São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2002

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NO PLANALTO

Usina de açúcar paga R$ 800 mil por atestados de filantropia

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A Promotoria de Justiça paulista recebeu na quinta-feira gravação cujo conteúdo é intrigante. Escutando-a descobre-se o seguinte: sob fachada de fundação social, uma usina de açúcar cinquentenária de São Paulo pagou R$ 800 mil a um advogado de Brasília para obter dois certificados: o de utilidade pública, do Ministério da Justiça, e o de filantropia, emitido pelo CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social), da pasta da Previdência.
Os papéis mantiveram a usina no adocicado mundo da isenção de tributos, que frequenta desde a década de 60. Hoje, estima-se que quantias superiores a R$ 2,5 milhões deixem de cruzar anualmente os guichês de Everardo Maciel e da própria Previdência.
Pela lei, é filantrópica a entidade que aplica 20% de sua receita em caridade. Um troféu que a contabilidade da usina não conseguia exibir. Contratado, o advogado brasiliense ajeitou números, manuseou rubricas. Súbito, balanços já publicados ressurgiram com dispêndios "sociais" turbinados. Embora exibisse a transparência de uma poça barrenta, a escrituração foi engolida por Brasília.
Chama-se Fundação de Assistência Social Sinhá Junqueira a beneficiária da manobra. Está sediada no número 2.883 da rua Augusta. Controla usina e fazendas no interior de São Paulo. Sua receita anual roça os R$ 70 milhões. Dava emprego a 1.200 pessoas. No ano passado, pôs na rua 249.
A usina se meteu numa briga com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias do Açúcar de Igarapava, Mário Sérgio Ferreira. É graças à contenda que o caso, trançado à sombra, começa a tomar banho de luz.
Mário Sérgio obteve cópia de uma pauta de reunião realizada pela diretoria da fundação. Está datada de 7 de julho de 2000. E anota os entendimentos mantidos com o escritório de advocacia Thompson Flores, Rader e Nazário.
O certificado da Justiça foi orçado em R$ 250 mil. O da Previdência, em R$ 550 mil. O texto da pauta obtida pelo sindicalista estabelece relação direta entre a grana e o objeto de desejo da usina: "O certificado relativo ao triênio 94/97 já foi obtido. E o do triênio 97/2000 aguarda publicação, que foi adiada face à falta de recursos para o pagamento do saldo devedor do nosso contrato com o doutor [Thompson" Flores [..."". O certificado filantrópico saiu. Melhor: há dois meses, o CNAS renovou-o até 2003.
Como a pauta não estivesse assinada, o sindicalista Mário Sérgio foi à cata de prova mais robusta. Munido de minigravador, esteve no final do ano com o advogado Josué Henrique Castro, funcionário da fundação que conduziu o acerto com a banca de Brasília.
Sem saber do minigravador, oculto sob a roupa do interlocutor, Josué se deixou levar pelo diálogo. Em dado instante, exibindo a pauta, Mário Sérgio convidou-o a ler um trecho. Depois, pespegou: "O que é que você entendeu? R$ 800 mil".
E Josué: "Uai, que o certificado saiu".
Mário Sérgio: "Não foi isso que eu perguntei para você".
Josué: "Por conta da atuação desse Thompson Flores aqui".
Mário Sérgio: "Foi R$ 800 mil".
Josué: "Foi R$ 800 mil".
Mário Sérgio: "Você acha que, se a usina estivesse normal, tranquilo, certinho, precisaria gastar esses R$ 800 mil para esse lobista conseguir isso aí [..."?".
Josué: "Só que teve um trabalho aqui. E é feito um contrato. Tem uns técnicos lá em Brasília que acertaram a contabilidade para poder obter o certificado".
Mário Sérgio: "Fizeram uma maquiagem".
Josué: "É... uma coisa assim".
[..."
Mário Sérgio: "[..." Eu não sei usar o termo técnico. Vai me desculpar. O linguajar meu é linguajar de sindicalista. Mas é verdade que esses R$ 800 mil foram passados para técnico vir aqui fazer uma meleca toda..."
Josué: "Foi, foi".
No papel, a fundação tirou de letra os tais 20% de caridade. Fora deles... Ouça-se o que disse Josué no diálogo com Mário Sérgio, aqui reproduzido sem correções: "Agora, pra eu te dizer que ela aplica ou não aplica, realmente eu não consigo dizer".
No curso do colóquio, como que desconfiado, Josué tentou amenizar as inconfidências. Disse que a mexida nos livros da fundação resultou em mera readequação de rubricas. "Não estava irregular."
Josué deixou a Fundação Sinhá Junqueira em agosto, rompendo relação trabalhista de 12 anos. Mora agora em Uberaba (MG). Ouvido, reconheceu o envolvimento nas tratativas. Segundo ele, fez-se mera "adequação das contas da fundação, um trabalho técnico". Não houve "criação de números nem politicagem".
Por que Thompson Flores? "Já tinha feito trabalhos dessa natureza. Teve resultados em outras entidades. Não sei se tem contatos no conselho [CNAS". Sei dizer que o trabalho é eminentemente técnico."
Alojado num escritório situado em fino shopping center de Brasília, o advogado Francisco Thompson Flores nada declarou. Segundo ele, só o pai, Paulo Thompson Flores, em viagem de férias, poderia comentar. Prometeu contactá-lo. Anotou o telefone do signatário. Mas não ligou de volta. Procurado nove vezes, não atendeu.
A fita com o registro da voz de Josué integra uma representação feita por Mário Sérgio na Promotoria de Justiça de Fundações do Ministério Público do Estado de São Paulo. Em resposta, advogados da Sinhá Junqueira redigiram ofício em que insinuam que o acusador estaria a serviço da concorrência. "[..." Homens de negócio instrumentalizam sindicalistas de negócio [..."."
Procurada 11 vezes entre terça e sexta-feira, a presidente da Fundação Sinhá Junqueira, Maria Luíza Scarano Rocco, optou pelo silêncio. Informado, o ministro Roberto Brant (Previdência) determinou a revisão dos processos que resultaram na emissão do certificado sob suspeita.
Depois de desqualificar fiscais sob seu comando e de propor ao Planalto trégua a universidades e hospitais filantrópicos com números fora de esquadro, Brant se mexe. Alvíssaras.


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