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NO PLANALTO
Burocracia petista vive síndrome antidarwinista
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Antes da posse de Lula disseminou-se o medo dos
pendores extremistas do petismo.
Depois, confirmaram-se as piores
expectativas. O ex-PT revelou-se
extremamente conservador.
Conservou o conservadorismo
econômico à FHC; conservou o
imobilismo social; conservou o toma-lá-dá-cá; conservou até o hábito de desfrutar de todas as regalias que o dinheiro do contribuinte puder comprar.
O burocrata de mostruário, de
esquerda ou de direita, dificilmente escapa à síndrome do antidarwinismo, mal típico de Brasília. O sujeito inicia a trajetória na
cidade como reles bípede. E vai
evoluindo até ficar de quatro. De
quatro rodas.
Nenhuma tentação é mais insidiosa do que a do carro oficial.
Entre os seduzidos está, por exemplo, o petista Élvio Lima Gaspar,
secretário-executivo-adjunto do
Ministério do Planejamento.
Usufrui de um Astra preto, ano
2002. Exceto pela chapa branca
(JFP 3684), nada associava o veículo ao serviço público. Até o dia
em que...
Até o dia em que se soube que
faltava algo aos carros oficiais do
Planejamento. Tendo comprado
seis veículos novos, o ministério
enviou a frota para o emplacamento. O Detran negou-se a licenciar os veículos. Alegou que tinham que exibir nas laterais a
inscrição "Governo Federal".
A exigência está expressa no
Código de Trânsito Brasileiro. Reza o parágrafo 1º do artigo 120
que veículos oficiais só podem ser
registrados se estiverem "com a
indicação expressa, por pintura
nas portas, do nome, sigla ou logotipo do órgão ou entidade" a
que pertencem.
Em outro trecho (artigo 237), o
código enquadra a desobediência
à norma como "infração grave".
Sujeita às penas de retenção do
veículo, multa de R$ 127,69 e inscrição de cinco pontos na carteira
do condutor.
Luiz Carlos da Silva, chefe da
garagem do Planejamento, comunicou o fato a seus superiores.
Os carros do ministério, novos e
velhos, trafegavam à margem da
lei. Obteve autorização para corrigir a falha. Providenciaram-se
adesivos redentores.
As tiras de plástico foram afixadas nos carros do ministério há 17
dias, em 26 de novembro. Anotam "Governo Federal" em letras
amarelas, vazadas sobre fundo
azul.
Ao deparar com a novidade, o
secretário-adjunto Élvio Lima
Gaspar abespinhou-se. Testemunhas contam que o companheiro
arrancou, ele mesmo, o adesivo
da porta do passageiro. E determinou ao seu motorista a remoção do plástico colado na outra
porta.
Decorridos mais três dias, o
"Diário Oficial" da União publicou, em 29 de novembro, a exoneração de Luiz Carlos da Silva, o
chefe da garagem. O ato saiu na
página 29 da seção dois. Assina-o
o próprio Élvio.
Na última terça-feira, o repórter
discou para o companheiro Élvio.
Sua secretária indicou o caminho
da assessoria de imprensa. Obediente, o repórter expôs ao assessor Carlos Alberto de Azevedo o
quadro que resultara de sua apuração.
O assessor de imprensa replicou:
"Todos os carros do ministério estão identificados". Não era bem
assim. O repórter-fotográfico Lula
Marques acabara de clicar o Astra do secretário-adjunto. Trazia
as portas lisas. Caso único em todo o ministério. Renovou-se o pedido de entrevista com Élvio.
Na tarde de quarta, o assessor
Carlos Alberto voltou ao repórter.
Conversara com Élvio. Ele estranhou que um tema "tão sem importância" despertasse tamanho
interesse. Alegou que desconhecia
a norma que impõe a identificação dos veículos.
Porém, diante do alerta do Detran, deu ordens expressas para
que todos os carros fossem convenientemente identificados. Exonerou Luiz Carlos, o chefe da garagem, porque ele teria falhado
ao não atentar para a exigência
legal.
"Outros motivos" pesaram em
favor da exoneração, esclareceu
Carlos Alberto. Quais?, quis saber
o repórter. "Ah, o Élvio não me falou. Ele disse que tinha uma porrada de erros aí. Era um cara que
vivia falando contra o PT, tinha
língua muito comprida."
O repórter retomou o fio da
meada. Por que, afinal, só o carro
do companheiro Élvio continuava trafegando sem identificação.
E Carlos Alberto: "Eu disse a ele.
Seu carro ainda está sem. Ele disse: "Ôpa, eu nunca reparei, vamos
lá ver". Está confeccionando, enfim...".
O repórter insistiu. Mas se o
próprio Élvio ordenou a fixação
de adesivos em todos os carros,
por que só o dele cintila como exceção? "Isso é uma coisa que tenho que apurar pra você", respondeu Carlos Alberto. "Vou esperar ele chegar e te dou retorno.
Você fala com ele."
Como não houve novo contato,
o repórter voltou a procurar o
companheiro Élvio no final da
tarde de quinta-feira. "Está em
reunião fora do ministério", informou-se em seu gabinete.
"Quando ele chegar, telefona de
volta." Não telefonou.
Súbito, o Astra renitente passou
a deslizar pelo asfalto de Brasília
com os dizeres "Governo Federal"
grudados nas portas. Nem foi preciso mandar confeccionar. Havia
adesivos de sobra no Ministério
do Planejamento.
Luiz Carlos, o exonerado, ainda
dá expediente na garagem, um
setor que chefiava havia sete
anos. A destituição do comando
custou-lhe uma gratificação de
R$ 800. Ingressou no serviço público em 1977, por concurso. Procurado, não quis falar. Seus colegas contam que, por ora, ninguém se dignou a informar a ele
as razões da exoneração.
O extremismo conservador do
ex-PT recua aos padrões do Brasil
colônia. Um tempo em que o sinhozinho da casa-grande, apto a
ocupar postos graduados na administração pública e a ganhar
sesmarias, encarava com soberba
a bugrada, sempre às voltas com
"temas sem importância". Impolutos, não se achavam devedores
de nada. Muito menos de explicações.
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