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ENTREVISTA
Núcleo reacionário da aliança está no PSDB, diz cientista político, que lança amanhã "2001: o Brasil no Espaço"
Fiori manda era tucana para o espaço
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
MARIA BRANT
DA REDAÇÃO
Em 1994, ele era considerado
pelo então candidato Fernando
Henrique Cardoso o seu "mais lúcido crítico". Passaram-se mais
de seis anos e as coisas mudaram.
A era FHC viveu dias de glória
no primeiro mandato, perdeu o
brilho solar quando o real deixou
de ser forte e hoje se vê às voltas
com a escuridão. Pode terminar
assim, mergulhada nas trevas dos
apagões e da autofagia de uma base política que ameaça ruir.
Desde o início, o cientista político José Luís Fiori foi um dos
maiores adversários do projeto
tucano. Seus textos de combate
estão reunidos no livro "Os Moedeiros Falsos", de 1997, e no recente "2001: o Brasil no Espaço",
que o autor debate amanhã, às
19h, na livraria Fnac (av. Pedroso
de Morais, 858, 3º andar, Pinheiros, zona oeste de São Paulo).
Na entrevista que segue, os alvos de Fiori são menos as rãs suspeitas do coronelato que compõe
a aliança de FHC e muito mais o
núcleo duro do tucanato e suas
ramificações globais. "Os grandes
predadores do Estado na era FHC
estão concentrados no sudeste
moderno do país", diz o professor
titular da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ).
Folha - A crise política em curso
seria um sintoma do esgotamento
do governo e da dissolução da
aliança que ascendeu ao poder em
94? Não é sensato supor que a coalizão acabará se reorganizando em
uma única candidatura, provavelmente a de José Serra?
José Luís Fiori - Não há duvida
de que essa crise não se restringe a
um desvio de comportamento de
alguns senhores. Ela é um espasmo e um sintoma de que esse governo já se esgotou há muito tempo e seus pedaços estão em processo de ajuste de contas.
O problema, entretanto, é mais
complexo. Todos os sinais indicam, efetivamente, que a festa está
acabando, como já acabou em toda a América Latina. O crescimento foi pequeno e acabou rápido; a pobreza e a desigualdade aumentaram. Em alguns casos, os
territórios começaram a se desintegrar, como no México e na Colômbia. Noutros, as sociedades
estão em franco processo de desintegração, como no Equador,
no Peru e na Argentina, para não
falar das metrópoles brasileiras.
O Brasil foi o último dos latino-americanos a entrar nesse jogo. E,
depois do grande acordo de 94, os
agentes privados ganharam muito e de maneira muito fácil. O que
estamos vendo agora é um quadro um pouco diferente. Acabaram-se as privatizações e está cada vez mais difícil sustentar a farra das importações.
Aumentou a fragilidade financeira externa, e os juros voltaram
a subir; a moeda desvalorizou-se
rapidamente, e o país enfrenta um
colapso energético iminente. Os
recursos escassearam, o prestígio
do governo caiu, e o PSDB dá sinais evidentes de decomposição
depois da morte de Mário Covas.
Os tucanos pensavam haver
descoberto a pólvora quando se
propuseram a sustentar seu projeto socioliberal, aliados ao império, à burguesia associada de São
Paulo, aos donos do sertão e às
grandes máquinas de corrupção
urbana concentradas no centro-sul do país. Acabaram prisioneiros de sua própria mágica. Hoje,
são uma caricatura desmoralizada de si mesmos.
Folha - Mas há quem veja o xeque-mate dos caciques da fisiologia como uma depuração do governo. O tucanato seria justamente a
parte apresentável da aliança.
Fiori - Aqui há de se ter o máximo cuidado para não transformar
os nordestinos na nova Geni dessa história, maneira fácil de lavar
as mãos em nome da modernidade. Os grandes predadores do Estado, durante esse período, estiveram ligados ao grande capital privado e às finanças nacionais e internacionais. Eles não se dedicaram à criação de rãs. Dedicaram-se às privatizações e ao assalto aos
fundos de pensão e às novas agências de regulação, o verdadeiro filé
mignon do "business" durante
este período, servido sobretudo
na ponte Rio-São Paulo.
É aí que está o núcleo duro e reacionário dessa coalizão, e ele sempre esteve, o tempo todo, concentrado no sudeste moderno do
país. Aí é que ocorreu a grande
corrupção em torno e dentro do
Estado. É aí que hoje se disputam
os grandes negócios que restam
para ser feitos. Em particular o da
privatização da Previdência. Os
coronéis que hoje estão em foco
cumpriram um papel menor nessa festa, e alguns deles não passam
de ratos de navio.
É uma gigantesca farsa e hipocrisia sulista considerar que a modernidade estaria começando
agora, quando os coronéis nordestinos estariam sendo jogados
na lata do lixo depois de terem sido usados pelos sulistas para promover a grande modernização.
Essa versão é ridícula, mas cumpre um papel psicossocial na dramaturgia do "crime e castigo".
Folha - Parece severo esse quadro. A aliança está condenada?
Fiori - Não. No longo prazo, é
óbvio que se juntarão de novo. O
problema não está aí, está no "timing" da reaglutinação. O reencontro ocorrerá de qualquer maneira no segundo turno das eleições presidenciais de 2002.
Creio que o nome não será o ministro José Serra. Ele não conta
com a simpatia do império nem
das finanças internacionais. Não
terá o apoio do sertão, de maneira
alguma. Um acordo café-com-leite com Minas Gerais está vetado
pela candidatura de Itamar Franco; e seu partido, o PSDB, já não
tem mais coluna vertebral.
Folha - O que a crise argentina ensina ao Brasil e à esquerda? Derrotado nas urnas, Domingo Cavallo
voltou ao comando da economia
do país um ano depois com poderes
extraordinários. Não teria havido
lá algo como um "golpe branco"?
Fiori - Não há a menor dúvida de
que a eleição de um governo de
oposição e suas dificuldades posteriores já transformaram a Argentina num caso paradigmático
e num alerta. A imagem do "golpe
branco" tem fundamento porque,
de fato, Cavallo foi posto no governo por uma espécie de reeleição feita por agentes financeiros.
É sintomático que, enquanto ele
fazia seu primeiro "show-off" pelo circuito financeiro internacional, o presidente eleito pelo voto
direto esperava na fila em Roma,
para pedir a benção do papa, numa operação de marketing que
sugeria um perdão pelos pecados.
Daqui em diante, sinalizaram os
marqueteiros, estejam certos de
que teremos uma vestal na Presidência e um cavalo no comando.
Por trás disso, entretanto, existe
uma realidade e uma lição extremamente complicadas. A desregulação financeira e a abertura
comercial das economias latino-americanas, junto às demais reformas neoliberais, fragilizaram
os Estados da região, e criaram
uma camisa-de-força que dificulta enormemente uma mudança
de rumo. No limite, ninguém sabe
o que ocorrerá com a economia e
a democracia se o quadro de desintegração não for revertido. A
volta de Cavallo agora não assegura mais nada, apenas -e por
algum tempo- o pagamento aos
credores, isso se conseguir renegociar sua dívida externa e manter as ajudas sucessivas do FMI.
Folha - Está claro que os efeitos
das mudanças que FHC fez na economia vão muito além de seu mandato. Quais as consequências estruturais da era FHC?
Fiori - As mudanças dessa última década não apenas perdurarão. Elas pesarão decisivamente
no futuro brasileiro. Foram mudanças muito radicais e que atingiram profundamente a estrutura
econômica, as condições sociais e
a soberania brasileira.
Para começar, a forma com que
foi feita a estabilização, e a maneira como o governo se aferrou à
idéia do equilíbrio fiscal, junto à
desregulação financeira e à abertura comercial, acabou provocando efeitos estruturais e de longo
prazo: aumentou enormemente
nossa dívida e nossa fragilidade financeira externa e nosso déficit
no balanço de pagamentos. Além
de ter desorganizado seriamente
nosso sistema de infra-estrutura,
como se vê no atual colapso energético, enquanto desmontava a
capacidade estruturante do Estado brasileiro.
O sucesso no combate à inflação
se transformou na contraface de
um modelo ancorado em altas taxas de juros, aumento contínuo
do novo endividamento externo e
cortes sucessivos dos investimentos e gastos sociais públicos. Condições que impedem um crescimento alto e sustentado.
Do ponto de vista estrutural,
desmontou-se o velho tripé desenvolvimentista. O setor publico
da economia perdeu fôlego em favor do capital privado internacional, que abocanhou também uma
boa parte da indústria brasileira.
Houve uma gigantesca troca de
patrimônio, mas não houve necessariamente uma inovação tão
grande na composição do capital
privado brasileiro. O capital privado nacional concentrou-se, e o
capital internacional que comprou as empresas nacionais em
geral já estava no país.
A novidade ficou por conta da
entrada de novos bancos e sócios
nas privatizações, sobretudo da
telefonia. Segue verdadeiro diagnóstico estrutural do ministro
Delfim Netto sobre o período:
uma transferência do empresariado de uma para a outra teta do Estado. Mas são praticamente os
mesmos capitais que já estavam
mamando na primeira teta.
Essas transformações estruturais, junto à abertura comercial,
permitiram uma modernização
microeconômica que não foi
acompanhada pelo aumento sistêmico da competitividade. Pelo
contrário, na ausência de politicas
específicas, romperam-se várias
cadeias produtivas, e, como consequência, aumentaram muito as
importações de bens de capital.
Do ponto de vista social, o balanço das mudanças do período é
muito ruim. O real num primeiro
momento reduziu a inflação, expandiu a economia e reduziu as
taxas de desemprego. Mas, a partir do segundo semestre de 1996,
começou um processo de reversão das conquistas. O desemprego aumentou, e os salários caíram
a uma média de 7% ao ano. A desigualdade agravou-se no Brasil
entre 1992 e 1998, e a massa salarial, que era de 44% do PIB em
1993, caiu para 36% no final da
década, enquanto a participação
dos lucros no PIB passava de 35%
para 44% do PIB.
Indo ao ponto: usando-se a média de crescimento da renda per
capita dos últimos quatro anos,
serão necessários 187 anos para
dobrar a renda dos brasileiros.
Folha- Diante desse quadro, qual
seria a opção da esquerda e de um
eventual governo Lula? José Dirceu
vem falando em choque de distribuição de renda. O que é isso? Divisão da miséria?
Fiori - Alguém poderia até achar
que o deputado José Dirceu estivesse se referindo aos U$ 4.600
dólares que cada brasileiro recebe, teoricamente, a cada ano. O
choque distributivo, nesse caso,
seria um gigantesco esforço de
devolver a cada um o que as estatísticas lhe atribuem. Estou certo
de que não é isso. O que ele deve
estar pensando é nos 5% de brasileiros que abocanham a maior
parte da renda e no 1% que detém
a maior parte da riqueza.
E, portanto, na necessidade de
que essa minoria pague impostos
que permitam financiar uma política de investimentos e gastos voltados para os segmentos majoritários e desfavorecidos da população. A proposta é absolutamente
justa e é teoricamente possível.
Mas é óbvio que, se isso não
ocorreu em 150 anos de vida republicana, deve ser por alguma
razão muito forte. Há de ter claro
que tudo isto não é apenas um
problema técnico ou de mudanças institucionais que possam ser
feitas com medidas provisórias.
Trata-se de um projeto que vai
contra a corrente nacional e internacional e portanto só será viável
caso ocorra uma mudança substantiva da correlação de forças
políticas e sociais e uma revalorização massiva da idéia de nação e
de solidariedade federativa.
Folha - Que futuro o sr. vê para a
hegemonia norte-americana e o
que muda, para o Brasil, com a volta dos republicanos ao poder?
Fiori - Existe uma mudança importante entre as estratégias internacionais de Bush e Clinton. As
instituições multilaterais devem
perder força, e as intervenções
humanitárias desaparecerão do
mapa. Isso não significa, de modo
algum, um retraimento para dentro de si mesmos. Mas deve significar a troca de um projeto de hegemonia mundial de tipo gramsciano por um projeto de dominação nitidamente imperial.
Por outro lado, os EUA estão se
orientando, de forma ainda mais
radical, pela idéia de que o mercado livre é o melhor antídoto para
as crises financeiras. A ideologia
globalista e interdependentista
dos democratas de Clinton será
substituída por uma idéia-força:
as crises são fruto da ausência de
capitalismo e de mercado.
Deve-se esperar uma redução
ou eliminação progressiva do tipo
de ajuda que os EUA deram à Argentina, ao México e ao Brasil, nas
suas crises de 1990, 1994 e 1998.
A única garantia que poderá ser
dada é através da criação da Alca.
E a parte comercial talvez seja até
a menos importante.
O mais importante na Alca é o
poder, inclusive jurídico, que os
Estados latino-americanos transferem para os EUA, não apenas
nos contenciosos comerciais, onde já existe a OMC, mas sobretudo no campo dos investimentos,
onde a Alca ressuscita os termos
do Acordo Multilateral de Investimentos que foi engavetado há
dois anos, devido a oposição de
países europeus.
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