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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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REFORMA NO AR

Alencastro defende fim da aposentadoria integral de servidor

Recuo de Lula "desmoraliza" reforma, afirma historiador

JULIA DUAILIBI
DA REPORTAGEM LOCAL

O historiador Luiz Felipe de Alencastro, 57, ao analisar a polêmica em torno das alterações na Previdência, avalia que um recuo do governo neste momento pode "desmoralizar" a reforma, além de prejudicar a aprovação de outros pontos da pauta do Planalto.
"Acho que, nesse tipo de pauta, um recuo agora comprometeria todo tipo de reforma que o governo fizer daqui para a frente. Desmoraliza a reforma", afirmou o historiador, que vive na França, país que também discute a reforma no sistema previdenciário.
Para Alencastro, professor de história do Brasil na Universidade de Paris 4, o fim da integralidade das aposentadorias dos servidores é justo uma vez que o funcionalismo conta com a estabilidade em um época de desemprego.
"O funcionário público goza de estabilidade profissional, ao contrário dos trabalhadores do setor privado, que vivem sob a ameaça do desemprego. Não dá também para ele querer ainda a aposentadoria integral", disse o autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras), obra em que examina como o tráfico negreiro no século 19 desenvolveu entre o Brasil, a África e regiões do Atlântico um sistema de relações paralelo à influência portuguesa.
Além de destacar o MST como um movimento que "civiliza" o campo, ele classificou como "chilique" e "histeria" a "tromba" que se fez em torno do uso do boné dos sem-terra pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Leia a entrevista dada de Paris, por telefone e e-mail, à Folha.
 

Folha - O sr. acha legítima a proposta do original do governo para a reforma da Previdência?
Luiz Felipe de Alencastro -
A reforma dos regimes previdenciários, ampliados após a Segunda Guerra, quando havia um forte crescimento demográfico e pleno emprego, está em pauta em quase todos os países, agora, com o declínio da natalidade e o aumento do desemprego. Aqui na França, os professores trabalham 38,5 anos para se aposentarem e o governo está querendo aumentar o prazo para 41 anos.
O problema no Brasil é que o regime previdenciário está alquebrado por uma legislação fragmentada e corporativa, que gera excessos.
O funcionário público goza de estabilidade profissional, ao contrário dos trabalhadores do setor privado, que vivem sob a ameaça do desemprego. Não dá também para ele querer ainda a aposentadoria integral. Isto posto, creio que o governo devia ter desdobrado mais a reforma, escalonando no tempo e introduzindo regimes transitórios que garantissem direitos adquiridos para os atuais funcionários. Mas também entendo que uma reforma desse escopo, importante, complexa e desgastante tinha de ser lançada logo no início de governo.

Folha - Então não deveria haver recuo no fim da integralidade?
Alencastro -
Isso é de uma espécie de compensação na Previdência, que raramente garante integralidade. Você tem médias salariais e outras coisas. O ponto de partida na questão do funcionalismo é que a garantia de emprego nos dias de hoje é um grande trunfo. Então você tem de ceder em uma outra parte.
Tem muita coisa encoberta no Brasil na questão da Previdência e eu acho que um dos méritos da situação atual, para ser minimamente realista, é ter provocado um debate sobre o tema.

Folha - O governo acaba cedendo muito por querer agradar a todos?
Alencastro - Se ele quisesse agradar a todo mundo, ele não mexia na reforma da Previdência, que é o que todos fizeram antes. Acho que, ao contrário, é uma coragem política grande colocar o problema logo no começo do governo. É um assunto que, aqui na França, já derrubou vários primeiros-ministros.

Folha - Acha que o PT vai arcar com o ônus de contrariar uma das principais bases, o funcionalismo?
Alencastro -
Claro. Acho que já há um ônus. Por isso que a reforma tem de ser feita logo no começo. Acho que, nesse tipo de pauta, um recuo agora comprometeria todo tipo de reforma que o governo fizer daqui para a frente. Desmoraliza a reforma.

Folha - Como o sr. vê a forma como o governo lida com o MST?
Alencastro -
O Brasil é o único dos grandes países que não fez reforma agrária, coisa que os EUA fizeram no seu próprio território em 1862 e impuseram ao Japão, em 1945. Por isso, acho que o MST continuará ocupando terras, porque a forma de protesto dos sindicatos rurais, em todo o mundo, inclusive aqui na França, é mais dura que a dos trabalhadores urbanos. No nosso país, onde a exploração dos trabalhadores rurais tem se caracterizado, através dos séculos, pela brutalidade, o MST insere a revolta rural no quadro das negociações. Concordo com o que disse Plínio de Arruda Sampaio: "O MST civiliza o campo".

Folha - Vestir o boné do movimento não prejudica ainda mais o entendimento?
Alencastro -
Achei que há uma histeria em torno disso. Aliás, periodicamente, o tucanato tinha uma certa histeria com o MST como se fosse a vanguarda de uma insurreição armada. Nos últimos anos, isso ocorria periodicamente. Se tivesse havido metade da tromba que se criou agora em cima do massacre dos sem-terra em Eldorado do Carajás, no governo do tucano Almir Gabriel [em 1996], quando o PSDB ficou quieto e o governo tucano também não foi adiante, o Brasil suportaria melhor hoje em dia em vez de ficar criando chilique porque o Lula pôs chapéu do MST. É um movimento legalizado, que tem fachada pública, não é racista e não está proibido. Por que o presidente não poderia colocar o chapéu?

Folha - Acha que já é possível identificar neste governo um significativo rearranjo de forças sociais?
Alencastro -
Penso que é necessário um partido conservador moderno no Brasil, coisa que o PFL não é. Mas o grande rearranjo político partidário só vai ocorrer mais adiante, quando FHC se lançar como o candidato anti-Lula nas eleições presidenciais. Não tenho nenhuma informação sobre isso, mas não vejo outra explicação para as críticas que ele vem fazendo ao governo, dentro e fora do Brasil. Ele pode estabelecer uma aliança, bem mais ampla que o PSDB, contra Lula e o PT. Caso isso aconteça, haverá um novo quadro político, muito mais tenso, porque o establishment conservador brasileiro e internacional, que agora aceita Lula, irá se bandear para o lado de FHC.

Folha - O PSDB parece estar ainda definindo seu papel fora do poder.
Alencastro -
O PSDB paga um preço por ser um partido com uma proposta furada, do ponto de vista doutrinário, que foi o parlamentarismo, desautorizado pelo eleitorado brasileiro.
Depois ficou pendurado no [ex] presidente da República, que no final disse em entrevistas que o PSDB nunca deveria ser chamado de social-democrata, porque não é social-democrata. Ou seja, ele questiona a própria noção básica do partido de modo que, evidentemente, o partido sofre uma crise de identidade grande porque ele sempre se colocou como a esquerda quando estava no governo e agora tem outra coisa.
Evidentemente que os governadores [Geraldo] Alckmin [SP] e Aécio [Neves, MG] são lideranças, mas eu realmente acho que o pacto político que está se desenhando é uma candidatura FHC em cima do Lula. Ele vai ter 75 anos. O De Gaulle também foi eleito com essa idade aqui. Tem uma questão de "timing" aí.

Folha - Enfim, o sr. acha que o governo terá condições de promover alterações sociais e econômicas?
Alencastro -
Espero que sim. O Brasil ainda paga o preço do fiasco da campanha abolicionista que, no final do século 19, não conseguiu engrenar a reforma agrária. Não dá para registrar outro fiasco desse na nossa história. Se a experiência do PT no governo federal fracassar, a esquerda entrega a rapadura de vez.

Folha - A política externa do governo Lula tem sido destacada como um dos pontos positivos do governo. Qual a avaliação do sr.?
Alencastro -
Concordo com essa apreciação. Acho que a nossa atual diplomacia retoma os caminhos da "Política Externa Independente" lançada pelo chanceler Afonso Arinos em 1961 e abortada pela ditadura em 1964. Além de assegurar a presença brasileira nas grandes negociações internacionais, o Itamaraty capitalizou o interesse internacional gerado pela eleição de Lula e pelas redes de simpatizantes que o PT dispunha na Europa e nos Estados Unidos.

Folha - O sr. entendeu como um recuo o fato de o presidente Lula ter concordado, em Washington, com a data de 2005 para o ingresso do país na Alca?
Alencastro -
Foi uma declaração de princípio, sem prejuízo das negociações presentes e futuras. O procedimento é habitual no encontro de chefes de Estado. O governo tem de estar preparado para negociar.


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