São Paulo, quarta-feira, 13 de junho de 2001

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ELIO GASPARI

FFHH acertou. Culpa do Lula

As coisas boas também acontecem. Pela primeira vez em muitas décadas, um governo reagiu às consequências da seca nordestina com audácia, inteligência e criatividade. Se ninguém atrapalhar, FFHH pode transformar a estiagem deste ano numa jóia de sua Coroa. (A do Pedro Banana, que em 1870 prometeu desmanchá-la para ajudar o povo do sertão, está no Museu Imperial com todos os seus 639 brilhantes e suas 77 pérolas.)
Na segunda metade de maio, numa conversa com o governador Tasso Jereissati, FFHH foi alertado para a gravidade do problema. Como governador nordestino sempre carrega o fim do mundo na pasta, seria razoável que ouvisse e arquivasse. (Foi o que o doutor Malan fez quando o mesmo Jereissati o procurava para pedir investimentos em termelétricas, mas a culpa é do Lula.) No dia 21, FFHH deu um dedo de prosa ao ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann. Conversa vai, conversa vem, Jungmann mostrou-lhe que o governo arriscava tomar uma bola nas costas com a seca. Já a tomara em 1998, quando só acordou depois que famintos de oito Estados haviam avançado sobre cargas de comida alheia.
A certa altura, FFHH disse duas palavras: "Coordene isso".
Sem qualquer ato administrativo que o respaldasse, Jungmann foi à luta. Em menos de dez dias, colecionou informações e propostas. Fincou três estacas.
Não vai "combater" a seca. "Combater" fenômeno da natureza é coisa de pajé. Também não vai montar frentes de trabalho. Sempre que puder, sairá do esquema de distribuição de comida. Não vai lançar iniciativas de emergência.
Assim, sabe-se o que Jungmann não fará. Resta saber o que pretende fazer. O seguinte:
1) Criará uma espécie de seguro para os pequenos lavradores que perderam sua safra. Apenas a título ilustrativo, pode-se estimar que cada pequeno proprietário vá receber R$ 500 até o fim deste ano. (Menos de R$ 100 por mês.)
2) Condicionará o pagamento do seguro ao compromisso do beneficiado de estudar. Se for analfabeto, aprenderá a ler. (Em 1998, as frentes de trabalho receberam 1,2 milhão de pessoas. Delas, 81% eram analfabetas e analfabetas continuaram.) Estará obrigado a manter os filhos na escola e, se for o caso, fará algum curso de capacitação profissional.
Tem três problemas pela frente. O primeiro é o cadastramento dos beneficiados pelo seguro. Pretende organizar comissões em que a sociedade tenha metade dos assentos. Dispõe da rede capilar da igreja, dos sindicatos de trabalhadores rurais e das associações comunitárias. Parada dura. A clientela semi-árida já mastigou inúmeras iniciativas desse tipo.
O segundo é a busca de um mecanismo que permita amparar o bóia-fria que vive em torno das propriedades rurais. Se ele ficar de fora, babau.
O terceiro será conseguir dinheiro. O desastroso "combate" à seca de 1998 custou R$ 2,2 bilhões. Se a ekipekonômica lhe der um pouco menos que isso, de nada poderá reclamar. (Desde que reclame do Lula, culpado pela seca, pelo apagão e pela irresponsabilidade fiscal.) O ministro Pedro Malan bem que poderia dizer o seguinte:
"Não existe mais governo no mundo moderno que faça um discurso que permita dar a entender que a seca será o que tiver que ser porque existem outras prioridades".
Pela primeira vez desde que Celso Furtado estudou a seca nordestina, alguém se mete no assunto virando-o pelo avesso. Na verdade, virando-o para o lado certo, pois o avesso está nas noções de "combate", de emergência e de esmola.
Vale lembrar que a Viúva ainda sustenta um Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, nascido em 1909. O que um departamento pode fazer "contra" uma seca, ninguém explica. Também se deve levar em conta que o estilo "vidas secas" de solidariedade aos nordestinos é uma piedosa fantasia. Hoje, a história de Fabiano está naquilo que foi o sonho da cidade grande, onde Graciliano Ramos parou em 1938. Em números absolutos, a miséria nacional não está mais em cima do cristalino do Nordeste indiano, mais nas fímbrias das metrópoles que se julgam belgas. A cadela Baleia e o papagaio talvez morressem de novo, mas as crianças teriam escola e merenda. O velho Tomás da Bolandeira poderia perder tudo, mas teria o dinheiro da aposentadoria rural. A caminhada de Fabiano também seria mais curta, pois conseguiria carona em algum caminhão.
Jungmann ainda não completou um mês na sua função. Já jogou no lixo quase dois séculos de mistificações. Na pior das hipóteses, se der tudo errado, terá fracassado uma idéia nova, boa e certa. Culpa do Lula.


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