-se de dar às mulheres direitos de escolha sobre suas funções reprodutivas.
Todo o tucanato cosmopolita é favorável ao direito de escolha. Fogem do assunto para evitar a poderosa contrariedade da igreja. A dúvida é saber se esses tucanos vão se manifestar de acordo com suas convicções ou se preferirão ver o melhor pedaço do PT sendo frito nas suas virtudes.
Para quem teme a briga com a igreja, vale o registro de que há na sua retórica algo da plástica dos dragões de biombo. Em 1953 o cardeal Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota dizia que, "se alguém instituir o divórcio no Brasil, temos o direito e o dever de pegar em armas contra ele". Em 1974 o povo italiano instituiu o divórcio, e nenhum cardeal saiu de revólver pelas ruas de Roma. O Congresso brasileiro instituiu o divórcio em 1977. Ninguém pegou em armas, e a própria contrariedade desapareceu aos poucos. Desde então, a igreja nunca mais se mobilizou contra o divórcio.


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