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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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CONFLITO AGRÁRIO

Para economistas, os principais méritos da política agrária são os ganhos sociais, políticos e ambientais

Pequena produção familiar tem poucas condições de enfrentar o moderno complexo agroindustrial

Reforma tem efeito econômico questionado

Tuca Vieira/Folha Imagem
Sem-terra realizam marcha em apoio à reforma agrária em Santa Maria, no Rio Grande do Sul


EDUARDO SCOLESE
DA AGÊNCIA FOLHA
VINICIUS MOTA
DA REPORTAGEM LOCAL

O processo de assentamentos de famílias promovido pelo Estado brasileiro, com mais força a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, contribuirá decisivamente para o incremento da produção agrícola brasileira?
Uma enquete com economistas e especialistas na questão agrária identificou nos aspectos social, político e ambiental da reforma suas principais virtudes. Houve discordância, porém, sobre seu impacto econômico direto.
Uma das mais duras críticas à suposta capacidade da reforma de liberar forças produtivas em grande escala proveio de Zander Navarro, engenheiro agrônomo especializado em economia rural.
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Navarro diz que a "idéia de reforma agrária está enraizada num certo imaginário político, principalmente no campo da esquerda. Mas ela perdeu seu local histórico dos anos 50 e 60, quando o país ainda não tinha passado por um período de expansão industrial. Toda a argumentação de que a reforma agrária criaria um mercado interno foi vencida".
O ex-ministro do Planejamento João Sayad e os economistas Fernando Homem de Mello (USP) e Fernando Cardim (UFRJ) concordam que a agricultura brasileira já é bastante moderna e competitiva e é difícil que o modelo baseado na pequena propriedade familiar lhe faça concorrência.
"O complexo agroindustrial brasileiro é bastante competitivo. A agricultura familiar é mais importante para a renda da região em que ela está do que propriamente para a economia como um todo", diz Cardim. Partindo de diagnóstico parecido, Sayad conclui que a reforma agrária "deve ter um caráter de redistribuição de renda, e não o de buscar um aumento de produção agrícola".
Já Antonio Barros de Castro, também da UFRJ, embora não veja função econômica na reforma agrária no curto prazo, propõe uma receita para avaliar seus resultados no futuro: "Será exitosa se dispensar subvenções públicas e permitir um rendimento razoável para os produtores rurais beneficiados pela reforma".

Reforma produtiva
O chamado agronegócio foi responsável pela geração de uma renda, no ano passado, de mais de R$ 420 bilhões. Os dados são do IBGE e da Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária (CNA). O valor equivale a quase 30% do PIB em 2002.
Incrementar essa produção já expressiva, contribuindo para a queda do preço dos alimentos -que liberaria renda, especialmente entre os mais pobres, para gastos com produtos mais elaborados-, é o desafio dos novos assentamentos. Isso para os que enxergam uma função econômica relevante para a reforma.
Reinaldo Gonçalves, economista da UFRJ, afirma, sobre a reforma fundiária, que ela "transcende a questão social. Atua como um mecanismo importante na mudança das condições de oferta de produtos agrícolas."
Os estudiosos que identificam potencialidades econômicas mais pronunciadas na reforma, em geral, colocam condicionantes para a consecução desse objetivo.
Paulo Nogueira Batista Jr. (FGV-SP) é um deles. O economista não faz distinção entre o aspecto econômico e o social da reforma. Mas, segundo ele, a política só terá impacto na produção, aumentando o grau de utilização da terra no país, se os assentamentos se fizerem em terras improdutivas ou de baixa utilização. Outra condição, para Batista Jr., é a de que se dêem aos assentados os "programas complementares, como apoio creditício, técnico e infra-estrutura mínima".
Uma das defesas mais contundentes das potencialidades da reforma é a do ex-deputado petista Plínio de Arruda Sampaio. Para ele, o modelo do agronegócio brasileiro, baseado na grande propriedade exportadora e no uso intensivo de defensivos e insumos químicos, "está condenado, de acordo com o que se discute em fóruns como a FAO" (órgão da ONU para a alimentação).
Arruda Sampaio, consultor informal sobre assuntos agrários do governo Lula, defende a política de assentamentos em grande escala para garantir não apenas o abastecimento do mercado interno (com forte impacto na diminuição dos preços dos alimentos), mas também como uma forma de proteção ao ambiente.

Impactos no emprego
A maioria ressaltou os efeitos positivos para o emprego que a reforma agrária pode exercer. Para o professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo, por exemplo, "o emprego industrial já é uma espécie de quimera no século 21, por conta da redução da necessidade de mão-de-obra por unidade de produto." Uma política de assentamentos teria a função de absorver parte dessa população que não encontrou na urbanização boas condições de vida.
Cardim é mais cético em relação à hipótese de que a política de assentamentos possa promover uma volta ao campo dos que já habitam as grandes cidades. Para o professor da UFRJ, se a reforma lograr conter novos fluxos migratórios para grandes centros, já terá atuado para descomprimir pressões adicionais sobre o mercado de trabalho urbano.
Fernando Homem de Mello, em linha parecida, diz que a função da reforma é proporcionar uma "ocupação para essa população miserável que está à beira das estradas, até que seus filhos tenham melhores condições de educação e saúde e, com a economia voltando a crescer, consigam empregos na cidade. A tendência inexorável é a diminuição da população rural, no mundo todo".

Renda, riqueza e poder
Foi ampla a concordância sobre a função desconcentradora de renda e riqueza que pode ser obtida pela reforma agrária. Ao redistribuir a propriedade da terra, sabidamente concentrada no país, e instituir políticas de crédito subsidiado aos assentamentos, o Estado agiria para diminuir a distância que separa ricos de pobres.
José Eli da Veiga, da USP, se aferra ao caráter distributivo da reforma para reintroduzir, por essa via, o argumento de que essa política tem função econômica relevante: "Quem diz que a reforma agrária deixou de ser uma questão econômica demonstra notável desprezo pela eficiência distributiva, e só considera a eficiência alocativa. De resto, a idéia de que economia e "justiça social" possam ser coisas tão separadas (ou divorciadas) revela uma profunda ignorância histórica."
Outra virtude potencial da política de assentamentos, identificada por Belluzzo e Zander Navarro, seria o seu impacto político. Para o primeiro, a democratização do acesso à terra ampliaria a classe de pequenos proprietários no Brasil, com impactos na distribuição do poder. Navarro diz que, se a reforma ocorrer na região que vai do norte de Minas Gerais até o oeste do Pará, haveria modernização política "onde hoje as instituições só existem no papel, e os proprietários de terra agem como coronéis do século passado."
A visão mais ácida foi a do ex-presidente do Incra (1995) Xico Graziano. O agrônomo, especializado em economia rural, é bastante pessimista em relação à reforma agrária. "A reforma agrária distributivista nasceu econômica, numa época de elevada ociosidade da terra e necessidade de mercado interno para a industria nascente. Hoje, 50 anos depois, transformou-se em política social, aliás, a mais ineficiente delas", diz.
Graziano completa: "É enganação comparar o custo dos assentamentos com o do emprego industrial. O primeiro onera o Tesouro, significa dispêndio público; o outro resulta de investimentos privados". Defende, como alternativa, a criação de empregos nas periferias de grandes cidades.


Colaboraram CÍNTIA CARDOSO, da Reportagem Local, e a Sucursal do Rio


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