São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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ENTREVISTA

Núcleo reacionário da aliança está no PSDB, diz cientista político, que lança amanhã "2001: o Brasil no Espaço"

Fiori manda era tucana para o espaço

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

MARIA BRANT
DA REDAÇÃO

Em 1994, ele era considerado pelo então candidato Fernando Henrique Cardoso o seu "mais lúcido crítico". Passaram-se mais de seis anos e as coisas mudaram.
A era FHC viveu dias de glória no primeiro mandato, perdeu o brilho solar quando o real deixou de ser forte e hoje se vê às voltas com a escuridão. Pode terminar assim, mergulhada nas trevas dos apagões e da autofagia de uma base política que ameaça ruir.
Desde o início, o cientista político José Luís Fiori foi um dos maiores adversários do projeto tucano. Seus textos de combate estão reunidos no livro "Os Moedeiros Falsos", de 1997, e no recente "2001: o Brasil no Espaço", que o autor debate amanhã, às 19h, na livraria Fnac (av. Pedroso de Morais, 858, 3º andar, Pinheiros, zona oeste de São Paulo).
Na entrevista que segue, os alvos de Fiori são menos as rãs suspeitas do coronelato que compõe a aliança de FHC e muito mais o núcleo duro do tucanato e suas ramificações globais. "Os grandes predadores do Estado na era FHC estão concentrados no sudeste moderno do país", diz o professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Folha - A crise política em curso seria um sintoma do esgotamento do governo e da dissolução da aliança que ascendeu ao poder em 94? Não é sensato supor que a coalizão acabará se reorganizando em uma única candidatura, provavelmente a de José Serra?
José Luís Fiori
- Não há duvida de que essa crise não se restringe a um desvio de comportamento de alguns senhores. Ela é um espasmo e um sintoma de que esse governo já se esgotou há muito tempo e seus pedaços estão em processo de ajuste de contas.
O problema, entretanto, é mais complexo. Todos os sinais indicam, efetivamente, que a festa está acabando, como já acabou em toda a América Latina. O crescimento foi pequeno e acabou rápido; a pobreza e a desigualdade aumentaram. Em alguns casos, os territórios começaram a se desintegrar, como no México e na Colômbia. Noutros, as sociedades estão em franco processo de desintegração, como no Equador, no Peru e na Argentina, para não falar das metrópoles brasileiras.
O Brasil foi o último dos latino-americanos a entrar nesse jogo. E, depois do grande acordo de 94, os agentes privados ganharam muito e de maneira muito fácil. O que estamos vendo agora é um quadro um pouco diferente. Acabaram-se as privatizações e está cada vez mais difícil sustentar a farra das importações.
Aumentou a fragilidade financeira externa, e os juros voltaram a subir; a moeda desvalorizou-se rapidamente, e o país enfrenta um colapso energético iminente. Os recursos escassearam, o prestígio do governo caiu, e o PSDB dá sinais evidentes de decomposição depois da morte de Mário Covas.
Os tucanos pensavam haver descoberto a pólvora quando se propuseram a sustentar seu projeto socioliberal, aliados ao império, à burguesia associada de São Paulo, aos donos do sertão e às grandes máquinas de corrupção urbana concentradas no centro-sul do país. Acabaram prisioneiros de sua própria mágica. Hoje, são uma caricatura desmoralizada de si mesmos.

Folha - Mas há quem veja o xeque-mate dos caciques da fisiologia como uma depuração do governo. O tucanato seria justamente a parte apresentável da aliança.
Fiori
- Aqui há de se ter o máximo cuidado para não transformar os nordestinos na nova Geni dessa história, maneira fácil de lavar as mãos em nome da modernidade. Os grandes predadores do Estado, durante esse período, estiveram ligados ao grande capital privado e às finanças nacionais e internacionais. Eles não se dedicaram à criação de rãs. Dedicaram-se às privatizações e ao assalto aos fundos de pensão e às novas agências de regulação, o verdadeiro filé mignon do "business" durante este período, servido sobretudo na ponte Rio-São Paulo.
É aí que está o núcleo duro e reacionário dessa coalizão, e ele sempre esteve, o tempo todo, concentrado no sudeste moderno do país. Aí é que ocorreu a grande corrupção em torno e dentro do Estado. É aí que hoje se disputam os grandes negócios que restam para ser feitos. Em particular o da privatização da Previdência. Os coronéis que hoje estão em foco cumpriram um papel menor nessa festa, e alguns deles não passam de ratos de navio.
É uma gigantesca farsa e hipocrisia sulista considerar que a modernidade estaria começando agora, quando os coronéis nordestinos estariam sendo jogados na lata do lixo depois de terem sido usados pelos sulistas para promover a grande modernização. Essa versão é ridícula, mas cumpre um papel psicossocial na dramaturgia do "crime e castigo".

Folha - Parece severo esse quadro. A aliança está condenada?
Fiori
- Não. No longo prazo, é óbvio que se juntarão de novo. O problema não está aí, está no "timing" da reaglutinação. O reencontro ocorrerá de qualquer maneira no segundo turno das eleições presidenciais de 2002.
Creio que o nome não será o ministro José Serra. Ele não conta com a simpatia do império nem das finanças internacionais. Não terá o apoio do sertão, de maneira alguma. Um acordo café-com-leite com Minas Gerais está vetado pela candidatura de Itamar Franco; e seu partido, o PSDB, já não tem mais coluna vertebral.

Folha - O que a crise argentina ensina ao Brasil e à esquerda? Derrotado nas urnas, Domingo Cavallo voltou ao comando da economia do país um ano depois com poderes extraordinários. Não teria havido lá algo como um "golpe branco"?
Fiori
- Não há a menor dúvida de que a eleição de um governo de oposição e suas dificuldades posteriores já transformaram a Argentina num caso paradigmático e num alerta. A imagem do "golpe branco" tem fundamento porque, de fato, Cavallo foi posto no governo por uma espécie de reeleição feita por agentes financeiros.
É sintomático que, enquanto ele fazia seu primeiro "show-off" pelo circuito financeiro internacional, o presidente eleito pelo voto direto esperava na fila em Roma, para pedir a benção do papa, numa operação de marketing que sugeria um perdão pelos pecados. Daqui em diante, sinalizaram os marqueteiros, estejam certos de que teremos uma vestal na Presidência e um cavalo no comando.
Por trás disso, entretanto, existe uma realidade e uma lição extremamente complicadas. A desregulação financeira e a abertura comercial das economias latino-americanas, junto às demais reformas neoliberais, fragilizaram os Estados da região, e criaram uma camisa-de-força que dificulta enormemente uma mudança de rumo. No limite, ninguém sabe o que ocorrerá com a economia e a democracia se o quadro de desintegração não for revertido. A volta de Cavallo agora não assegura mais nada, apenas -e por algum tempo- o pagamento aos credores, isso se conseguir renegociar sua dívida externa e manter as ajudas sucessivas do FMI.

Folha - Está claro que os efeitos das mudanças que FHC fez na economia vão muito além de seu mandato. Quais as consequências estruturais da era FHC?
Fiori
- As mudanças dessa última década não apenas perdurarão. Elas pesarão decisivamente no futuro brasileiro. Foram mudanças muito radicais e que atingiram profundamente a estrutura econômica, as condições sociais e a soberania brasileira.
Para começar, a forma com que foi feita a estabilização, e a maneira como o governo se aferrou à idéia do equilíbrio fiscal, junto à desregulação financeira e à abertura comercial, acabou provocando efeitos estruturais e de longo prazo: aumentou enormemente nossa dívida e nossa fragilidade financeira externa e nosso déficit no balanço de pagamentos. Além de ter desorganizado seriamente nosso sistema de infra-estrutura, como se vê no atual colapso energético, enquanto desmontava a capacidade estruturante do Estado brasileiro.
O sucesso no combate à inflação se transformou na contraface de um modelo ancorado em altas taxas de juros, aumento contínuo do novo endividamento externo e cortes sucessivos dos investimentos e gastos sociais públicos. Condições que impedem um crescimento alto e sustentado.
Do ponto de vista estrutural, desmontou-se o velho tripé desenvolvimentista. O setor publico da economia perdeu fôlego em favor do capital privado internacional, que abocanhou também uma boa parte da indústria brasileira. Houve uma gigantesca troca de patrimônio, mas não houve necessariamente uma inovação tão grande na composição do capital privado brasileiro. O capital privado nacional concentrou-se, e o capital internacional que comprou as empresas nacionais em geral já estava no país.
A novidade ficou por conta da entrada de novos bancos e sócios nas privatizações, sobretudo da telefonia. Segue verdadeiro diagnóstico estrutural do ministro Delfim Netto sobre o período: uma transferência do empresariado de uma para a outra teta do Estado. Mas são praticamente os mesmos capitais que já estavam mamando na primeira teta.
Essas transformações estruturais, junto à abertura comercial, permitiram uma modernização microeconômica que não foi acompanhada pelo aumento sistêmico da competitividade. Pelo contrário, na ausência de politicas específicas, romperam-se várias cadeias produtivas, e, como consequência, aumentaram muito as importações de bens de capital.
Do ponto de vista social, o balanço das mudanças do período é muito ruim. O real num primeiro momento reduziu a inflação, expandiu a economia e reduziu as taxas de desemprego. Mas, a partir do segundo semestre de 1996, começou um processo de reversão das conquistas. O desemprego aumentou, e os salários caíram a uma média de 7% ao ano. A desigualdade agravou-se no Brasil entre 1992 e 1998, e a massa salarial, que era de 44% do PIB em 1993, caiu para 36% no final da década, enquanto a participação dos lucros no PIB passava de 35% para 44% do PIB.
Indo ao ponto: usando-se a média de crescimento da renda per capita dos últimos quatro anos, serão necessários 187 anos para dobrar a renda dos brasileiros.

Folha- Diante desse quadro, qual seria a opção da esquerda e de um eventual governo Lula? José Dirceu vem falando em choque de distribuição de renda. O que é isso? Divisão da miséria?
Fiori
- Alguém poderia até achar que o deputado José Dirceu estivesse se referindo aos U$ 4.600 dólares que cada brasileiro recebe, teoricamente, a cada ano. O choque distributivo, nesse caso, seria um gigantesco esforço de devolver a cada um o que as estatísticas lhe atribuem. Estou certo de que não é isso. O que ele deve estar pensando é nos 5% de brasileiros que abocanham a maior parte da renda e no 1% que detém a maior parte da riqueza.
E, portanto, na necessidade de que essa minoria pague impostos que permitam financiar uma política de investimentos e gastos voltados para os segmentos majoritários e desfavorecidos da população. A proposta é absolutamente justa e é teoricamente possível.
Mas é óbvio que, se isso não ocorreu em 150 anos de vida republicana, deve ser por alguma razão muito forte. Há de ter claro que tudo isto não é apenas um problema técnico ou de mudanças institucionais que possam ser feitas com medidas provisórias. Trata-se de um projeto que vai contra a corrente nacional e internacional e portanto só será viável caso ocorra uma mudança substantiva da correlação de forças políticas e sociais e uma revalorização massiva da idéia de nação e de solidariedade federativa.

Folha - Que futuro o sr. vê para a hegemonia norte-americana e o que muda, para o Brasil, com a volta dos republicanos ao poder?
Fiori
- Existe uma mudança importante entre as estratégias internacionais de Bush e Clinton. As instituições multilaterais devem perder força, e as intervenções humanitárias desaparecerão do mapa. Isso não significa, de modo algum, um retraimento para dentro de si mesmos. Mas deve significar a troca de um projeto de hegemonia mundial de tipo gramsciano por um projeto de dominação nitidamente imperial.
Por outro lado, os EUA estão se orientando, de forma ainda mais radical, pela idéia de que o mercado livre é o melhor antídoto para as crises financeiras. A ideologia globalista e interdependentista dos democratas de Clinton será substituída por uma idéia-força: as crises são fruto da ausência de capitalismo e de mercado.
Deve-se esperar uma redução ou eliminação progressiva do tipo de ajuda que os EUA deram à Argentina, ao México e ao Brasil, nas suas crises de 1990, 1994 e 1998.
A única garantia que poderá ser dada é através da criação da Alca. E a parte comercial talvez seja até a menos importante.
O mais importante na Alca é o poder, inclusive jurídico, que os Estados latino-americanos transferem para os EUA, não apenas nos contenciosos comerciais, onde já existe a OMC, mas sobretudo no campo dos investimentos, onde a Alca ressuscita os termos do Acordo Multilateral de Investimentos que foi engavetado há dois anos, devido a oposição de países europeus.


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