São Paulo, quarta-feira, 13 de março de 2002

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ELIO GASPARI

Mensagem de jk@peixevivo.gov para FFHH

O Sérgio Motta acabou de me contar que você reclamou do FMI tratar as nossas autoridades "como se alguns de nós fôssemos analfabetos". Alguns não, caro amigo: nós todos.
Aqui onde estamos, o cavaleiro de Villegagnon só me distingue porque o Di Cavalcanti disse a ele que eu pretendo comê-lo grelhado, à moda dos nossos patrícios aí das cercanias do Palácio do Catete, que almoçaram alguns franceses de seu grupo. O Sérgio Motta deu para elogiar as pernas do bispo Sardinha e ele sumiu por uns tempos. Ficou com medo de que as coma de novo.
Fernando, acredite, a única coisa que nos faz respeitáveis por aqui é o fato de já termos comido algumas centenas deles.
Quando eu briguei com o FMI, você tinha 28 anos e aplaudiu. Depois, mudou de turma. Essa boa alma que é o Vilmar Faria me contou que um menino da tua assessoria econômica ficou encantado com a geladeirinha onde o Alexandre Kafka (aquele sujeito que eu nomeei para uma diretoria do Fundo) guardava seus vinhos. Uma geladeirinha que você compra em qualquer supermercado de Belo Horizonte e uns vinhos de segunda, porque nem o Kafka podia gastar, nem gosta de fazê-lo. Adorável Fernando, ou somos antropófagos, ou gostamos de miçangas. Quando eles descobrem que a gente gosta de gravata Ferragamo ou de sapatos Church (duros como as botas da PM mineira), ferramo-nos.
Ferraste o Brasil durante sete anos. Como me disse o Camões, que nunca deixou de acompanhar as coisas d'além mar, serviste a Labão, de olho em Rachel, serrana bela. Ele te deu Lia, déficit comercial, dívida, desemprego e um crescimento de menos de 1% na renda dos brasileiros. Isso eu fazia em três meses. Outro dia encontrei o general Médici (creia, ele voltou a fumar). Continua reclamando porque construí Brasília, mas eu lhe respondo que minhas comissões contratuais eram inferiores à da ponte Rio-Niterói.
Como aqui não se briga, nos colocamos de acordo numa coisa. Eu fiz tudo errado, mas você pega um avião e desce em Brasília. Aliás, você adora morar lá (porque não paga aluguel, eu sei). Da mesma forma, diz o Médici, você embica o carro na ponta do Caju e sai em Niterói. O Sérgio Motta me fez a lista do pessoal do papelório que comprou apartamento em Nova York e do roubalhório, que comprou em Miami. (Por falar em Sérgio Motta, que grande ministro ele teria sido no meu governo.)
Brigue com o Fundo, Fernando. Conte para todo mundo que no dia 16 de janeiro de 1999, quando o Brasil estava indo à breca, o Michel Camdessus propôs ao Malan um sistema de dolarização semelhante ao da Argentina. Conte mais: que o Stanley Fischer te propôs a mesma coisa no Planalto, no dia 3 de fevereiro. Saia por aí gritando que você não deixou eles desgraçarem a nossa terra. Depois de ter ajudado a derrubar o Chico Lopes, filho do meu querido Lucas, o Fischer achava que podia fazer o que quisesse. Aliás, não saia do Planalto sem homenagear o Chico. Esse rapaz teve a coragem de dizer ao Fischer que podia falar com ele diariamente ao telefone, mas que aquela moça italiana que cuida do Brasil teria que falar com seus assessores. Como disse o Sarney, é o que se chama de liturgia do cargo. Coitado do Sarney. Eu sei como vai acabar esse instante de dor que a vida lhe trapaceou, mas não posso contar. É proibido.
Voltando aos guarda-livros do FMI. Conte aos brasileiros porque nos tratam como analfabetos. Pelas contas deles, se um governo privatiza um sistema de saneamento urbano, consegue R$ 100 milhões e os aplica na construção de uma rede de esgotos num bairro pobre, isso conta como despesa e aumenta a dívida, enquanto os R$ 100 milhões não contam como receita. Isso nas contas que eles fazem para nós. Nas que fazem para eles, com o nosso dinheiro, sustentam a indústria da Califórnia arrumando brigas nas montanhas do fim do mundo. Quando a siderurgia deles vai mal, taxam o nosso aço. Eles não nos acham analfabetos. Estão convencidos de que somos bobos.
Vou me despedindo porque o meu querido Geraldo (aquele motorista que morreu comigo e por quem tenho uma amizade que você mostrou-se raso para entender) arrumou uma serenata na casa da Chiquinha Gonzaga.
Não me queira mal. É possível que eu venha a recomendar aos meus amigos que votem no teu candidato, desde que ele diga o que vai fazer para tirar 9 milhões de trabalhadores do limbo, levando os patrões a assinarem suas carteiras. O Getúlio, que tem horror a você, disse que sem isso ele nem conversa. Ele anda com uma cópia daquela Carta e diz que você levou para o governo "a campanha subterrânea dos grupos internacionais" aliada "à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho".
Sucesso e recomende-me à dona Ruth, a Beatriz, Luciana, Paulo Henrique e aos netos.
(Mantenha reserva, porque já tive dissabores suficientes em vida, mas dona Ruth é a maior primeira-dama que o Brasil já teve.)


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