São Paulo, Quarta-feira, 13 de Outubro de 1999
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HISTÓRIA

Documento inédito revela que Brasil solicitou força militar a Inglaterra e França em 1835 contra a Cabanagem

País pediu apoio externo contra revolta


LUÍS INDRIUNAS
da Agência Folha, em Belém

Documentos inéditos descobertos na Inglaterra relatam que, apenas 13 anos depois de proclamada a Independência, o governo brasileiro pediu auxílio militar às grandes potências da época -Inglaterra e França- para reprimir a Cabanagem, fracassada revolta separatista no Pará.
O episódio, desconhecido até agora do público brasileiro, aconteceu há 164 anos. Em 1835, o regente Diogo Antônio Feijó reuniu-se secretamente com os embaixadores da França e da Grã-Bretanha.
Durante a reunião, Feijó pediu ajuda militar, de 300 a 400 homens para cada um dos países, no intuito de ajudar o governo central brasileiro a acabar com a rebelião.
"Na época, a unidade nacional foi bastante contestada. O pedido de Feijó é mais uma comprovação da fragilidade da nação brasileira pós-Independência", afirma o diretor do Arquivo Público do Pará, Geraldo Mártires Coelho.
Os documentos que relatam a reunião estão no "Public Records Office", o arquivo do governo britânico, que fica em Londres, e foram estudados pelo pesquisador David Cleary, do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Harvard.

Nação em perigo
O colapso do Primeiro Reinado, com a abdicação de d. Pedro 1º, em 1831, trouxe a constituição da Regência, pois d. Pedro 2º tinha apenas cinco anos. Os regentes eram escolhidos pela Assembléia Geral do Império. As duas primeiras regências foram compostas por três governantes.
Feijó foi o primeiro regente único e governou o país de 12 de outubro de 1835 a 19 de setembro de 1837. Durante toda a Regência (de 1831 a 1840), o governo central brasileiro sofreu um enfraquecimento, enfrentando diversas rebeliões de caráter separatista. Como regente, Feijó se confrontou com três importantes revoltas regionais: além da Cabanagem, a Sabinada (Bahia) e a Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul).
"Esses documentos mostram que Feijó não sabia o que fazer com o abacaxi que era a situação no norte do país", diz Coelho.
Cleary afirma que, pelos documentos históricos disponíveis, apenas no caso do Pará o regente decidiu pedir ajuda externa.

Conflito e parceria
Para o historiador Boris Fausto, a carta do embaixador mostra uma realidade histórica até certo ponto surpreendente.
"Esse documento revela uma atitude estranha de Feijó, já que as relações com a Grã-Bretanha não eram harmoniosas", declara o historiador.
O conflito entre os dois países vinha do fato que o governo britânico reprimia duramente o tráfico internacional de escravos, uma das principais atividades econômicas do Brasil na época. Segundo Cleary, dois terços da correspondência dos ingleses nesse período eram sobre a questão.
Para os ingleses, o problema era a concorrência no mercado internacional da cana-de-açúcar, já que, em suas principais colônias produtoras, o trabalho escravo havia sido abolido -na Jamaica, em 1833; na Guiana, em 1837.
Mas, mesmo com a relação tensa, a Grã-Bretanha era o principal parceiro comercial do Brasil. Desde a Independência, os britânicos tinham privilégios comerciais no país. Seus comerciantes contavam com a menor taxa alfandegária (15%) para colocar os produtos no Brasil, enquanto os outros países pagavam 24% (Portugal) e 25% (os demais).
Poderia pesar na decisão de uma eventual ação armada no Pará o fato de que Grã-Bretanha e França tinham presença direta na região Amazônica, por meio de suas colônias -as Guianas francesa e inglesa- e uma rebelião próxima era motivo de preocupação para seus governos.
Existe no "Public Records Office" correspondência do próprio governo do Pará relatando aos ingleses a movimentação francesa na região.
Durante a Cabanagem, tanto França quanto Grã-Bretanha mantiveram embarcações na costa paraense como alternativa de refúgio para os comerciantes das duas nações. Os dois países, porém, nunca chegaram a intervir diretamente no conflito.
O pedido de Feijó de uma intervenção externa no Pará está relatado numa carta de Henry Stephen Fox, embaixador da Grã-Bretanha no Brasil, para o lorde Palmerston, ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha à época, que depois se tornaria primeiro-ministro britânico.
A carta, que tem o grifo de "secreta e confidencial", data de 17 de dezembro de 1835 (leia a íntegra nesta página).
O documento revela uma reunião, na qual Feijó relatou o que pretendia fazer para reprimir a Cabanagem. O regente informou aos embaixadores que estava preparado para enviar cerca de 3.000 homens para o Pará e pediu, então, que cada um dos países cedesse de 300 a 400 soldados, na qualidade de tropas auxiliares.
Feijó teria declarado que iria fazer o mesmo pedido a Portugal, país do qual o Brasil havia se declarado independente 13 anos antes. Fox relata detalhes do pedido que, segundo Feijó, não poderia ser formulado por escrito, pois seria contrário à Constituição do Império e "motivo de descrédito para o governo".
Encerrando a carta, Fox emite então sua opinião sobre o assunto: "Evidentemente, não posso deixar de transmitir o comunicado ao senhor, mas não prevejo que exista a menor probabilidade de o governo de Sua Majestade ou o governo francês anuírem com os desejos do regente, ou consentirem em ordenar uma operação militar, com base em um pedido formulado de maneira tão imprecisa e informal".
A resposta oficial veio quatro meses depois, em 9 de abril de 1836. Palmerston recusou o pedido. O ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha escreve: "O governo de Sua Majestade não acredita justificável envolver-se em operações em terra pelo interior da Província do Pará com o objetivo de apoiar a autoridade do governo do Rio do Janeiro contra a população do distrito".

Personalidade polêmica
Para a professora Magda Ricci, da Universidade Federal do Pará, o documento ajuda a entender a personalidade do regente Feijó.
Autora da biografia "Assombrações de um Padre Regente: Diogo Antônio Feijó - 1784 a 1843", Magda afirma que o regente era uma figura polêmica, que governava com bilhetinhos, apoiava o fim do celibato para os padres e a criação de um código civil só para os negros.
Ela destaca que, segundo a carta do embaixador britânico, Feijó teria pedido que não se comentasse nada sobre esse assunto com o marquês de Barbacena, que estava representando o governo brasileiro na Grã-Bretanha.
"O fato mostra a forma pouco ortodoxa de Feijó atuar, já que Barbacena foi indicado por ele mesmo para o cargo", disse.
A relação de colaboração do regente com os ingleses já vinha de longa data. Em 1822, quando d. Pedro 1º proclamou a independência do Brasil, Feijó era deputado, eleito pela Província de São Paulo, para as Cortes, em Lisboa.

Arquivo público
A correspondência sobre o pedido de ajuda militar feito por Feijó, bem como outras cartas, endereçadas ou enviadas pela diplomacia britânica durante o período da Cabanagem, estão sendo traduzidas e editadas pelo Arquivo Público do Pará, que pretende lançar um livro para as comemorações dos 500 anos do Brasil.
Segundo Cleary, essa correspondência pode preencher muitas lacunas históricas sobre o período da Cabanagem.
"Apesar de preconceituosa, a visão das autoridades britânicas é, sem dúvida, a mais imparcial sobre os acontecimentos. Há extensos relatórios militares sobre fatos até hoje pouco conhecidos deste período, como o ataque ao navio britânico Clio, por moradores do litoral paraense."


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