São Paulo, domingo, 12 de dezembro de 2004

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NO PLANALTO

Burocracia petista vive síndrome antidarwinista

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Antes da posse de Lula disseminou-se o medo dos pendores extremistas do petismo. Depois, confirmaram-se as piores expectativas. O ex-PT revelou-se extremamente conservador.
Conservou o conservadorismo econômico à FHC; conservou o imobilismo social; conservou o toma-lá-dá-cá; conservou até o hábito de desfrutar de todas as regalias que o dinheiro do contribuinte puder comprar.
O burocrata de mostruário, de esquerda ou de direita, dificilmente escapa à síndrome do antidarwinismo, mal típico de Brasília. O sujeito inicia a trajetória na cidade como reles bípede. E vai evoluindo até ficar de quatro. De quatro rodas.
Nenhuma tentação é mais insidiosa do que a do carro oficial. Entre os seduzidos está, por exemplo, o petista Élvio Lima Gaspar, secretário-executivo-adjunto do Ministério do Planejamento. Usufrui de um Astra preto, ano 2002. Exceto pela chapa branca (JFP 3684), nada associava o veículo ao serviço público. Até o dia em que...
Até o dia em que se soube que faltava algo aos carros oficiais do Planejamento. Tendo comprado seis veículos novos, o ministério enviou a frota para o emplacamento. O Detran negou-se a licenciar os veículos. Alegou que tinham que exibir nas laterais a inscrição "Governo Federal".
A exigência está expressa no Código de Trânsito Brasileiro. Reza o parágrafo 1º do artigo 120 que veículos oficiais só podem ser registrados se estiverem "com a indicação expressa, por pintura nas portas, do nome, sigla ou logotipo do órgão ou entidade" a que pertencem.
Em outro trecho (artigo 237), o código enquadra a desobediência à norma como "infração grave". Sujeita às penas de retenção do veículo, multa de R$ 127,69 e inscrição de cinco pontos na carteira do condutor.
Luiz Carlos da Silva, chefe da garagem do Planejamento, comunicou o fato a seus superiores. Os carros do ministério, novos e velhos, trafegavam à margem da lei. Obteve autorização para corrigir a falha. Providenciaram-se adesivos redentores.
As tiras de plástico foram afixadas nos carros do ministério há 17 dias, em 26 de novembro. Anotam "Governo Federal" em letras amarelas, vazadas sobre fundo azul.
Ao deparar com a novidade, o secretário-adjunto Élvio Lima Gaspar abespinhou-se. Testemunhas contam que o companheiro arrancou, ele mesmo, o adesivo da porta do passageiro. E determinou ao seu motorista a remoção do plástico colado na outra porta.
Decorridos mais três dias, o "Diário Oficial" da União publicou, em 29 de novembro, a exoneração de Luiz Carlos da Silva, o chefe da garagem. O ato saiu na página 29 da seção dois. Assina-o o próprio Élvio.
Na última terça-feira, o repórter discou para o companheiro Élvio. Sua secretária indicou o caminho da assessoria de imprensa. Obediente, o repórter expôs ao assessor Carlos Alberto de Azevedo o quadro que resultara de sua apuração.
O assessor de imprensa replicou: "Todos os carros do ministério estão identificados". Não era bem assim. O repórter-fotográfico Lula Marques acabara de clicar o Astra do secretário-adjunto. Trazia as portas lisas. Caso único em todo o ministério. Renovou-se o pedido de entrevista com Élvio.
Na tarde de quarta, o assessor Carlos Alberto voltou ao repórter. Conversara com Élvio. Ele estranhou que um tema "tão sem importância" despertasse tamanho interesse. Alegou que desconhecia a norma que impõe a identificação dos veículos.
Porém, diante do alerta do Detran, deu ordens expressas para que todos os carros fossem convenientemente identificados. Exonerou Luiz Carlos, o chefe da garagem, porque ele teria falhado ao não atentar para a exigência legal.
"Outros motivos" pesaram em favor da exoneração, esclareceu Carlos Alberto. Quais?, quis saber o repórter. "Ah, o Élvio não me falou. Ele disse que tinha uma porrada de erros aí. Era um cara que vivia falando contra o PT, tinha língua muito comprida."
O repórter retomou o fio da meada. Por que, afinal, só o carro do companheiro Élvio continuava trafegando sem identificação. E Carlos Alberto: "Eu disse a ele. Seu carro ainda está sem. Ele disse: "Ôpa, eu nunca reparei, vamos lá ver". Está confeccionando, enfim...".
O repórter insistiu. Mas se o próprio Élvio ordenou a fixação de adesivos em todos os carros, por que só o dele cintila como exceção? "Isso é uma coisa que tenho que apurar pra você", respondeu Carlos Alberto. "Vou esperar ele chegar e te dou retorno. Você fala com ele."
Como não houve novo contato, o repórter voltou a procurar o companheiro Élvio no final da tarde de quinta-feira. "Está em reunião fora do ministério", informou-se em seu gabinete. "Quando ele chegar, telefona de volta." Não telefonou.
Súbito, o Astra renitente passou a deslizar pelo asfalto de Brasília com os dizeres "Governo Federal" grudados nas portas. Nem foi preciso mandar confeccionar. Havia adesivos de sobra no Ministério do Planejamento.
Luiz Carlos, o exonerado, ainda dá expediente na garagem, um setor que chefiava havia sete anos. A destituição do comando custou-lhe uma gratificação de R$ 800. Ingressou no serviço público em 1977, por concurso. Procurado, não quis falar. Seus colegas contam que, por ora, ninguém se dignou a informar a ele as razões da exoneração.
O extremismo conservador do ex-PT recua aos padrões do Brasil colônia. Um tempo em que o sinhozinho da casa-grande, apto a ocupar postos graduados na administração pública e a ganhar sesmarias, encarava com soberba a bugrada, sempre às voltas com "temas sem importância". Impolutos, não se achavam devedores de nada. Muito menos de explicações.


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